Dentre os elementos de uma obra literária, está a figura do narrador. Trata-se do sujeito que conta a história, que dá ritmo ao livro, que une os fatos, personagens, cenários, tempos, diálogos, enfim, é como se fosse um talentoso alfaiate, que vai dando forma aos tecidos, linhas e outros adereços da costura, até formar um belo traje de gala.
Um narrador conta a história em primeira ou terceira pessoa: pode narrar de forma onisciente, ou seja, saber tudo que se passa na trama; ser um dos personagens, que sabe tudo sobre si, mas não sobre as outras situações do livro; ou um narrador observador, que conta os fatos de fora, sem se envolver com o que acontece na ficção.
Dessa forma, o Bendita Leitura de hoje traz a dica de um clássico que, a seu tempo, revolucionou a forma de narrar um romance. Estou falando do excelente Memórias Póstumas de Brás Cubas, do mestre Machado de Assis.
Narrativa revolucionária
Brás Cubas é o narrador e, ao mesmo tempo, o personagem principal. Até aí não há nada de novo. Entretanto, existe um detalhe que faz toda a diferença na trama: ele resolve contar a história de sua vida depois de morto (Vale ressaltar que não há conexões entre a forma criativa de Machado para contar essa história e a doutrina espírita. Trata-se, tão somente, de uma invenção divertida e totalmente revolucionária do autor).
A maior vantagem disso tudo é que Brás Cubas, estando morto, tem uma total liberdade em narrar tudo o que aconteceu ao seu redor, não se preocupando se vai agradar ou desagradar ninguém, já que, de onde se encontra, nada pode ser feito contra sua pessoa. Como resultado, temos um texto divertido e que não se preocupa tanto com uma linha temporal exata, mas que nos transporta diretamente para o Rio de Janeiro dos tempos de Machado, por volta da segunda metade do século XIX.
Segundo narra o próprio autor, tal novidade literária em nada prejudica o desenvolvimento da trama, pois “tem todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método, sendo como é, uma coisa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão”.
Ademais, como em todas as obras machadianas, a linguagem utilizada é impecável e, em particular, o uso das técnicas da ironia e do humor fazem toda diferença na narrativa, que suavizam a tensão de alguns momentos difíceis dos quais Brás Cubas se recorda como, por exemplo, os delírios de sua agonia antes da morte, pelos quais confundiu um gato com um hipopótamo.
A obra na literatura brasileira
Em relação à importância da obra para a literatura brasileira, poderíamos citar inúmeras contribuições: é considerado o marco da transição do Romantismo para o Realismo; apresenta um personagem-narrador, até então, totalmente inovador; aborda questões da sociedade da época; apresenta-nos um personagem principal como alguém comum, não como os virtuosos heróis do Romantismo, mas um cidadão com todos os crus defeitos humanos, o que aproxima o personagem do público não por um estereótipo de perfeição, mas por uma verossimilhança bem trabalhada.
Por fim, a releitura deste livro (que muitos devem ter lido, a contragosto, nos tempos do ensino médio) é fundamental para que possamos colher o real valor literário da obra e do autor, livrando-nos dos traumas causados pelas obrigações escolares e nos abrindo para um mundo imaginário completamente fantástico, como é a imaginação machadiana. Vale a pena!
Ficha de Leitura
Capa comum: 356 páginas
Editora: Panda Books
Idioma: Português
Boa leitura!