“Quanto mais consciente está o artista do ‘dom’ que possui, tanto mais se sente impelido a olhar para si mesmo e para a criação inteira com olhos capazes de contemplar e agradecer, elevando a Deus o seu hino de louvor. Só assim é que ele pode compreender-se profundamente e a sua vocação e missão.”
Com essas palavras, São João Paulo II faz um prelúdio da sua Carta aos Artistas definindo o homem como o sublime artificie da criação artística. Ele imagem de Deus criador plasmado por Seu amor, recebe as centelhas de Seu poder e sabedoria, exerce o domínio criativo sobre o universo que o circunda participando e comunicando Sua vida divina.
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Nesta carta, o santo padre exprime toda a sua paixão e carinho pelas artes de um modo geral e sobretudo pelo teatro, que marcou sua vida de forma indelével a partir das experiências que teve em sua juventude. O papa polonês que sempre incentivou os jovens a buscarem na arte e nos esportes uma forma de estarem mais próximos de Deus, também os encorajava a não parar diante de suas fraquezas ou dos obstáculos da vida, a não terem medo de serem parte da Igreja assumindo seus compromissos e vocação com grande alegria e liberdade. “Não tenham medo, abri as portas para Cristo!” dizia ele.
O teatro na vida de S. João Paulo II
O teatro como uma expressão artística milenar, acompanha o ser humano desde os períodos mais remotos da história até os dias atuais fazendo parte de forma significativa e bela da vida com suas dores, alegrias, sonhos e paixões. O teatro como expressão artística é capaz de gerar grandes transformações no coração humano, porque tem o poder de elevá-lo ao seu Criador.
Como instrumento de Deus em sua vida, o teatro teve um papel importante na vida de São João Paulo II. Mas sua contribuição para as artes não se restringiu apenas em sua carta dedicada aos artistas, realçando o seu papel como aqueles que possuem a intuição para tocar e estimular as almas, de forma a dar-lhes a experiência com o Criador ou mesmo suscitar sentimentos de piedade e compaixão. Da relação da arte com o Evangelho e do seu serviço à beleza e ao bem comum. Este Phatos, esta intuição se encarnou em sua vida e se manifestou em sua vocação e missão, tornando-o artificie da própria vida, fazendo dela uma obra de arte.
“De facto, o artista quando modela uma obra-prima, não dá vida apenas à sua obra, mas, por meio dela, de certo modo manifesta também a própria personalidade […] Por isso a História da Arte não é apenas uma história de obras, mas uma história de homens. As obras de arte falam de seus autores, dão a conhecer o seu íntimo e revelam o contributo original que eles oferecem à história da cultura” (Carta aos Artistas,2).
O teatro como elemento de resistência na II Guerra mundial
O teatro foi a via pela qual Deus suscitou em Karol Woytila um grande amor pelas artes e pela vida de forma geral. Para comunicar o que ele já trazia em seu coração, o teatro foi o catalisador de sua potência evangelizadora que permitiu a ele e seus amigos ajudarem seus compatriotas a se manterem fortes, físico e espiritualmente diante das atrocidades da II Guerra Mundial.
Lolek como era chamado pelos amigos descobriu o palco aos 14 anos, no Centro de Cultura Sokol na Polônia. Lá ele desenvolveu grande facilidade em decorar os textos, escrever e atuar ao mesmo tempo. Foi ator, autor e diretor em várias obras o que lhe permitiu ter amplo conhecimento sobre a arte e a cultura de forma geral, especialmente da Polônia seu amado país.
O Programa Fazendo Barulho também falou sobre esse santo artista que buscou transformar a realidade por meio da arte. Para abordar o tema, o artista e missionário da Comunidade Shalom, Wilde Fábio, revela como surgiu a arte para São João Paulo II. Confira:
Mesmo durante a ocupação Nazista ele discutia sobre a vida e a dramaturgia com seus amigos. Manteve na clandestinidade grupos de teatro rapsódico em Cracóvia, que procuravam sustentar a cultura polonesa por meio da leitura de poesias proibidas pelo regime nazista e apresentação de peças que abordavam a liberdade e a fé católica. Estes grupos juntamente com os seminários clandestinos tornaram-se símbolos da resistência e desempenharam um papel importante no resgate de judeus, sacerdotes e intelectuais poloneses. Cerca de 150.000 pessoas foram resgatadas por estes grupos clandestinos durante a guerra.
O teatro como incentivo a formação humanista
Karol Woytila não chegou a projetar seu nome no teatro polonês, como fizeram outros autores e atores de sua geração. No ginásio integrava um grupo de alunos que recitava poemas e interpretava canções populares. Em 1938 transferido com a família para o centro de Cracóvia, ingressa no Studio 39, grupo de pesquisa teatral onde aprofunda seus estudos e a partir de 1941 integra o grupo de teatro rapsódico, que encenava peças teatrais clássicas ou extraídas de óperas e canções populares, de forma livre e improvisada com músicas e poemas.
O teatro rapsódico forneceu a base para a formação da personalidade criativa e profundamente atenta aos dramas humanos de São João Paulo II. As peças encenadas por ele sempre traziam elementos de fé e de esperança e seus personagens e poemas eram inspirados em personagens bíblicos como Jó, Jeremias e Davi ou em grandes personagens da cultura polonesa e mundial.
O teatro como ponte entre Deus e o homem
Com o fim da II Guerra Mundial, Karol Woytila foi ordenado sacerdote em 01 de novembro de 1946 e em 04 de julho de 1958 é nomeado bispo auxiliar de Cracóvia. Neste período dedicou-se muito mais as suas atividades pastorais, sempre em contato com os jovens e as famílias. Contudo ainda mantinha acessa sua paixão pelas artes, participando de visitas a centros culturais e escolas.
Em 1960 sob o pseudônimo de Andrej Jawién, o agora Bispo de Cracóvia escreve a obra “A Loja do Ourives”. Trata-se de um drama sobre o amor humano e o valor do matrimônio, seus encantos e desencantos, esperanças e medos, onde o autor nos propõe uma contundente reflexão sobre o amor.
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Sempre à frente de seu tempo e das questões humanas, o então cardeal Woytila no seu texto original apresenta um recorte emocionado e honesto da vida de três casais ao longo de três atos em épocas distintas. O personagem Stanislaw o ourives, é como um alter ego do próprio autor atuando como narrador e uma espécie de espinha dorsal da história, uma presença atenta e sensível aos anseios humanos.
Assim como na II Guerra ele se utilizou do teatro para alcançar muitos corações e transformar suas realidades, nesta obra o santo padre aprofunda as relações entre o homem e a mulher e sua relação com o verdadeiro amor que não envelhece com o tempo. O primeiro ato apresenta um pedido de casamento e seus desdobramentos, o amor como elemento que conduz à síntese de tudo, que une o que era dividido, alarga e enriquece o que era estreito e limitado. Nas palavras de André, um dos personagens principais:
“A beleza que age sobre os nossos sentidos é um dom difícil e perigoso, que nos leva frequentemente a ser injusto com os outros. Pouco a pouco aprendi a preferir a beleza que age sobre o espírito: a verdade.
Decidi pôr-me em busca da mulher que fosse o meu próprio ‘eu’, para que existisse entre nós uma ponte e não uma oscilante passarela entre caniços e nenúfares.”
Dessa forma, os jovens percebem que o futuro e o desconhecido deixa de assustá-los e o amor vence as suas inquietações. Como reflete Teresa:
“Você planeja a felicidade como suas construções de arquiteto. Não: é preciso ter coragem, confiar…em quê? Em quem? – na vida, em seu próprio destino, no homem, em Deus…”
No segundo ato Ana e Estevão vivem uma crise em seu matrimônio e o amor antes forte, agora experimenta as incertezas e a luta por sua sobrevivência. Ana amargurada e desiludida procura o ourives, mas sua loja se encontra fechada. Quando o encontra entrega sua aliança para avaliar seu valor. Mas o ourives categoricamente afirma:
“Minha balança não pesa o metal, mas a vida do homem e seu destino. Esta aliança não tem peso sozinha. Seu marido está vivo.”
A mulher então desesperada, procura seu amor. O ourives, como a voz de Deus e da consciência diz-lhe que o amor humano é a síntese de duas existências, de dois seres que num dado momento, se encontram para se fundirem num só. Acorda nela o desejo de amar alguém perfeito, bom e viril e ao final de sua busca percebe que seu esposo era este homem que havia perdido. Esse que sempre foi o amor de sua vida.
O terceiro ato, que se passa na década de 80 e nele aparecem os filhos do primeiro casal e do segundo, que se enamoram, Cristóvão e Mônica. Aqui o santo padre autor da obra encontra terreno fértil para tratar sobre o amor nos tempos modernos. O desejo pela vivência do sacramento do matrimônio e ao mesmo tempo os questionamentos sobre o verdadeiro amor e os condicionamentos que viveram seus pais. O temor de ficarem presos a um passado que não é o seu e ao mesmo tempo o desejo por uma “vida nova”. Temem os desafios mas seguem em frente, e vão comprar as alianças com o velho ourives.
Este drama revela ao final o risco que é deixar-se arrastar por um amor que se imagina absoluto, mas que não tem as dimensões do Absoluto. E alerta:
“Somos vítimas de nossas ilusões, não procurando inserir o amor no Amor que tem estas verdadeiras dimensões. A vida possui inúmeros perigos, mas eles diminuem, se tomamos consciência deles […] E alcançada a harmonia, devemos continuar disponíveis para os outros, não devemos fechar-nos em nós mesmos, para refletirmos sempre, de certa maneira, a existência absoluta e o Amor.”
Esta obra representa mais que um escrito isolado de um apaixonado pelo teatro. Através dela, São João Paulo II tocou em temas profundos do ser humano, incentivou suas peregrinações no mundo para mostrar o verdadeiro Amor aos homens e mostrou que o artista não pode deixar-se dominar pela busca de uma glória efêmera, pela ânsia da popularidade fácil e menos ainda pelo cálculo dos possíveis ganhos pessoais. Que existe uma espiritualidade do serviço artístico, que a seu modo contribui para a vida e o renascimento do seu povo (CA, 4).
Ele abriu as portas para uma reflexão mais profunda sobre o amor humano, a vida e a liberdade, dedicando sua vida aos pobres, aos jovens e as famílias do mundo inteiro. Através de seus escritos como a Exortação Apostólica Familiaris Consortio, a Carta Encíclica Evangelium Vitae e a Carta às Famílias, São João Paulo II contribuiu de forma significativa para a formação da família cristã rumo à santidade. Através das Jornadas Mundiais da Juventude, foram surgindo novas vocações dentro da Igreja e o entendimento de que os jovens de hoje serão os santos do terceiro milênio.
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Sua vocação sempre muito criativa e comunicativa marcou a vida de milhares de pessoas, nas artes, na cultura, na política e mesmo na Igreja Católica o santo papa polonês foi responsável por elevar ao status de santos muitos cristãos, jovens, sacerdotes e famílias que também junto com ele, deram o testemunho de uma vida ofertada a Deus e à humanidade.
A Loja dos Ourives permanece sendo uma obra clássica mundial. Foi adaptada para o cinema e para teatros do mundo inteiro, chegando ao Brasil em 2013 por ocasião da XXVIII Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro. Nesta JMJ, São João Paulo II foi um dos patronos da juventude e sua peça foi apresentada nos teatros cariocas e posteriormente em várias cidades brasileiras. Rica em sua linguagem narrativa e referências a vida cristã, sua mensagem permanece atual nos dias de hoje e seu autor S. João Paulo II um dos grandes santos de todos os tempos.