Na Palavra de Deus, vemos que Ele chama seus eleitos pelo nome pois os conhece, e muitas vezes ao responderem favoravelmente ao seu chamado, o Senhor lhes muda o nome, conferindo-lhes uma nova identidade, uma alta dignidade, mais elevada, em concordância com a missão à qual os chama.
O homem vive sob esse olhar amoroso de Deus, que não condena mas deseja salvar. Deus nos revela o que somos para nos elevar sob Seu olhar amoroso. Ah, se descobríssemos realmente Seu olhar de Amor infinito! O autoconhecimento seria trampolim para a ação de graças, porque veríamos que Deus nos acolhe, nos ama e é exatamente esse amor que nos muda. Só se muda fazendo a experiência de um amor incondicional. Vemos às vezes, assistindo a algum filme, que os diretores desejam passar sutilmente ideologias que pregam que as religiões não aceitam as pessoas como elas são, mas desejam antes mudá-las a partir de uma rigorosa moral. Será assim mesmo?
O nosso Deus aceita o homem como é, a tal ponto que desce até à humanidade perdida pelo pecado e se mistura com pecadores, os quais chegam a dizer de Jesus: “Este homem acolhe os pecadores e come com eles!”(Lc 15,1)
“Deus nos espera no ponto mais baixo de um imenso desmoronamento, cavado em nós pelo que chamamos as decepções e as crueldades da vida. Quando percebemos o que é o homem e quem é Deus, percebemos também que não há outra salvação possível: nosso coração começa a queimar como o dos discípulos de Emaús, pois começaram a pressentir na mais profunda agonia da noite, a aurora da alegria infinita que fará explodir o mundo no final dos tempos.” 1
Quando vamos nos conhecendo, percebemos que realmente temos feridas que nos condicionam e às vezes para “sobreviver” interiormente buscamos desculpas, acusamos os outros (e instituições), procuramos uma saída fácil e suportável para não termos que passar pela porta estreita, ou como o vermezinho de seda do qual fala Santa Teresa2, tentamos não passar pelo minúsculo orifício que, no entanto, é necessário para que viremos borboleta. Caso não atravesse essa “agonia”, permanecerá para sempre rastejando sobre a terra.
Sim, o autoconhecimento e as decisões difíceis às quais nos confrontam são dolorosos. Mas, trata-se de dor que salva, que traz vida nova, como a dor do parto, sobretudo se o vivermos sob o olhar amoroso de Deus. Precisamos permitir que Jesus “coma com os pecadores” que somos e gere em nós a força do Amor decidido que tem a coragem de tomar decisões existenciais para que nasçamos de novo, para que experimentemos a “metanoia”, a conversão definitiva e assim recebamos o novo nome do eleito, alçando o livre vôo dos filhos de Deus.
Por isso, oração, oração, oração! Quanto mais sofremos nesse processo, mais oração. “Se nossos joelhos fossem mais feridos pela oração, nossos corações feridos já teriam sido curados.”(Moysés Azevedo). Nossa oração não é sempre a mesma coisa. Por vezes, quando incentivamos alguém a rezar um pouco mais acontece um efeito inverso: a pessoa acaba ficando chateada, como se não a estivéssemos escutando.
Mas veja bem, queremos uma palavra de consolo puramente humana ou algo divino? Um consolo de uma mera criatura ou do próprio Criador? Acreditamos realmente que Deus é a eterna novidade, e que apenas experimentamos migalhas que caem da mesa do Seu Reino, até hoje? O Senhor tem muito mais para nos dar em nossa oração. Não achemos que já sabemos rezar: todos os dias deveríamos repetir com os discípulos: “Senhor, ensina-nos a rezar! A rezar mais, melhor, surpreende-nos, Senhor!” Diz o padre Louis Lallemant, jesuíta do XVII século: “Deus nos quer inteiramente e sem reservas para nos libertar inteiramente de nossas misérias”.
Quando não vivemos nosso autoconhecimento sob o olhar de Deus, procuramos culpados por não estarmos nos sentindo bem.
“Certo dia Abade Pior viu seus filhos espirituais falando mal de um irmão. Levantou-se então e colocou uma cestinha de areia diante de si, e em seguida, colocou sobre suas costas um grande saco cheio de areia. Os monges lhe perguntaram: “Que fazes, pai?” Abade Pior respondeu: “A cesta diante de mim são os pecados de meu irmão. O saco que carrego atrás são meus próprios pecados. Ora, estes são muito maiores, por isso devo tê-los diante de mim para não manter meu olhar nos poucos pecados de meu irmão.”
“O que é a conversão? Se nós virarmos as costas à todas as coisas do mundo e assim pela oração, pelo estudo, pelos nossos atos, pelo nosso espírito, por nossos esforços nós nos consagrarmos à Palavra de Deus, se nós a meditarmos dia e noite e, esquecendo todo o resto nós formos disponíveis a Deus, seremos convertidos” (Orígenes, Homélie sur l’éxode, XII)
Infelizmente, no fundo buscamos uma fuga para sermos batizados “light”, que ainda guardam um pouco de suas vidas para si. Mas para seguir Jesus é preciso arriscar-se. A verdadeira fé exige correr o risco de perder a vida. « A forma interna do Evangelho requer que o homem que segue Jesus « aposte » toda a sua vida com uma convicção suprema numa « única cartada », abandonando o resto do jogo com suas cartas » 3
Ao evitarmos custe o que custar os riscos dessa aposta de fé, ao percebermos que somos verdadeiramente pecadores, não de maneira abstrata dizendo quase com orgulho: “eu sou UM GRANDE pecador” (infelizmente, para nós às vezes o importante é sermos grande em alguma coisa!), mas pelo autoconhecimento vermos que podemos ser realmente maliciosos, mesquinhos, impuros, invejosos, ciumentos, impacientes…vamos criando uma estrutura interior de autodefesa, “self-defense” espiritual. Tornamo-nos assim agressivos com nossos irmãos.
‘Eu não vou me deixar destruir.’ Aqui, colocamos o dedo no orgulho. Se você não se acha capaz de um tal orgulho, você está completamente cego! O pecado começa no momento onde eu recuso o sofrimento: eu deixo de alimentar um coração vigilante que se abre à miséria do irmão que bate à minha porta. Eu recuso a compaixão. Eu me endureço.”4
Santo Agostinho diz: “Ninguém te diz: ‘esforça-te terrivelmente, procura o caminho no qual chegarás à verdade e à vida’. Ninguém te diz isso! Foi o Senhor que veio! Levanta-te, pois, preguiçoso; o Caminho em pessoa vem a ti, e Ele te despertou de teu sono, te dizendo: ‘Levanta-te e anda!’”. Olhemos para Aquele que nos olha com tanto amor, deixemo-nos amar, e não seremos mais amargurados, e sim gratos por um Amor que nos transforma também nós em Amor. Amém.
Daniel Ramos de Castro
Missionário da Comunidade de Vida Shalom
1. Padre Marie-Dominique Molinié, Le Combat de Jacob
2.Santa Teresa d’Ávila, na obra Castelo Interior ou Moradas, usa esta imagem da metamorfose do bicho-da-seda que é transformado em uma “borboletinha branca”, passando pela construção do casulo. A narrativa revela a mística cósmica e intenciona resumir toda a vida cristã que, confiada a Cristo, “entra” totalmente em sua vida para com ele renascer.
3. H.U. Von BALTHASAR, Nouveaux points de repère, FAYARD
4. MOLINIÉ, Marie Dominique, Adoration ou désespoir, C .L .D
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