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Cidadanias comprometidas

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A mais importante riqueza de uma nação é a condição cidadã do seu povo. E o seu maior déficit é o comprometimento de sua cidadania. Cidadanias comprometidas devem ser as razões primeiras das preocupações de todos, e, para os que têm poder o horizonte das definições de prioridades, em se considerando o contexto global de uma sociedade. Dois vetores fortes configuram cidadanias comprometidas. A miséria e a riqueza são responsáveis fortes e determinantes da calamidade de cidadanias comprometidas. A miséria da grande maioria da população é uma afronta à cidadania. Uma afronta porque o direito de viver dignamente é igual para todos. Todos têm o mesmo direito de encontrar condições de trabalho e poder construir sua vida como dom, desabrochando para o bem dos outros, nisto encontrando a grande alegria de bem viver.

As feições da sociedade contemporânea se definem pela exclusão social perversa que está comprometendo cidadanias. Há um clamor surdo destas massas sobrantes. Um clamor surdo porque abafado pela indiferença de tantos descomprometidos e pelo jogo de interesses e legislações que privilegiam as razões que estão no coração das economias, sustentadas pela frieza dos seus números e pela eleição de uma modalidade desumana de organização da sociedade, justificando a imensa fatia dos miseráveis e aquela dos privilegiados. Este quadro de cidadanias comprometidas tem números e estatísticas abomináveis revelando descasos, mesquinhez, lentidão e consideração apenas dos grandes interesses em detrimento de tudo o que configura a cidadania bem vivida. Nestes dias, no cenário está a luta de catadores e catadoras do Brasil inteiro, em Belo Horizonte, realizando a sexta edição do Festival Lixo e Cidadania. De um lado, a grandeza, verdadeiro milagre, de homens e mulheres que dão a esta profissão o sentido de sua nobreza, reerguendo sua dignidade, pela honradez do trabalho realizado e pela conquista das condições mínimas indispensáveis para a vivência digna da cidadania. De outro lado, o esmagamento advindo de interesses que contemplam lucros, um conceito de modernização e a subrreptícia tendência à varredura de homens e mulheres, simples e pobres, dos cenários que querem configurar como feições para a sociedade moderna e avançada.

Este quadro de comprometimentos há de tocar consciências e exigir de cada um aquela postura de defesa e apoio das causas populares, sem atravancar o desenvolvimento indispensável, em favor destes mesmos, mas sem enxotá-los da participação garantida, em tudo, pelos direitos de sua cidadania. Estas cidadanias comprometidas nos remetem ao comprometimento de cidadanias em razão de um fator, muito simples e determinante de tudo, chamado honestidade em tudo o que se faz. Há de se convir que o veneno que corrói determinantemente este núcleo central da consciência humana vem da ganância pelas riquezas. O desejo desarvorado de sempre possuir mais está na raiz de tudo o que, neste momento, está em discussão na sociedade através dos meios de comunicação. Basta analisar noticiais e avaliar o que compromete o tempo de partidos, grupos, e diferentes instituições. É muito pouco o investimento em uma produtividade na linha da identidade destas instituições. A maior parte do tempo é averiguar atos de desonestidade, quase nunca comprovados, permanecendo impunes, alargando o fosso das cidadanias comprometidas na sociedade.

É curioso e assustador constatar que avança a cultura do interesse e do desejo de atingir metas de ganho e de acumulação a todo custo. Os mecanismos ficam sempre mais sofisticados permitindo o alastramento de uma cultura em que o valor maior da conduta individual e social não é mais a honestidade. O patrimônio que se quer ajuntar é o da riqueza, para além do justo e adequado de receber os resultados do próprio trabalho e de garantir, segundo diferentes responsabilidades, os compromissos que se tem. O desejo ganancioso da riqueza vai corroendo e assoreando este precioso núcleo que é o coração de toda consciência, o gosto e o empenho pela honestidade, em palavras e ações. A ganância, pois, no reverso da medalha das cidadanias comprometidas, é um caso sério e estarrecedor. Tão sério que vale sempre lembrar, pela atualidade, e pela força de intimação para se percorrer outra direção, o desabafo do respeitado e inesquecível Ruy Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”. Jesus ensina aos seus discípulos um grande remédio nesta recomposição do núcleo sustentador da honestidade e do gosto por sua prática. Ele diz: “Quem é fiel nas pequenas coisas também é fiel nas grandes, e quem é injusto nas pequenas também é injusto nas grandes. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 13,10.13)

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte


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