No dia 13 de outubro de 1972, um avião que levava a equipe de rugby uruguaia ‘Old Christians Club’, do Uruguai ao Chile, acabou colidindo com uma montanha na Cordilheira dos Andes, ficando isolado num lugar chamado Vale das Lágrimas. Além dos jogadores, o voo contava com familiares e amigos, totalizando 45 passageiros.
Em uma história surpreendente e emocionante, os sobreviventes precisaram encarar o frio, o isolamento, a fome e o medo do resgate nunca chegar. Em determinado momento após um acordo, eles chegaram a conclusão que, para sobreviver, teriam que comer os corpos das vítimas da tragédia. Ao todo, 16 passageiros foram resgatados no final da tragédia que durou mais de 70 dias.
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De tão impressionante e visceral, a saga do time de rugby em sua maioria formado de jovens católicos, inspirou o filme A Sociedade da Neve. Juan Antonio Bayona, diretor do longa, adaptou o livro de mesmo nome lançado pelo jornalista Pablo Vierci, que entrevistou os sobreviventes do acidente.
Ao ver o filme, vemos a preocupação dos sobreviventes sobre a possibilidade de recorrer ao canibalismo, mais precisamente à necrofagia para sobreviver, já que não tinham alimentos para continuar com vida. Entre debates e orações eles tiveram medo de utilizar os corpos como fonte de alimento, acreditando que isso seria condenável aos olhos de Deus.
Esta escolha gera obviamente a sua quota de polêmicas, críticas e julgamentos. Especialmente porque os sobreviventes o justificaram na altura, referindo-se ao sacrifício de Cristo na cruz para a salvação da humanidade, e à instituição da Eucaristia na véspera da sua Paixão. Todos eles eram católicos e explicariam que foi a sua fé que lhes permitiu não só sobreviver, mas também superar as consequências psicológicas de uma tal tragédia. No final, a Igreja Católica decidiu: o Papa Paulo VI absolveu-os.
Apoio da Igreja
Apesar de não ser mencionado no filme, a Igreja Católica ofereceu apoio aos sobreviventes. Este fato, documentado por Fernando Parrado em seu livro ‘Milagre nos Andes’, revela que a Igreja desempenhou um papel importantíssimo na assistência espiritual e psicológica aos sobreviventes, algo que não foi explorado na narrativa do filme.
“Logo após o resgate, membros da Igreja Católica anunciaram que, de acordo com a doutrina da Igreja, não havíamos cometido pecado ao comer a carne dos mortos. Conforme Roberto argumentara na montanha, eles disseram ao mundo que o pecado seria termos nos permitido morrer. Porém, fiquei mais contente com o fato de que muitos dos pais dos rapazes que morreram nos apoiaram publicamente, dizendo ao mundo que entendiam o que tínhamos feito para sobreviver”, escreveu Parrado em seu livro.
Papa Paulo VI, ao se referir ao acidente, disse que as condições extremas vivenciadas nos Andes e o perigo eminente de morte foram fatores essenciais para o perdão e absolvição concedidos aos sobreviventes do desastre aéreo. No filme, não existe uma referência verbal explícita a Eucaristia como em ‘Vivos’ de 1993, o que gerou grande polêmica por associar o Catolicismo ao canibalismo na época. Porém a Igreja é categórica ao afirmar:
“Pela consagração do pão e do vinho opera-se a mudança de toda substância do pão na substância do Corpo de Cristo Nosso Senhor e de toda substância do vinho, na substância do Seu sangue; esta mudança, a Igreja Católica a denominou-a com acerto e exatidão Transubstanciação (CIC 1376).
Na Eucaristia, depois que o sacerdote consagra o pão e o vinho — que são transubstanciados no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo —, Nosso Senhor está inteiramente presente. Nem pão nem vinho permanecem. No entanto, os acidentes ou propriedades acidentais do pão e do vinho (tamanho, peso, sabor, textura) permanecem. Portanto, a razão essencial pela qual nós, católicos, não podemos ser acusados de canibalismo é o fato de que não recebemos Nosso Senhor de forma canibal ou cruenta. Nós o recebemos na forma de pão e de vinho. As duas formas são qualitativamente diferentes.
O próprio Papa Francisco reagiu à comemoração de 50 anos da tragédia numa carta datada de 10 de Outubro de 2022, na qual apelava a orações pelos familiares dos mortos, com especial destaque para as mães dos que morreram no acidente. O Papa expressou também a sua gratidão pelo testemunho dado pelos jogadores de rugby, “onde a dor e a incompreensão do que foi vivido se transforma, para muitos, num sinal de vida e de esperança”.
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Jovens católicos
Tanto Vierci quanto Bayona deixam como personagens secundários os sobreviventes mais famosos – Fernando Parrado, Roberto Canessa, Carlito Páez – e colocam Numa Turcatti como narrador da história. Um jovem profundamente católico que foi um dos últimos a recorrer ao canibalismo.
Fernando Parrado recorda-se de Numa assim: “ninguém lutou tanto para que sobrevivêssemos, ninguém inspirou tanta esperança e ninguém inspirou tanta compaixão por aqueles que mais sofreram quanto Numa”.
Fundamental para seus companheiros, ele unia a todos e mesmo em meio ao terrível momento que estavam vivendo nunca deixou de incentivar e encorajar seus amigos. Com o tempo, eles deixaram de se lamentar pelo ocorrido e se ajudavam mutuamente. Realizavam diversas tarefas para vencer o frio e o isolamento, procuravam rezar juntos e contar histórias para não serem vencidos por maus pensamentos e sempre mantinham a unidade. Dormiam abraçados e se massageavam, devido ao frio congelante, assim se aqueciam física e afetivamente. Foi o caminho para se salvarem.
Essa escolha para a narrativa tornou o filme mais coerente, respeitoso com a história dos sobreviventes e muito existencial. Abordando várias vezes a fé católica da maioria dos personagens, “A Sociedade da Neve” traz uma poderosa visão sobre amizade, sacrifício, maturidade, trabalho em grupo e sobretudo coragem para enfrentar o medo da morte. O calor humano presente no grupo de jovens confere ao longa uma boa carga de dramaticidade e veracidade.
A Palavra do Evangelho que guia todas as ações dos sobreviventes é lembrada mais uma vez por Numa, antes de sua morte em um bilhete, 11 dias antes do resgate: “Não há amor maior do que dar a própria vida pelos amigos” (Jo 15,13-17). Em Montevidéu, no Uruguai, foi erguido o Museu da Sociedade da Neve, que contém objetos, cartas dos falecidos a familiares e amigos e palavras escritas nas paredes, essenciais para o grupo dos Andes como Atitude, Amor, Fé, Disciplina e Vida.
Em seu depoimento, Nando Parrado, o líder dos expedicionários, diz: “Nunca fomos pessoas melhores do que quando estávamos nos Andes. Ali não havia interferência externa, não havia dinheiro, não havia intolerância, não havia hipocrisia”. O mundo se interessa pela história também para se reconciliar consigo mesmo. No pior dos desamparos, um grupo construiu uma sociedade, uma utopia, a sociedade da neve.
A Sociedade da Neve concorre ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2024 e além do filme você pode conferir o documentário “A Sociedade da Neve: Quem fomos na Montanha”, um olhar aprofundado sobre o processo de criação do filme, com a participação do elenco, equipe técnica e dos sobreviventes reais do desastre aéreo.
Confira abaixo o trailer do filme:
Com informações do Portal Aleteia e Gazeta do Povo.