Dizia a princípio que as duas versões das bem-aventuranças dos famintos, a de Lucas e a de Mateus, não se apresentam alternativamente, mas que se integram reciprocamente. Mateus não fala de fome material, mas de fome e sede de «justiça». Destas palavras se deram duas interpretações fundamentais.
Uma, em linha com a teologia luterana, interpreta a bem-aventurança de Mateus à luz do que dirá São Paulo sobre a justificação mediante a fé. Ter fome e sede de justiça significa tomar consciência da própria necessidade de justiça e da incapacidade para procurá-la apenas com as obras e, portanto, esperá-la humildemente de Deus. A outra interpretação vê na justiça «não a que Deus mesmo põe por obra ou a que Ele concede, mas a que Ele reclama do homem», em outras palavras, as obras de justiça.
À luz desta interpretação, a mais comum e exegeticamente mais fundada, a fome material de Lucas e a fome espiritual de Mateus já não carecem de relação entre si. Estar do lado dos famintos e dos pobres entra nas obras de justiça e será, mais ainda, segundo Mateus, o critério segundo o qual ocorrerá ao final a separação entre justos e injustos (Cf. Mt 25).
Toda a justiça que Deus pede do homem se resume no duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo (Cf. Mt 22, 40). É o amor ao próximo portanto o que deve impulsionar os que têm fome de justiça a preocupar-se dos famintos de pão. E este é o grande princípio através do qual o Evangelho atua no âmbito social. Quanto a este ponto, havia-o percebido adequadamente a teologia liberal:
«Em nenhuma parte do Evangelho – escreve um de seus mais ilustres representantes, Adolph Von Harnack – encontramos que ensine a nos mantermos indiferentes perante os irmãos. A indiferença evangélica (não se preocupar com o alimento, as vestes, o amanhã) expressa mais que tudo o que cada alma deve sentir ante o mundo, seus bens e suas lisonjas. Quando se trata, em contrapartida, do próximo, o Evangelho não quer nem ouvir falar de indiferença, mas que impõe amor e piedade. Ademais, o Evangelho considera absolutamente inseparáveis as necessidades espirituais e temporais dos irmãos».
O Evangelho não incita os famintos a se fazerem sozinhos na justiça, ao se lançarem, também porque nos tempos de Jesus – diferentemente de hoje – aqueles não tinham instrumento algum, nem teórico nem prático, para fazê-lo; não lhe pede o inútil sacrifício de ir a deixar-se matar detrás de algum agitador ou qualquer Espártaco local. Jesus atua sobre a parte forte, não sobre a parte débil; afronta, Ele, a ira e o sarcasmo dos ricos, não deixa que sejam as vítimas as que o façam.
Buscar a todo custo, no Evangelho, modelos ou convites explícitos dirigidos aos pobres e aos famintos para que se empreguem em mudar sozinhos a própria situação é vão e anacrônico, e faz perder de vista a verdadeira contribuição que ele pode dar a sua causa. Neste caso tem razão Rudolph Bultmann quando escreve que «o cristianismo ignora qualquer programa de transformação do mundo e não tem propostas a apresentar para a reforma das condições políticas e sociais», se bem que sua afirmação necessitaria de alguma distinção.
O modo das bem-aventuranças não é o único para enfrentar o problema da riqueza e pobreza, fome e saciedade; há outros, feitos possíveis pelo progresso da consciência social, aos quais justamente os cristãos dão seu apoio e a Igreja, com sua Doutrina Social, seu próprio discernimento.
Existem planos e aspectos da realidade que não se percebem à simples vista, mas apenas com a ajuda de uma luz especial, raios infravermelhos ou ultravioletas. Usa-se amplamente nas fotografias de satélite. A imagem obtida com esta luz é muito diferente e surpreendente para quem está acostumado a ver o mesmo panorama à luz natural. As bem-aventuranças são uma espécie de raios infravermelhos: nos oferecem uma imagem diferente da realidade, a única verdadeira, porque mostra o que ao final permanecerá, quando tiver passado «o esquema deste mundo».
Site Frei Raniero Catalamessa