Sabemos que para desfrutar tudo o que as boas obras literárias têm a nos oferecer, não basta apenas abrir um livro e começar a ler, pois é preciso, antes de tudo, certificar-se de que aquela leitura tem algo a acrescentar à nossa vida, seja ela uma ficção, um livro histórico ou de espiritualidade.
E quando se trata de livros espirituais, nosso cuidado precisa ser redobrado, para que essas leituras venham a nos impulsionar cada vez mais ao amor e conhecimento verdadeiro de Deus, e não ao contrário.
Passada esta primeira etapa e já tendo escolhido um bom livro de espiritualidade, sempre utilizando critérios fundamentais, como: a idoneidade do autor, a concordância plena com a doutrina católica e com a Sagrada Escritura, vamos elencar as dicas oferecidas pelo padre dominicano Reginald Garrigou-Lagrange em seu livro As três idades da vida interior, para que possamos nutrir a nossa alma com um alimento sólido e salutar:
Começar pela oração
“Uma oração bem feita no início irá obter-nos a graça atual para ler com espírito de fé, evitando toda curiosidade inútil, a vaidade intelectual, a tendência a criticar o que se lê, em lugar de aproveitá-lo. O espírito de fé nos leva a procurar o próprio Deus nas obras espirituais”.
Como sabemos, fé e razão caminham de mãos dadas, ou como nos recordou São João Paulo II, são duas asas do mesmo pássaro, ambas essenciais para alçar o mais alto voo espiritual, portanto, uní-las por meio da oração antes de iniciar uma leitura espiritual é fundamental.
Colocar em prática o que foi aprendido
“É preciso também, como um desejo sincero e vivo de perfeição, aplicar-nos pessoalmente naquilo que lemos, em lugar de nos contentarmos com possuir um conhecimento teórico. Então, mesmo lendo o que se refere a ‘pequenas virtudes’, como diz São Francisco de Sales, colhe-se grande proveito, pois todas as virtudes são conexas com a mais elevada de todas, a caridade”.
Embora sejam inicialmente ensinamentos teóricos, o objetivo das leituras espirituais é favorecer o crescimento do orante, para que transborde no ordinário de sua vida. Desse modo, a conversão de cada fiel não ficará somente no mundo das ideias, mas seguirá o exemplo de Jesus Cristo, o Verbo de Deus que se encarnou.
Ter o hábito de retomar leituras fundamentais da fé
“Também é bom para as almas adiantadas reler algumas vezes o que convém aos iniciantes; elas irão revê-lo sob uma luz superior e ficarão espantadas com tudo o que ali se encontra virtualmente contido, como nas primeiras linhas de um pequeno catecismo sobre o motivo pelo qual fomos criados e colocados no mundo: ‘Para conhecer a Deus, amá-lo, servi-lo e assim obter a vida eterna’”.
Somos obras em construção, dessa forma, embora nossa essência permaneça a mesma, com o passar do tempo, nossos comportamentos e ações mudam substancialmente, por isso, em nossa caminhada espiritual é imprescindível a retomada das leituras basilares da nossa fé, como o Catecismo ou, no caso dos membros da Obra Shalom, dos Escritos do nosso fundador, pois certamente tais releituras nos proporcionarão um novo e amadurecido olhar sobre nosso chamado à santidade.
Perscrutar a meta
“Igualmente, é bom que os iniciantes, sem querer queimar etapas e ir mais depressa do que a graça, entrevejam toda a elevação da perfeição cristã. O fim a atingir, que é o último na ordem de execução, é o primeiro na ordem de intenção ou do desejo. É preciso, desde o início, querer alcançar a santidade, pois todos somos chamados a essa santidade que nos permitiria entrar no céu logo após nossa morte; de fato, ninguém passará pelo purgatório, a não ser pelas faltas que poderiam ter sido evitadas”.
Em todas as nossas ações, inclusive nas mais ordinárias, precisamos sempre recordar a meta da nossa vida: alcançar a santidade, por isso, nossas leituras também devem nos impulsionar para este fim, mesmo entre os que estão no começo da caminhada, ter sempre em vista o nosso fim último, o cumprimento da vocação a qual o Senhor nos chama à santificação dos nossos corações, é uma atitude fundamental.
Tal atitude pode vir a se tornar um bom critério para a escolha das nossas leituras: o livro que pretendo ler favorece a minha santificação? Se a resposta é “sim”, vamos em frente; se é “não”, o melhor é procurar outra opção de leitura mais proveitosa.
No caso, precisamos ter a consciência de que até os livros ficcionais que escolhemos ler em um momento de folga ou por hobby, podem influenciar positiva ou negativamente o nosso crescimento espiritual, dependendo do seu conteúdo. Por isso, é importante manter a atenção, inclusive, ao que lemos descompromissadamente, para passar o tempo ou descansar. Na dúvida, opte pelos clássicos, de preferência, os escritos por autores cristãos como Dostoiévski, J.R.R. Tolkien, Gertrud von le Fort, G. K. Chesterton, Flannery O’Connor ou Paul Claudel.
Não tenha pressa!
“Se os iniciantes e adiantados possuem verdadeiramente o vivo desejo de se santificarem, encontrarão na Sagrada Escritura e nas obras espirituais aquilo que lhes convém; ao lerem, eles ouvirão o ensinamento do Mestre interior. Para isso, é preciso ler lentamente, e não devorar os livros; é preciso deixar-se penetrar por aquilo que se lê. E então a leitura espiritual se transforma pouco a pouco em meditação, em conversação íntima com o hóspede interior”.
A gula não é um pecado que corresponde apenas à desordem no consumo de alimentos e bebidas, mas há também a gula espiritual, que é um desejo desordenado de ler centenas de livros, simplesmente pelo conhecimento adquirido ou para ser considerado um grande intelectual. Tal atitude esvazia o sentido da existência dessas obras de espiritualidade e desvaloriza o seu conteúdo, pois não permite que todo o seu potencial seja realizado na vida de seus leitores. Portanto, assim como a calma nos ajuda a saborear mais o gosto dos alimentos, também nos auxilia a aproveitar tudo o que as grandes obras espirituais têm a nos oferecer.
Ler e reler o que traz a marca de Deus
“Convém ainda reler, com alguns anos de intervalo, os livros muito bons que já nos fizeram bastante bem. A vida é curta e seria preciso contentar-se em ler e reler aquilo que traz verdadeiramente a marca de Deus, e não perder seu tempo com a leitura de coisas sem vida e sem valor. Vale mais deixar-se penetrar profundamente por um só livro como A Imitação de Cristo, do que ler superficialmente todos os autores espirituais”.
Por isso, uma boa e bem direcionada escolha a respeito dos títulos que vamos ler é fundamental para não perdermos tempo com aquilo que é nocivo à nossa alma ou que não nos ajudará a dar passos na santificação. Esta também é uma das missões do Bendita Leitura: oferecer dicas de livros que realmente valem a pena ser lidos, afinal, a vida é curta e só vale a pena quando é bem aproveitada.
Ler com piedade
“Além disso, como diz São Bernardo, é necessário ler com piedade, buscando não só conhecer as coisas divinas, mas as saborear. É por isso que São Bernardo nos diz: ‘suspenda-se a leitura para rezar’, então, verdadeiramente essa leitura será um alimento espiritual e irá dispor à oração”.
Quando temos uma vida de oração verdadeira e não apenas momentos de oração na vida, somos capazes de reconhecer a Deus, inclusive, na beleza da criação, por isso, para um verdadeiro contemplativo, o ato de apreciar uma bela paisagem provavelmente o fará recordar-se da bondade de Deus e isto o levará à oração, ao diálogo com seu Criador. Do mesmo modo, as boas leituras espirituais nos falarão tão claramente das misericórdias do Senhor, que nos farão mergulhar espontaneamente na oração, seja com uma súplica de conversão ou um louvor a Deus pelos Seus feitos em nossas vidas.
Colher os frutos
“Enfim, é preciso começar sem demora a pôr em prática o que se lê. Nosso Senhor diz, no final do Sermão da Montanha (Mt 7,24): ‘Todo homem que ouve estas palavras e as põe em prática assemelha-se ao homem sábio que construiu sua casa sobre a rocha’. Então, a leitura dará frutos, podendo produzir trinta por um, uma outra sessenta por um, e outra cem por um”.
Por fim, Garrigou-Lagrange nos recorda mais uma vez a necessidade de praticar o que foi aprendido, pois aí reside a verdadeira sabedoria dos que buscam a face do Senhor em todos os momentos da vida: encarnar os Seus ensinamentos para progredir em fé, esperança e caridade. Este é, sem dúvida, o maior fruto que se pode obter de uma boa leitura: o progresso interior que reflete no exterior.
O autor traz ainda o exemplo de Santo Agostinho, convertido por uma ordem de Jesus: “Toma e lê”, a qual obedeceu, tomando a Palavra em suas mãos e tornando-a concreta em sua vida. Também acrescentamos o exemplo de Santa Teresa Benedita da Cruz, convertida do ateísmo ao catolicismo após ler o Livro da Vida, de Santa Teresa D’Ávila.
Portanto, podemos concluir que as leituras espirituais podem gerar grande proveito na vida tanto dos que iniciam a caminhada com Deus, quanto dos que já estão avançados no percurso, basta que sigamos os passos certos, a fim de aproveitar os ensinamentos de vida que os mestres da espiritualidade nos oferecem desde os primeiros tempos da Igreja.
Boa leitura!