Após termos falado nas semanas anteriores sobre Romeu e Julieta e sobre Otelo, continuando o nosso estudo sobre as tragédias de Shakespeare, esta edição do Bendita Leitura contemplará aquela que é vista por muitos como a principal obra da dramaturgia inglesa, Rei Lear. Os motivos de tão grande colocação estão não tanto na sua composição estrutural, já que, tecnicamente, outras tragédias, como Hamlet e Macbeth, ocupam um lugar de maior destaque, mas principalmente na sua grandiosa concepção. Escrita em torno do ano de 1605 e encenada pela primeira vez no ano de 1606, a história de um rei idoso que, após ter dado como herança a repartição de todo o seu reino às suas três filhas, sendo depois ludibriado por duas delas, dá início a uma tragédia emblemática na história da literatura.
A peça shakespeariana em questão se desenvolve basicamente entre o conflito de amor familiar ou laços sanguíneos e a ambição do poder. Vemos um velho rei abnegado que, de forma inusitada, dá todas as suas terras como herança para as três filhas que, em troca, pede para que as mesmas digam-no o quanto elas o amam. As duas primeiras elogiam-no de forma bajuladora. A última filha, Cordélia, mantém-se sóbria e não dá, em sua fala, grandes provas de amor ao rei. Este, por causa disso, repele-a, deserda-a e a dá sem dote ao rei da França.
O drama, realmente, é muito intenso e bem distribuído com relação aos muitos personagens que o compõe. Em poucas linhas, é quase impossível contá-lo de forma a contemplar todas as suas partes. Para termos uma ideia do quanto O Rei Lear representa na história da literatura, Harold Bloom, crítico americano, diz-nos acerca do temperamento do personagem principal:
Lear, assim como Otelo e Macbeth, não se destaca pela sua inteligência: não é aí que residem suas qualidades majestosas. Não há mais ninguém em toda literatura que possa competir com os enormes afetos de Lear, suas emoções turbulentas e sublimidades explosivas. Ele é criado em uma escala tão grandiosa que nem mesmo em Shakespeare encontra-se rival capaz de desafiá-lo. (p. 82)
O que talvez seja mais positivo neste drama a nível moral é a relação conflituosa e que depois se torna amorosa entre Lear e a sua filha mais nova Cordélia. Como dissemos, esta não bajula o pai no intuito de conseguir a sua herança devida. No entanto, ao contrário das irmãs, que depois de recebida a herança excluem e aos poucos rejeitam o pai, Cordélia o acolhe no momento em que o velho Lear mais necessitava. Lear, descido ao fundo do poço, sem nenhuma terra, o que na época era a principal riqueza e tendo a consciência da trapaça das filhas mais velhas, passa por um caminho de sofrimentos em que a sua única companhia é o seu querido bobo da corte, que jamais o abandona.
A história, vista apenas sobre o enfoque da relação entre Lear e a filha, lembra um pouco a narrativa bíblica do filho pródigo, passando agora a não ser mais o filho que abandona o pai, pedindo a sua herança, conforme relatado na parábola evangélica, mas sim, no texto literário, passa a ser o pai, que depois de repelir a filha mais nova, é aceito e acolhido pela mesma filha antes rejeitada.
De fato, vemos que a tragédia O Rei Lear ao explorar a relação conflito-reconciliação entre família e poder, abre-nos, assim, para uma reflexão muito pertinente acerca do homem. Talvez esta seja a obra mais abrangente de Shakespeare no sentido de ser a mais impactante e, como é próprio do universo literário construído por esse autor, deixa-se entrever que, através do espanto gerado, peculiar das grandes tragédias, há sempre um ensinamento capaz de nos enriquecer.
Referências
BLOOM, Harold. Anatomia da influência: literatura como modo de vida. Tradução de Ivo Korytowski, Renata Telles. 1 ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
Ficha
Origem: NACIONAL
Editora: MARTIN CLARET
Edição: 2
Assunto: Artes e Fotografia – Teatro
Idioma: PORTUGUÊS
Boa Leitura!