De maneira geral, livros que falam sobre peregrinações, sobre viagens são muito populares na literatura e na memória cultural de muitos povos. Dentre esses podemos recordar, por exemplo, a peregrinação do povo hebreu saindo do Egito em busca da Terra Prometida, episódio esse relatado no livro do Êxodo; outro exemplo é A Divina Comédia, de Dante, onde vemos o protagonista ir do Inferno ao Paraíso em busca de sua amada Beatriz; também podemos citar a epopeia portuguesa Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões, que retrata a ida de uma embarcação portuguesa, comandada por Vasco da Gama, saindo de Portugal em direção às Índias; outro exemplo são As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, que retratam as andanças do personagem principal em terras desconhecidas; e ainda as narrativas de Júlio Verne, como as Vinte mil léguas submarinas, e, por fim e mais recentemente, o livro de Jack Kerouac Pé na estrada.
Odisseia, de Homero, talvez seja o exemplo mais típico de tematização de uma viagem dentro do universo literário. Não apenas porque a viagem de Odisseu, personagem principal do livro, seja repleta de aventuras, de deuses mitológicos, de grandes desafios, etc., mas principalmente porque esse livro, escrito em forma de poema por volta do século VIII antes de Cristo (a. C.) e oriundo da tradição oral das primeiras comunidades gregas, retrata dimensões muito importantes acerca de uma reflexão mais aprofundada sobre o Homem.
Odisseia, se podemos assim dizer, é a continuação da Ilíada, livro também atribuído a Homero, que aborda os últimos momentos da Guerra de Troia, conflito ocorrido entre gregos e troianos por volta de 1200 a. C. Após o fim da guerra, os combatentes gregos retornam para as suas cidades de origem e, dentre esses está o grande guerreiro Odisseu. Se a Ilíada tem como personagem principal Aquiles, cuja valentia e coragem são os sentimentos que mais se sobressaem no grande herói grego, em Odisseia, vemos o guerreiro Odisseu, rei de uma das cidades gregas, ser constantemente desafiado pela natureza, pelos homens, pelos deuses, a demonstrar, através de sua astúcia e perspicácia, a capacidade do próprio Homem de vencer os desafios.
Odisseia não trata apenas de uma viagem, mas sim de um retorno. O retorno de Odisseu, após vinte anos, à sua cidade de origem Ítaca, da qual é rei. Retorno à sua cidade e também à sua esposa Penélope e ao seu filho Telêmaco, que era criança quando seu pai resolveu junto com seus homens ir à Guerra de Troia. Odisseu foi quem teve a ideia do famoso Cavalo de Troia, que deu aos gregos a vitória sobre os troianos. Assim como o Cavalo de Troia foi uma ideia que decidiu o término do conflito, muitas outras intuições Odisseu terá de ter para, agora nos mares da Grécia, navegar com seus companheiros em busca de sua terra.
Para esta jornada Odisseu conta com o auxílio da deusa da sabedoria Atena, filha de Zeus. Muito importante observarmos a aliança e amizade que há entre Odisseu e Atena. Esta sempre demonstrou grande afeição pelos gregos, ajudando-os mesmo no conflito contra os troianos, relatado na Ilíada. De fato, em Odisseia vemos dois planos que dialogam constantemente: o plano divino, com Poseidon, deus dos mares, inimigo de Odisseu, responsável por obstaculizar os caminhos do herói, e principalmente com Atena, que não só dialoga com Odisseu e com Telêmaco, mas também arquiteta planos e defende seu protegido ante os outros deuses. Atrelado ao plano divino, vemos o plano humano, onde se sobressaem a astúcia de Odisseu e a relação deste com seus companheiros e com seus inimigos; também vemos dentro deste plano a saudade da rainha Penélope e sua prudência e fidelidade ao tentar a todo custo adiar uma possível união sua com os muitos pretendentes que possuía, na esperança de que um dia seu esposo voltaria; e ainda também testemunhamos a coragem do filho de Odisseu, Telêmaco, que, apesar de ser jovem, sai pelos mares à procura do pai.
A primeira luta
Um dos momentos significativos da Odisseia é o embate entre Odisseu e Poseidon por conta da morte do filho, o ciclope (criatura gigante que possui apenas um olho) chamado Polifemo. O barco de Odisseu encalha numa ilhota onde moram Gigantes. Jean Pierre Vernant, em seu livro O universo, os deuses e os homens, comenta o episódio:
O Ciclope é imenso, gigantesco. Não percebe de imediato esses homenzinhos que parecem pulgas, que estão escondidos. Odisseu, naturalmente, conta-lhe histórias: ‘Meu barco quebrou. Somos gregos, combatemos violentamente com Agamêmnon nas praias de Troia, tomamos a cidade e agora estamos aqui como náufragos infelizes’. O Ciclope responde: ‘Sei, sei muito bem, mas não tenho nada a ver com essas tuas histórias’. Agarra pelos pés dois companheiros de Odisseu e arremessa-os contra a parede do rochedo, explode a cabeça dos dois e os engole, crus.[1]
Diante da inflexibilidade do Ciclope, Odisseu tenta ludibriá-lo, oferecendo um presente. A partir disso inicia-se um diálogo mais brando entre os dois. Odisseu se apresenta com o nome “Ninguém”. O Ciclope, mais adiante, embriaga-se com vinho dado pelo herói grego, e em seguida adormece:
Odisseu tem tempo de pegar um enorme tronco de pinheiro, talhá-lo em ponta e pô-lo no fogo até ficar em brasa. Cada marinheiro sobrevivente participa do trabalho de marcenaria e, a seguir, da manobra consiste em enfiar o pau em brasa no (único) olho do Ciclope, que acorda aos berros. (…) Os Ciclopes das redondezas acorrem: ‘Polifemo, o que tens? (…) Mas quem te fez mal?’. Polifemo responde: ‘Ninguém’.[2]
Odisseu, usando da astúcia, consegue enganar o Ciclope, não revelando no primeiro momento seu nome verdadeiro, causando, assim, incompreensões por parte dos outros Ciclopes. O duelo contra o grande monstro lembra outros duelos ao longo da história da literatura entre o desfavorecido fisicamente, mas com grande perspicácia e astúcia, e o gigante, que como tal é privilegiado pela força física, mas lento nos seus raciocínios. Podemos citar como exemplo a figura do rei Davi que, quando jovem, vence o duelo contra o filisteu Golias. Pelo próprio fato de Odisseu ter vencido o Ciclope mais pela inteligência do que pela força, dá-nos a entender que o caminho que o rei grego irá percorrer até chegar à sua amada Ítaca será trilhado ou vencido pela Sabedoria.
Após passar pela ilha da deusa-feiticeira Circe, onde por algum tempo ficou preso, Odisseu, depois de ter convencido a deusa a libertá-lo vai, aconselhado pela mesma, ao Hades, onde habitam aqueles que já morreram, a fim de encontrar o sábio Tirésias, que o auxiliará, por meio de profecias, a chegar em sua cidade. Tirésias é o famoso adivinho e profeta da cidade grega Tebas, o mesmo que anunciou terríveis desígnios ao rei Édipo.
Odisseu e Aquiles
No Hades, Odisseu não apenas encontra dentre os mortos Tirésias, mas também sua mãe Anticleia e, sobretudo, muitos dos seus companheiros mortos por conta da Guerra de Troia ou por conta de suas consequências, como Ajax, Agamêmnon e Aquiles. Este último dialoga com Odisseu:
Ora não venhas, solerte Odisseu, consolar-me na morte, pois preferira viver empregado em trabalhos no campo sob um senhor sem recursos, ou mesmo de parcos haveres, a dominar deste modo nos mortos aqui consumidos. (…) Se como seu defensor, a luz bela do sol de Troia ainda visse, do mesmo modo que outrora nas vastas planícies de Troia num grande povo a matar, em defesa dos fortes Argivos (gregos)…[3]
Aquiles, como vimos na Ilíada, mesmo sabendo premeditadamente da sua morte no conflito, prefere entrar na Guerra de Troia, escolhendo, assim, a glória e a perpetuação na memória do povo que adviriam com o sucesso no conflito ao invés de uma longa vida no anonimato. O encontro entre Aquiles, que foi morto, realmente, no conflito, e agora vive no Hades, e Odisseu, que vive e só está de passagem pelo reino dos mortos, é muito relevante. Aquiles tem remorsos, porque não pode rever seus parentes, nem lutar com os seus companheiros. Os gregos tinham por Aquiles como modelo de valentia, de alguém que jamais se arrependeu de uma decisão tomada. Odisseu é aquele em cuja astúcia e sabedoria se apoiam todos os seus atos heroicos. Aquiles representa, se assim podemos dizer, um tempo em que a força e a habilidade se faziam necessárias para vencer os inúmeros conflitos que se instauraram na Grécia Antiga, já Odisseu está muito mais para alguém que, com inteligência e, portanto, com mais humanidade, age talvez mais para conciliar do que para dispersar.
A Ilíada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina exclusivamente o espírito heroico. (…). Na Odisseia, ao ideal da destreza guerreira se junta a elevada estima das virtudes espirituais e sociais destacadas. O seu herói é o homem a quem nunca falta o conselho inteligente e que para cada decisão acha a palavra adequada.[4]
O encontro com os mortos ou a descida ao reino dos mortos não é novidade na Literatura. Podemos citar por exemplo Dante que, na Divina Comédia, à procura de sua amada Beatriz, vai do Inferno, passando pelo Purgatório até chegar ao Paraíso; ou mesmo podemos citar a Tradição Católica que crê na descida de Jesus à mansão dos mortos, após sua morte, na intenção de libertar os justos que O tinham precedido. No caso da Odisseia, o diálogo entre os dois heróis representa, como falamos, a distinção fundamental entre este livro e a Ilíada.
Um mendigo
Outro momento importante no livro é a chegada de Odisseu a Ítaca. Após ter passado pelas dificuldades marítimas vindas de Poseidon e mesmo de ter passado por um mar repleto de sereias, cujo canto entorpecia qualquer guerreiro, nosso herói chega à sua cidade de origem e se encontra com Atena. Esta diz-lhe:
Filho de Laertes (Odisseu), de origem divina, Odisseu engenhoso, ora convém refletir de que modo mais fácil consigas os pretendentes punir, que há três anos te a casa dominam e tua esposa divina cortejam com dádivas grandes. Cheia, porém, de tristeza, ela espera, ainda agora, tua volta.[5]
Penélope, por ser rainha, tem muitos pretendes que cobiçam o trono real deixado pelo rei Odisseu. Não apenas cobiçam, mas passam a habitar nas imediações do palácio e também dilapidam por meio de festas os bens do marido de Penélope. Esta sofre e, na tentativa de adiar uma possível união com um deles, promete a todos que se casará quando terminar de costurar um tecido que cobrirá o possível cadáver de seu esposo Odisseu. Penélope costura as linhas do tecido de dia, no entanto, à noite, desfaz o trabalho antes feito. Por três anos, a rainha consegue enrolar os pretendentes.
Diante de um ambiente hostil a Odisseu, pois com o palácio cheio de inimigos é impossível retornar à sua casa com tranquilidade. Atena concebe um plano que levará o herói grego de volta ao seu palácio e à sua esposa. Assim, ela diz a Odisseu:
Ora tenciono deixar-te dos homens irreconhecível, com te enrugar a epiderme macia nos membros flexíveis e da cabeça fazer que se extingam os louros cabelos. (…). Alterarei de tal forma, turvando-os teus olhos tão belos, que aos pretendentes reunidos pareças um mendigo.[6]
Atena transforma Odisseu em mendigo a fim de que este não se torne reconhecível aos seus inimigos e consiga adentrar nos aposentos reais. Após dizer isso, Atena convence o filho de Odisseu, Telêmaco, a retornar de sua viagem à procura do pai, a fim de que os dois, pai e filho, reencontrem-se.
A deusa grega, como vemos, orquestra, planeja tudo a fim de que o reencontro após vinte anos entre Odisseu, Penélope e Telêmaco aconteça. Mais do que isso, organiza as situações estrategicamente para que aquilo que é desarmonia ou conflito se transforme em paz. De fato, a transformação de um rei em mendigo será fundamental para que Odisseu recupere o trono real. Conforme a história vai sendo desenvolvida, vemos situações muito profundas que se depreendem com o reencontro de nosso herói com o filho e também com os criados que trabalham nos aposentos reais. De fato, o que se segue à transformação de Odisseu em mendigo é o desprezo, ignorância e retaliação sofridos por ele por parte dos pretendentes e, ao mesmo tempo, a simpatia e enternecimento que se dão entre o contato do mendigo disfarçado com os criados reais, que, de modo inusitado ou pela própria revelação de Odisseu, identificam o rei sob trajes maltrapilhos.
A fidelidade
A efetivação do reencontro entre os três, Odisseu, Penélope e Telêmaco, simboliza a paz estabelecida. A paz advinda após a guerra relatada na Ilíada. Agora, Ítaca volta a ter seu rei, Penélope volta a ter seu marido e Telêmaco volta a ter seu pai. Quando vemos a relação entre a paz e a reunião familiar, naturalmente percebemos valores próprios das relações humanas serem enaltecidos. A paz na Odisseia vem de um restabelecimento de relações anteriormente rompidas, como no caso da separação entre o rei e a rainha. Não apenas entre esses dois, mas também entre Odisseu e a própria deusa Atena, entre Odisseu e os criados, entre Odisseu e o seu filho e entre Odisseu e a cidade, junto com seus habitantes. Assim, Werner Jaeger, estudioso da Grécia Antiga, comenta:
Em vez das paixões das figuras sobre-humanas e dos trágicos destinos da Ilíada, deparamo-nos no novo poema com grande número de figuras de estatura mais humana. Todos têm algo de humano e amável. O intercâmbio entre os homens tem algo de altamente civilizado.[7]
Não apenas algo meramente civilizado, mas principalmente educador. Os vinte anos que separaram Odisseu de sua família não mudaram o seu desejo pelo reencontro. A fidelidade que os principais personagens possuem, como Telêmaco, que desejoso de reencontrar o pai sai à sua procura, a própria deusa Atena, que jamais abandona Odisseu em sua jornada, as criadas que, depois de vinte anos, ao reconhecerem o rei disfarçado de mendigo vão ao seu encontro, e principalmente Penélope, que, mesmo sendo constrangida pelos inúmeros pretendentes, desejosos de ocupar o trono real, permanece fiel ao esposo. O que torna o livro Odisseia ser, como colocamos no título deste texto, a viagem mais famosa de todos os tempos, não é tanto a mudança de cenário ou de lugares observadas, como é próprio de uma viagem, mas é principalmente que, não obstante a grande separação entre os personagens, há entre eles uma perfeita estabilidade de conduta humana.
[1] VERNANT, Jean-pierre. O universo, os deuses e os homens. Tradução de Rosa Freire d´Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 103.
[2] _______, O universo, os deuses e os homens. Tradução de Rosa Freire d´Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 106.
[3] HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, p.197.
[4] JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 40-45.
[5] HOMERO, Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, p. 225.
[6] HOMERO, Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, p. 227.
[7] JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 45.
Ficha de Leitura
Livro: Odisseia
Ano: 2016
Páginas: 64
Idioma: Português
Editora: L&PM Editores