Conciliar fé e razão não só é possível, mas necessário para dar resposta aos problemas da modernidade: esta convicção marca o programa de vida de Joseph Ratzinger, reconhece o cardeal primaz da Espanha.
«Razão e fé no pensamento de Bento XVI» foi o tema abordado no final da quarta-feira pelo cardeal Antonio Cañizares, arcebispo de Toledo, na Embaixada da Espanha ante a Santa Sé, no marco de conferências-homenagem que a sede diplomática celebra por ocasião do 80º aniversário do Papa e seu segundo aniversário de eleição à sede petrina.
Em Bento XVI, «fé e razão caminham juntas, como essas duas asas das quais João Paulo II falou na [a encíclica] ‘Fides et ratio’, com a qual tanto se identifica o Papa atual», expressou o arcebispo da sede primaz da Espanha.
«Poderíamos afirmar, e não exageraremos — reconheceu –, que o programa de toda a sua vida como professor, como homem de pensamento, teólogo, mas também como pastor, não foi outro senão mostrar a necessidade e a possibilidade de conciliar a fé e a razão como resposta aos problemas da modernidade e como a chave existencial na construção da história em paz, em verdadeira convivência, em liberdade e com esperança.»
O magistério de Bento XVI se caracteriza por seu grande empenho na questão da verdade da fé cristã na atual situação histórica e em relação às formas de racionalidade que hoje prevalecem, constatou o vice-presidente da Conferência Episcopal Espanhola.
O Santo Padre «não é um pensador abstrato — disse — mas um homem situado no mundo, que pensa sobre as questões que envolvem o homem».
Por isso, «sua produção teológica é sempre concreta, baseada na grande realidade histórica da pessoa de Jesus de Nazaré, filho de Deus vivo, vindo em carne em um momento da história, com rosto humano, presente na Igreja; e enraizado no momento em que se vive».
Tornar possível que hoje também se chegue ao encontro entre o homem e o Evangelho — «para que o homem simplesmente seja, e seja em plenitude de vida humana e para sempre» –, é o que faz que a harmonia entre fé e razão seja uma prioridade para Joseph Ratzinger, «jovem ou maduro teólogo, bispo e cardeal prefeito; Papa», traçou o cardeal Cañizares.
A religião segundo a razão
Em seu percurso por momentos fundamentais na expressão do pensamento de Ratzinger, mencionou como este «propõe a originalidade do cristianismo, que radica no encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva».
Desta forma, seguindo Ratzinger, «o cristianismo não se vincula nunca a nenhum dos mitos», «mas com a verdade do ‘logos’: é a religião segundo a razão — assinalou o cardeal Cañizares –, refere-se a Deus como o Ser, como a Verdade; é a religião da Verdade», ainda que «o Deus cristão não seja só Verdade, mas também Amor».
«Esse Deus — prossegue — não é uma realidade inacessível a nós, que não podemos encontrar; ao contrário, o Deus bíblico ama o homem e por isso entra em nossa história»; «Deus tem um rosto humano, seu rosto é Jesus».
Em seu itinerário, a originalidade de Ratzinger está em «não renunciar à resposta que só pode ser oferecida desde a teologia, ou mais concretamente, da própria fé, que enriquece a razão, enquanto a razão, marginalizada da Revelação, empobrece a si mesma e deixa de ser condutora de uma sociedade com futuro», afirmou o cardeal primaz da Espanha, atualmente membro da Congregação vaticana para a Doutrina da Fé.
Daí também — constata — que Joseph Ratzinger não tenha resolvido «formular os problemas da Europa da modernidade sem perder de vista, mais todo o contrário, as propostas da razão ilustrada, que ia se distanciando da fé cristã, desprezando suas raízes».
Olhar dirigido à Europa
Segundo a perspectiva que o cardeal Cañizares ofereceu, «a tentativa de dissolver a história da Europa, de olhar para frente considerando o passado como parênteses ou mera etapa de crescimento, mas já superada, inclusive o cristianismo como um momento a superar, define com clareza, no pensamento do futuro e atual Papa, o que não é a Europa nem tem futuro para ela».
«A Europa, em um momento dado de sua história — continuou –, marcado pela ruptura incipiente de fé e razão e a introdução e conservação da dúvida como base do progresso, começou a desconfiar de si mesma e relegou suas raízes, o moral e o religioso, à privacidade, frente a uma configuração da vida pública na qual é válido unicamente o agnosticismo moral e religioso.»
Mas — advertiu, apontando o pensamento de Ratzinger — «relegar Deus ao âmbito do privado põe em perigo a sobrevivência da Europa, de uma sociedade democrática, de um Estado de Direito».
E Ratzinger insiste fortemente em que «não existe a possibilidade a longo prazo da sobrevivência de um Estado de Direito sob o dogma ateu em vias de radicalização extrema tal como se manifesta no crescente laicismo radical essencial e ideológico»; «não é possível uma democracia sem consciência, e esta sem estar referida aos valores cristãos», sintetizou o cardeal Cañizares.
Neste contexto, assinalou que «as crises da Europa são no fundo crises da modernidade», que «é o problema moral originado pela ruptura com a evidência dos princípios originários na natureza do homem, uma cisão entre a subjetividade e a objetividade, entre as pessoas, a natureza e a história, entre a criatura e Deus, entre a razão e a fé».
Um caminho possível
De acordo com o purpurado, Joseph Ratzinger propõe que a razão e a fé avancem de um modo novo, superando a limitação imposta pela própria razão ao que é empiricamente verificável, e gerando novos horizontes. «É a forma de conseguir o diálogo genuíno de culturas e religiões, de que precisamos com urgência hoje», afirmou, fazendo-se eco do Papa.
Quis igualmente esclarecer equívocos: «não pode haver nenhuma contraposição nem estranheza entre a fé cristã e a razão humana, porque ambas, apesar de sua diferença, estão unidas na verdade; ambas desempenham um papel ao serviço da verdade, ambas encontram seu fundamento originário na verdade».
A questão da verdade «é a questão fundamental que o homem deve enfrentar»; por isso, «a separação levada ao extremo entre a fé e a razão, e a eliminação da questão da verdade absoluta e incondicionada, da busca cultural e do saber racional do homem, são duas das questões mais graves de nosso tempo no Ocidente», que corre perigo «por causa daquelas separações ou contraposições», advertiu.
Antes de concluir, o cardeal Cañizares elogiou e agradeceu a valentia do Papa «para comprometer toda a amplitude da razão e a grandeza da fé inseparavelmente referidas em sua distinção», um caminho que chega à «sua grande encíclica que nos abre à grande razão de tudo, que é ‘Deus é amor’».
Fonte: Zenit