No dia 08 de Dezembro de 1965, o Papa Paulo VI encerrou a quarta sessão o Concílio Vaticano II declarando:
“Para a Igreja católica ninguém é estranho, ninguém está excluído, ninguém está longe (…) Esta é a nossa saudação: que ela acenda em nossos corações esta nova centelha da caridade divina; uma centelha que possa acender os princípios, doutrinas e propósitos que o Concílio preparou e que, tão inflamados de caridade, possam verdadeiramente atuar na Igreja e no mundo aquela renovação de pensamentos, de atividade, de costumes, de força moral e de alegria e esperança, que foi o objetivo do próprio do Concílio”.
Nas palavras de São Paulo VI, vimos uma saudação a todos os homens, povos e raças, sem exclusões; e também o desejo de que a centelha da caridade divina se acenda em seus corações e, assim, possa suscitar uma integral renovação dos princípios, pensamentos e atos de toda a humanidade, à luz de Cristo, segundo a missionária Ana Paula Gomes, bacharel em Direito, escritora e consagrada da Comunidade de Vida Shalom.
No esteio deste convite universal, a constituição dogmática Lumen Gentium, um dos documentos mais importantes do Concílio Vaticano II, versa sobre a natureza, a missão e o mistério da Igreja como sinal e instrumento de união com Deus e unidade entre todos os povos.
Em seu capítulo V, a Lumen Gentium trata exatamente da vocação de todos à santidade na Igreja, ou seja, lança luzes a respeito do chamamento universal à santidade, que nada mais é do que o sinal visível da centelha da caridade divina que arde nos corações dos homens e que os impulsiona à radical imitação das virtudes de Jesus Cristo.
No artigo 39, o documento diz: “A nossa fé crê que a Igreja, cujo mistério o sagrado Concílio expõe, é indefectivelmente santa. Com efeito, Cristo, Filho de Deus, que é com o Pai e o Espírito ao único Santo, amou a Igreja como esposa, entregou-Se por ela, para a santificar (cfr. Ef. 5, 25-26) e uniu-a a Si como Seu corpo, cumulando-a com o dom do Espírito Santo, para glória de Deus. Por isso, todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: «esta é a vontade de Deus, a vossa santificação» (1 Tess. 4,3; cfr. Ef. 1,4). Esta santidade da Igreja incessantemente se manifesta, e deve manifestar-se, nos frutos da graça que o Espírito Santo produz nos fiéis; exprime-se de muitas maneiras em cada um daqueles que, no seu estado de vida, tendem à perfeição da caridade, com edificação do próximo; aparece dum modo especial na prática dos conselhos chamados evangélicos. A prática destes conselhos, abraçada sob a moção do Espírito Santo por muitos cristãos, quer privadamente quer nas condições ou estados aprovados pela Igreja, leva e deve levar ao mundo um admirável testemunho e exemplo desta santidade”.
Um novo tempo
Vinte e três anos depois, no dia 17 de outubro de 1978, o Papa João Paulo II, em sua primeira radiomensagem Urbi et Orbis, após o conclave que o elegeu Sumo Pontífice, ratificou o desejo de cumprir as diretrizes do Concílio: “Primeiramente, desejamos insistir na permanente importância do Concílio Ecumênico Vaticano II, e é para nós obrigação explícita garantir-lhe a devida execução”.
Assim sendo, dentre as várias instâncias administrativas, disciplinares, ecumênicas e organizacionais que necessitavam seguir as indicações do Concílio, estava a vasta dimensão eclesial e, em meio a esta, os aspectos referentes à sua missão, que não é outra, mas a santificação de seus fiéis: “Quer atribuída a Pontífices bem conhecidos da história quer a figuras humildes de leigos e religiosos, a santidade apareceu mais claramente, dum extremo ao outro do globo, como a dimensão que melhor exprime o mistério da Igreja[1]”.
Um número admirável
Diante de tal entendimento, um dos traços mais marcantes do longo pontificado de João Paulo II foi, sem dúvida, o dedicado trabalho da Congregação para a causa dos santos, que aprovou 1341 beatificações e 482 canonizações.
Até a canonização de Santo Antônio Primaldo e seus 812 companheiros mártires, realizada pelo Papa Francisco em 12 de maio de 2013, o Papa João Paulo II mantinha-se como o pontífice que mais havia canonizado santos desde então, seguido por Leão XIII, que ofertou à Igreja 148 santos em 25 anos de pontificado.
O começo de tudo
A primeira beatificação do pontificado de João Paulo II ocorreu em 29 de abril de 1979, declarando beato o padre francês Jacques Désiré Laval. Já a primeira canonização, do capuchinho italiano Crispim de Vitelbo, ocorreu em 20 de junho de 1982. Em meio a estes novos santos e beatos, encontramos nomes como São Maximiliano Kolbe, São José Moscati, Santa Teresa de Los Andes, Santa Teresa Benedita da Cruz, Santa Madre Paulina, beato Charles de Foucauld, São Juan Diego e Santa Gianna Beretta Molla, canonizada na última cerimônia presidida por João Paulo II, em 16 de maio de 2004.
A santidade é possível
A diversidade de estados de vida, profissões e etnias dentre os novos santos e beatos oriundos do pontificado do papa polonês é outro fator relevante: dentre esses, estão: médicos, rainhas, frades, sacerdotes, freiras, donas de casa, membros de ordens terceiras de algumas congregações, fundadores de institutos de vida consagrada, eslavos, europeus, africanos, asiáticos, sul-americanos e até a primeira índia americana “pele vermelha”, beatificada por João Paulo II em 1980 e canonizada durante o pontificado de Bento XVI, em 2012, Santa Kateri Tekakwitha.
O conceito de santidade
Todavia, o compromisso de João Paulo II em revelar o rosto da Igreja por meio da santidade de tantos cristãos nem sempre foi bem compreendida, como afirmou o cardeal José Saraiva Martins, à época, prefeito da Congregação para a causa dos santos, em sua reflexão sobre o significado dos santos de hoje em um mundo em mudança, de 15 de março de 2003:
“São conhecidas as inúmeras objeções que hoje se levantam contra o conceito de ‘santidade’ e de ‘santo’. Não poucas críticas são dirigidas à prática tradicional e ininterrupta da Igreja, de reconhecer e proclamar ‘santos’ alguns dos seus filhos mais exemplares. Na grande relevância, também numérica, dada pelo Papa João Paulo II às beatificações e canonizações durante o seu Pontificado, houve quem insinuasse a existência de uma estratégia expansionista da Igreja Católica. Para outros, (…) seria apenas uma operação de marketing da santidade, com finalidades de liderança do Papado na sociedade civil contemporânea. Por fim, há quem veja como um (…) resíduo anacrônico de triunfalismo religioso alheio e até contrário ao espírito do Concílio Vaticano II. (…) Evidentemente, uma leitura apenas sociológica do nosso tema corre o risco de ser não só redutiva, mas também desviante da compreensão desse fenômeno, tão característico da Igreja Católica”.
De fato, toda ação da Igreja que seja interpretada somente sob o incipiente prisma das realidades mundanas, nunca poderá ser compreendida em sua magnitude e transcendência, como nas palavras de Jesus Cristo diante de Pilatos: “Meu reino não é deste mundo” (Jo 18, 36). Desta visão minimalista sobre a missão da Igreja surgiram, ao longo da história, os piores erros, heresias e falsas ideologias.
O próprio Papa João Paulo II, em uma alocução aos jovens de Lucca – no dia 23 de setembro de 1989 –, falou a respeito do sentido da santidade: “Os santos, em todas as épocas da história, fizeram resplandecer no mundo um reflexo da luz de Deus; são testemunhas visíveis da santidade misteriosa da Igreja (…) Para conhecer em profundidade a Igreja, é para eles que deveis olhar. Não só para os Santos canonizados, mas também para todos os escondidos e anónimos que procuraram instilar o Evangelho na normalidade dos seus deveres quotidianos. Manifestam a Igreja na sua verdade mais íntima e, ao mesmo tempo, preservam a Igreja da mediocridade, reformam-na por dentro, estimulam-na a ser a esposa sem mancha e sem ruga (cf. Ef 5, 27)”.
Sinais visíveis para o mundo
Portanto, como sinais visíveis da santidade do corpo místico de Cristo, em um movimento duplo, os santos, ao mesmo tempo, tornam-se fundamentais para testemunhar ao mundo a missão da Igreja e para preservar os seus fiéis da mediocridade, animando a cada um na perseverança final em sua peregrinação nesta vida, por isso, o caminho pastoral da Igreja tem como horizonte fundamental a santidade de todo o seu povo.
Por fim, resta-nos recordar as palavras de São João Paulo II em sua Carta Apostólica Novo Millenium Ineunte, em 2001, sobre a santidade como um chamado universal: “Como explicou o Concílio, este ideal de perfeição não deve ser objeto de equívoco vendo nele um caminho extraordinário, percorrível apenas por algum ‘gênio’ da santidade. Os caminhos da santidade são variados e apropriados à vocação de cada um. Agradeço ao Senhor por me ter concedido, nestes anos, beatificar e canonizar muitos cristãos, entre os quais numerosos leigos que se santificaram nas condições ordinárias da vida. É hora de propor de novo a todos, com convicção, esta ‘medida alta’ da vida cristã ordinária: toda a vida da comunidade eclesial e das famílias cristãs deve apontar nesta direção” [2].
Ana Paula Gomes
Bacharel em Direito, escritora e consagrada da Comunidade de Vida Shalom
BIBLIOGRAFIA:
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Ed. Paulus: São Paulo, 2002.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Ed. Loyola: São Paulo, 1999.
PAULO VI. Constituição Dogmática Lumen Gentium. Roma, 1964.
JOÃO PAULO II. Primeira Radiomensagem Urbi et Orbi. Roma, 1978.
JOÃO PAULO II. Alocução aos jovens de Lucca. 1989.
JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte. Roma, 2001.
MARTINS, José Saraiva. Reflexão: O significado dos santos hoje num mundo em mudança. Roma, 2003.
MARTINS, José Saraiva. Conferência na Universidade Católica Portuguesa: O mistério da santidade na experiência cristã. Lisboa, 2004.
[1] JOÃO PAULO II. Carta Apostólica NOVO MILLENNIO INEUNTE. Roma, 2001, § 7.
[2] JOÃO PAULO II. Carta Apostólica NOVO MILLENNIO INEUNTE. Roma, 2001, § 31.
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