Formação

“Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra”

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Pe. Raniero Cantalamessa

1.Quem são os mansos

A bem-aventurança sobre a qual desejo meditar hoje se presta a uma observação importante. Diz: «bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra». Pois bem, em outra passagem do mesmo evangelho de Mateus, Jesus exclama: «Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração» (Mt 11, 29). Daí deduzimos que as bem-aventuranças não são só um bom programa ético que o mestre traça para seus discípulos; são o auto retrato de Jesus! É Ele o verdadeiro pobre, o manso, o puro de coração, o perseguido pela justiça.

Está aqui o limite de Gandi em sua aproximação ao sermão da montanha, que igualmente admirava muito. Para ele, aquele poderia até prescindir do todo da pessoa histórica de Cristo. «Não me importaria sequer — disse em uma ocasião — se alguém demonstrasse que o homem Jesus na realidade não viveu jamais, e o que se lê nos Evangelhos não é mais que fruto da imaginação do autor. Porque o sermão da montanha permaneceria sempre verdadeiro ante meus olhos» [1].

É, no entanto, a pessoa e a vida de Cristo o que faz das bem-aventuranças e de todo o sermão da montanha algo mais que uma esplêndida utopia ética; faz disso uma realização histórica, da qual cada um pode tirar força para a comunhão mística que lhe une à pessoa do Salvador. Não pertencem só à ordem dos deveres, mas também à da graça.

Para descobrir quem são os mansos proclamados bem-aventurados por Jesus, é útil revisar brevemente os termos com os quais a palavra mansos (praeis) se plasma nas traduções modernas. O italiano tem dois termos: «miti» e «mansueti». Este último é também o termo empregado nas traduções espanholas, los mansos. Em francês a palavra se traduz com doux, literalmente «os doces», aqueles que possuem a virtude da doçura (não existe em francês um termo específico para dizer mansidão; no «Dictionnaire de spiritualité» esta virtude está exposta como douceur, doçura).

No alemão se alternam diversas traduções. Lutero traduzia o termo com Sanftmntigen, isto é, mansos, doces; na tradução ecumênica da Bíblia, a Eineits Bibel, os mansos são aqueles que não exercem nenhuma violência — die keine Gewalt anwenden –, portanto, os não-violentos; alguns autores acentuam a dimensão objetiva e sociológica e traduzem praeis com Machtlosen, os inermes, os sem-poder. O inglês vincula habitualmente praeis com the gentle, introduzindo na bem-aventurança a matiz de gentileza e de cortesia.

Cada uma dessas traduções evidencia um componente verdadeiro, mas parcial, da bem-aventurança. É preciso considerá-las em conjunto e não isolar nenhuma, a fim de ter uma idéia da riqueza originária do termo evangélico. Duas associações constantes ajudam a captar o «sentido pleno» de mansidão: uma é a que aproxima mansidão e humildade, a outra a que aproxima mansidão e paciência; uma traz à luz as disposições interiores das quais brota a mansidão; a outra, as atitudes que impulsionam a ter respeito pelo próximo: afabilidade, doçura, gentileza. São as mesmas características que o Apóstolo evidencia falando da caridade: «A caridade é paciente, é serviçal, não é invejosa, não se engana…» (1 Cor 13, 4-5).

2.Jesus, o manso

Se as bem-aventuranças são o auto-retrato de Jesus, a primeira coisa que se deve fazer ao comentar uma delas é ver como Ele as viveu. Os evangelhos são, de ponta a ponta, a demonstração da mansidão de Cristo, em seu duplo aspecto de humildade e de paciência. Ele mesmo, recordamos, se propõe como modelo de mansidão. A Ele Mateus aplica as palavras do Servo de Deus em Isaías: «Não disputará nem gritará, o caniço rachado não quebrará, nem apagará a chama que ainda fumega» (Mt 12, 20). Sua entrada em Jerusalém no lombo de um burro se vê como um exemplo de rei «manso» que foge de toda idéia de violência e de guerra (Mt 21, 4).

A prova máxima da mansidão de Cristo se tem em sua paixão. Nenhum gesto de ira, nenhuma ameaça. «Insultado, não respondia com insultos; ao padecer, não ameaçava» (1 Ped 2, 23). Essa característica da pessoa de Cristo se havia gravado de tal forma na memória de seus discípulos, que São Paulo, querendo exortar os coríntios sobre algo querido e sagrado, lhes escreve: «Vos suplico pela mansidão (prautes) e pela benignidade (epieikeia) de Cristo» (2 Cor 10, 1).

Mas Jesus fez muito mais que dar-nos exemplo de mansidão e paciência heróica; fez da mansidão e da não-violência o sinal da verdadeira grandeza. Esta já não consistirá em levantar-se solitários sobre os demais, sobre a massa, mas em inclinar-se para servir e elevar os outros. Sobre a cruz, diz Agostinho, Ele revela que a verdadeira vitória não consiste em fazer vítimas, mas em fazer-se vítima, «Victor quia victima» [2].

Nietzsche, sabe-se, se opôs a esta visão, definindo-a uma «moral de escravos», sugerida pelo «ressentimento» natural dos fracos para com os fortes. Pregando a humildade e a mansidão, o tornar-se pequenos, o dar a outra face, o cristianismo introduziu, em sua opinião, uma espécie de câncer na humanidade, que apagou seu impulso e mortificou sua vida… Na introdução ao livro Assim falava Zaratustra, a irmã do filósofo resumia assim o pensamento de seu irmão:

«Ele supõe que, pelo ressentimento de um cristianismo fraco e falseado, tudo o que era belo, forte, soberbo, poderoso — como as virtudes procedentes da força — foi proscrito e proibido, e que por isso diminuíram muito as forças que promovem e dão prazer à vida. Mas agora uma nova tabela de valores deve ser colocada sobre a humanidade, isto é, o forte, o homem magnífico até seu ponto mais excelso, o super-homem, que nos é apresentado agora com paixão como objetivo de nossa vida, de nossa vontade e de nossa esperança.» [3]

Há algum tempo se assiste ao intento de absolver Nietzsche de toda acusação, de amansá-lo e até de cristianizá-lo. Diz-se que no fundo ele não vai contra Cristo, mas contra os cristãos que em certas épocas pregaram uma renúncia como fim em si mesma, desprezando a vida e indo contra o corpo…. Todos teriam tergiversado o verdadeiro pensamento do filósofo, começando por Hitler… Na realidade, ele teria sido um profeta de tempos novos, o precursor da era pós-moderna.

Restou, poderíamos dizer, uma só voz que se opõe a esta tendência, a do pensador francês René Giarard, segundo o qual todas essas tentativas prejudicaram antes de tudo o próprio Nietzsche. Com uma perspicácia realmente única para seu tempo, ele captou o verdadeiro núcleo do problema, a alternativa irredutível entre paganismo e cristianismo.

O paganismo exalta o sacrifício do fraco a favor do forte e do progresso da vida; o cristianismo exalta o sacrifício do forte a favor do fraco. É difícil não ver um nexo objetivo entre a proposta de Nietzsche e o programa hitleriano de eliminação de grupos humanos inteiros diante da civilização e da pureza da raça.

Não é, portanto, só o cristianismo o alvo do filósofo, mas também Cristo. «Dionísio contra o Crucificado»: «eis aí a antítese», exclama em um de seus fragmentos póstumos [4].

Girard demonstra que o que forma a maior honra da sociedade moderna — a preocupação pelas vítimas, estar do lado do fraco e do oprimido, a defesa da vida ameaçada — é na realidade um produto direto da revolução evangélica que, contudo, por um paradoxo jogo de rivalidades miméticas, é agora reivindicado por outros momentos, como conquista própria, inclusive em oposição ao cristianismo [5].

Falávamos, da última vez, sobre a relevância até social das bem-aventuranças. A dos mansos é seu exemplo talvez mais claro, mas o que se diz dela vale, em conjunto, para todas as bem-aventuranças. São a manifestação da nova grandeza, o caminho de Cristo para a auto-realização na felicidade.

Não é verdade que o Evangelho mortifique o desejo de fazer grandes coisas e de sobressair. Jesus diz. «Quem quiser ser o primeiro, seja o último de todos e o servidor de todos» (Mc 9, 35). É portanto lícito, e inclusive está recomendado, querer ser o primeiro; só que o caminho para chegar a isso mudou: não elevando-se acima dos demais, talvez esmagando-os se são um obstáculo, mas inclinando-se para elevar os demais consigo.

3.Mansidão e tolerância

A bem-aventurança dos mansos passou a ser de extraordinária relevância no debate sobre religião e violência, ascendido depois de fatos como o de 11 de setembro. Ela recorda, antes de tudo a nós, os cristãos, que o Evangelho não dá lugar a dúvidas. Não há nele exortações à não-violência misturadas com exortações contrárias. Os cristãos podem, em certas épocas, ter errado sobre isso, mas a fonte é limpa e a ela a Igreja pode voltar para inspirar-se novamente em toda época, certa de não encontrar nela mais que verdade e santidade.

O Evangelho diz que «quem não crer será condenado» (Mc 16, 16), mas no céu, não na terra; por Deus, não pelos homens. «Quando vos perseguirem em uma cidade — diz Jesus –, fugi para outra» (Mt 10, 23); não diz: «coloquem-na a ferro e fogo». Uma vez, dois de seus discípulos, Tiago e João, que não haviam sido recebidos em certo povoado samaritano, disseram a Jesus: «Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para que os consuma?». Jesus, está escrito, «voltando-se, os repreendeu». Muitos manuscritos recolhem também o tom da rejeição: «Não sabeis de que espírito sois, porque o Filho do homem não veio para perder as almas dos homens, mas para salvá-las» (Lc 9, 53-56).

O famoso campelle intrare, «obrigai-vos a entrar», com o qual Santo Agostinho, ainda que muito a seu pesar [6], justifica sua aprovação das leis imperiais contra os donatistas [7] e que se utilizará depois para justificar a coerção com relação aos hereges, deve-se a uma má interpretação do texto evangélico, fruto de uma leitura mecanicamente literal da Bíblia.

A frase é posta por Jesus na boca do homem que havia preparado uma grande ceia e, ante a rejeição dos convidados a ir, diz aos servos que vão para as ruas e proximidades e que «façam entrar os pobres e marginalizados, cegos e coxos» (Lc 14, 15-24). Está claro que obrigar não significa outra coisa, no contexto, que uma amável insistência. Os pobres e os marginalizados, como todos os infelizes, poderiam sentir-se violentos ao apresentar-se no palácio: vencei sua resistência, recomenda o Senhor, dizei-lhes que não tenham medo de entrar. Quantas vezes, em circunstâncias similares, nós mesmos dissemos: «Obrigou-me a aceitar», sabendo bem que a insistência nestes casos é sinal de benevolência, não de violência.

Em um livro-pesquisa sobre Jesus, que suscitou muito eco ultimamente na Itália, se atribui a Jesus a frase: «Mas àqueles inimigos meus, os que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e matai-os diante de mim» (Lc 19, 27), e se deduz que «é a frases como estas que se remetem os partidários da ‘guerra santa’» [8]. Pois bem: é necessário precisar que Lucas não atribui tais palavras a Jesus, mas ao rei da parábola, e se sabe que não se podem trasladar da parábola à realidade todos os detalhes do relato parabólico, e que em todo caso é preciso elevá-los do plano material ao espiritual. O sentido metafórico dessas parábolas é que aceitar ou rejeitar Jesus não carece de conseqüências; é uma questão de vida ou morte, mas vida e morte espiritual, não física. A guerra santa não tem nada a ver.

4.Com mansidão e respeito

Mas deixemos de lado estas considerações de ordem apologética e procuremos ver como fazer da bem-aventurança dos mansos uma luz para nossa vida cristã. Existe uma aplicação pastoral da bem-aventurança dos mansos que começa já com a Primeira Carta de Pedro. Refere-se ao diálogo com o mundo externo: «Dai culto ao Senhor Cristo em vossos corações, sempre dispostos a dar resposta a todo aquele que vos peça razão de vossa esperança. Mas fazei-o com mansidão (prautes) e respeito» (1 Pedro 3, 15-16).

Existiram, desde a antigüidade, dois tipos de apologética; um tem seu modelo em Tertuliano, outro em Justino; um se orienta a vencer, o outro a convencer. Justino escreve um Diálogo com o judeu Trifon, Tertuliano (ou um discípulo seu) escreve um tratado Contra os judeus, Adversus Judeos. Estes dois estilos tiveram uma continuidade na literatura cristã (nosso Giovanni Papini era certamente mais próximo a Tertuliano que a Justino), mas é verdade que hoje é preferível o primeiro. A encíclica Deus caritas est, do atual Sumo Pontífice, é um exemplo luminoso desta apresentação respeitosa e construtiva dos valores cristãos que dá razão da esperança cristã «com mansidão e respeito».

O mártir Santo Inácio de Antioquia sugeria aos cristãos de seu tempo, com relação ao mundo externo, esta atitude, sempre atual: «Ante sua ira, sede mansos; ante sua presunção, sede humildes» [9].

A promessa ligada à bem-aventurança dos mansos — «possuirão a terra» — se realiza em diversos níveis, até a terra definitiva que é a vida eterna, mas certamente um dos planos é o humano: a terra são os corações dos homens. Os mansos conquistam a confiança, atraem as almas. O santo por excelência da mansidão e da doçura, São Francisco de Sales, costumava dizer: «Sede o mais doce que possais e recordai que se pegam mais moscas com uma gota de mel que com um barril de vinagre».

5.Aprendei de mim

Poderíamos insistir longamente sobre estas aplicações pastorais da bem-aventurança dos mansos, mas passemos a uma aplicação pessoal. Jesus diz: «Aprendei de mim que sou manso». Alguém poderia objetar: mas Jesus não se mostrou, Ele mesmo, sempre manso! Diz, por exemplo, que não se deve opor-se ao malvado, e que «ao que te bata na face direita, oferece-lhe também a outra» (Mt 5, 39). Mas quando um dos guardas lhe golpeia a face, durante o processo no Sinédrio, não está escrito que ofereceu a outra, mas com calma respondeu: «Se falei mal, declara o que está mal; mas se falei bem, por que me bates?» (João 18, 23).

Isso significa que nem tudo, no sermão da montanha, deve ser tomado mecanicamente ao pé letra; Jesus, segundo seu estilo, utiliza hipérboles e uma linguagem figurada para gravar melhor na mente dos discípulos determinada idéia. No caso de oferecer a outra face, por exemplo, o importante não é o gesto de oferecê-la (que às vezes até pode parecer provocador), mas o de não responder à violência com outra violência, vencer a ira com serenidade.

Neste sentido, sua resposta ao guarda é o exemplo de uma mansidão divina. Para medir seu alcance, basta compará-la à reação de seu apóstolo Paulo (que era um santo) em uma situação análoga. Quando, no processo ante o Sinédrio, o sumo sacerdote Ananias ordena golpear Paulo na boca, ele responde: «Deus te golpeará, parede caiada» (Atos 23, 2-3).

Deve-se esclarecer outra dúvida. No mesmo sermão da montanha, Jesus diz: «Quem chamar seu irmão de ‘imbecil’ será réu ante o Sinédrio; e quem o chamar de idiota, será o réu da geena de fogo» (Mt 5, 22). Várias vezes no Evangelho Ele se dirige aos escribas e fariseus chamando-os de «hipócritas, insensatos e cegos» (Mt 23, 17); rejeita os discípulos chamando-os de «insensatos e lentos de coração» (Lc 24, 25).

Também aqui a explicação é simples. Devemos distinguir entre a injúria e a correção. Jesus condena as palavras ditas com raiva e com intenção de ofender o irmão, não as que se orientam a fazer tomar consciência do próprio erro e a corrigir. Um pai que diz a seu filho: «você é um indisciplinado, um desobediente», não pretende ofendê-lo, mas corrigi-lo. Moisés é definido pela Escritura como «mais manso que qualquer homem sobre a terra» (Nm 12, 3); contudo, no Deuteronômio o ouvimos exclamar, dirigindo-se a Israel: «Assim pagais a Javé, povo insensato e néscio?» (Dt 32, 6).

O decisivo é se quem fala o faz por amor ou por ódio. «Ama e faz o que quiseres», dizia Santo Agostinho. Se amas, seja corrigindo, seja deixando passar, será amor. O amor não faz nenhum dano ao próximo; da raiz do amor, como de uma árvore boa, não podem nascer mais que frutos bons [10].

6. Mansos de coração

Chegamos assim ao terreno próprio da bem-aventurança dos mansos, o coração. Jesus disse: «Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração». A verdadeira mansidão se decide aí. É do coração, disse, que precedem os homicídios, maldades, calúnias (Mc 7, 21-22), como das agitações internas do vulcão se expulsam lavas, cinzas e material incandescente. As maiores explosões de violência, como as guerras e conflitos, começam, como disse Santiago, secretamente desde as «paixões que agitam dentro do coração do homem» (St 4, 1-2). Assim como existe um adultério do coração, existe um homicídio do coração: «Quem odeia seu próprio irmão – escreve João –, é um homicida» (1 Jo 3, 15).

Não existe apenas a violência das mãos; existe também a dos pensamentos. Dentro de nós, se prestarmos atenção, se desenvolvem quase continuamente «processos a portas fechadas». Um monge anônimo tem páginas de grande impacto a esse respeito. Fala como monge, mas o que diz não vale apenas para os mosteiros; aponta o exemplo dos súditos, mas é evidente que o problema se apresenta de outro modo também para os superiores.

«Observe – diz –, ainda que seja por um dia, o curso de seus pensamentos: irá se surpreender com a freqüência e vivacidade de suas críticas internas a interlocutores imaginários, e talvez com os que lhe são próximos. Qual é habitualmente sua origem? Esta: o descontentamento por causa de seus superiores que não nos agradam, não nos estimam, não nos entendem; são severos, injustos ou muito fechados, “sem compreensão, obstinados, bruscos, exagerados ou injuriosos…”. Então em nosso espírito se cria um tribunal no qual somos fiscal, presidente, juiz e jurado; raramente advogado, mas que em nosso favor. Se expõem os agravos; se pesam as razões: defende-se, justifica-se, condena-se o ausente. Talvez se elaborem planos de revanche com estilo vingativo…» [11]

Os Padres do deserto, ao não ter que lutar contra inimigos externos, fizeram desta batalha interior contra os pensamentos (os famosos logismoí) o banco de prova de todo o progresso espiritual. Também elaboraram um método de luta. Nossa mente, diziam, tem a capacidade de preceder o desenvolvimento de um pensamento, de conhecer, desde o princípio, aonde irá parar: se a desculpar o irmão ou a perdoá-lo, se à glória própria ou à glória de Deus. «Tarefa do monge – dizia um ancião – é ver chegar de longe os próprios pensamentos» [12], entende-se que para fechar-lhes o caminho, quando não estão de acordo com a caridade. A maneira mais simples de fazê-lo é dizer uma breve oração ou enviar uma bênção para a pessoa que temos tentação de julgar. Depois, com a mente serena, poder-se-á avaliar se e como atuar a esse respeito.

7. Revestir-se da mansidão de Cristo

Uma observação antes de concluir. Por sua natureza, as bem-aventuranças estão orientadas à prática; chamam à imitação, acentuam a obra do homem. Existe o risco de desalentar-se ao constatar a incapacidade de realizá-las na própria vida e a distância abismal que existe entre o ideal e a prática.

Deve-se recordar o que se dizia ao início: as bem-aventuranças são o auto-retrato de Jesus. Ele as viveu todas em grau maior; mas – e aqui está a boa notícia – não as viveu apenas para si, mas também para todos nós. A respeito das bem-aventuranças, estamos chamados não só à imitação, mas também à apropriação. Na fé podemos beber da mansidão de Cristo, como de sua pureza de coração e de qualquer outra virtude sua. Podemos orar para ter a mansidão, como Agostinho orava para ter a castidade: «Oh, Deus, tu me mandas que seja manso; dá-me o que mandas e manda-me o que queres» [13].

«Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de entranhas de misericórdia, de bondade, humildade, mansidão (prautes), paciência» (Col 3, 12), escreve o apostolo aos colossenses. A mansidão e a bondade são como uma veste que Cristo nos presenteou e que, na fé, podemos nos revestir, não para sermos dispensados da prática, mas para nos animarmos a ela. A mansidão (prautes) é situada por Paulo entre os frutos do Espírito (Ga 5, 23), isto é, entre as qualidades que o crente mostra na própria vida, quando acolhe o Espírito Santo e se esforça por corresponder.

Podemos, portanto, terminar repetindo juntos com confiança a bela invocação das letanias do Sagrado Coração: «Jesus, manso e humilde de coração, fazei nosso coração semelhante ao vosso»: Jesu, mitis et humilis corde: fac cor nostrum secundum cor tutum.


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  1. Reino de Jesus.

    “Quando também a criação, renovada e liberta, frutificar abundantemente todo tipo de alimento, graças ao orvalho do céu e à fertilidade da terra, da forma como recordam os anciãos que viram João, discípulo do Senhor, ouvindo-o da maneira como o Senhor ensinava a respeito desses tempos:

    “Haverá dias em que nascerão vinhas que terão, cada uma, dez mil videiras; cada videira terá dez mil ramos; cada ramo terá mil galhos; cada galho terá dez mil cachos e cada cacho terá dez mil uvas e cada uva espremida renderá vinte e cinco metretes de vinho. E quando um dos santos pegar um dos cachos, o outro cacho gritará: ‘pega-me porque sou o melhor e, por meu intermédio, bendize o Senhor’. Da mesma forma, um grão de trigo produzirá dez mil espigas e cada espiga dará dez mil grãos; cada grão dará dez libras de farinha branca e limpa. Também os outros frutos, sementes e ervas produzirão nessa mesma proporção. E todos os animais que se alimentam dos alimentos dessa terra se tornarão pacíficos e viverão em harmonia entre si, submetendo-se aos homens sem qualquer relutância.”

    Também atestou isso por escrito em seu quarto livro Papias, homem antigo, discípulo de João e companheiro de Policarpo. Na verdade, ele escreveu cinco livros e acrescentou:

    “Essas coisas são dignas de fé para os que acreditam. E como disse Judas, o traidor, que não acreditava e perguntou: ‘Mas como o Senhor realizará tais coisas?’; e o Senhor respondeu: ‘Verão aqueles que chegarem a esses tempos’. Estes, então, serão os tempos preditos pelo profeta Isaías: ‘Então o lobo habitará com o cordeiro…’”.

    Papias de Hierapolis Citado por Irineu de Lião-Seculo II.