O fogo do amor de Deus pode ser vivido dentro de nós, na nossa humanidade, na nossa vida, como homens e mulheres inteiros, na nossa história, no nosso espírito, no nosso amar, no nosso agir, no nosso ser. Esse fogo, para se espalhar sobre a terra, precisa primeiro se espalhar em mim. Para que esse fogo possa queimar a Terra, precisa primeiro queimar em mim, purificar aquilo que sou.
Falaremos disso através da mediação da pessoa que mais inteiramente correspondeu ao desejo de Deus de trazer o fogo sobre a Terra. Na verdade, ninguém trouxe o fogo sobre a Terra como Nossa Senhora.
A criação em Gênesis
O livro do Gênesis fala que a Terra era sem forma e vazia. E a primeira coisa que Deus criou foi a luz. Fogo e luz, na Bíblia, estão muito relacionados. E a cada nova criação, completava-se um dia, e a cada nova aurora, Ele recomeçava a criação nesse hino litúrgico que é o capítulo 1 do Gênesis.
A última criação de Deus foi o homem e a mulher. Ele entregou o homem à mulher e a mulher ao homem para que vivessem um relacionamento de reciprocidade, para que se amassem e se doassem um ao outro como um auxílio de felicidade. O homem ama a mulher, entrega-se por ela, dá-se para que ela seja feliz e a mulher ama o homem, entrega-se a ele e se doa para o homem ser feliz. Dessa forma, eles estariam reproduzindo na Terra a mesma doação que a Trindade tem em si. O homem e a mulher foram criados à imagem e semelhança de Deus para esse tipo de amor, que tem o seu parâmetro na Trindade. É assim que a Trindade ama, é assim que devemos nos amar.
Quantos tipos de amor existem no mundo? Só um. Só existe o amor de Deus. Só o amor de Deus é amor! E esse amor de Deus se expressa de formas diferentes: no casamento, no celibato, entre irmãos espirituais de sangue, no sacerdócio, entre amigos. É o amor de Deus que se expressa de modos diferentes, mas é sempre o mesmo amor.
E o homem era muito feliz! Tudo era dia, no sentido de que no coração humano brilhava o fogo do amor. Quanto mais o homem amava a mulher, mais este fogo brilhava nele. Quanto mais a mulher amava o homem, mais este fogo brilhava nela, e mais os dois viviam em intimidade com Deus. A intimidade com Deus reside no amar, no orar para amar, no orar para ser amor, no orar para amar o irmão.
Uma promessa
Até que sobre a terra o aconteceu o pecado de origem, o primeiro pecado. E se estabeleceu no coração do homem a treva mais densa que pode existir. Mas Deus, em Sua misericórdia, fez uma promessa: “Colocarei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela”. Ou seja, Deus prometeu que criaria uma mulher, e que essa mulher seria novamente condutora da luz, seria a aurora, aquela que anunciaria e que traria a luz. E a partir desse momento, Nossa Senhora passou a existir como profecia.
Muitos e muitos séculos antes de nascer, Nossa Senhora foi anunciada pelo próprio Deus e se tornou uma profecia. O mundo será salvo e a salvação virá através de uma mulher. Diz o Papa João Paulo II, na carta Mullieris Dignitatem, que é aí que reside a dignidade da mulher. A dignidade mais alta da mulher reside no fato de ela ter sido aquela por quem, ou por cuja raça, ou por cuja irmã, que é Maria, veio à Terra o próprio Deus. Daí, Nossa Senhora começa a ser essa aurora, não tão bem entendida pelos que viviam naquela época, porém sempre esperada, sempre anunciada.
“Uma virgem conceberá e dará à luz um filho e esse filho será o Emanuel, o Deus conosco”. Os que viviam naquela época não entendiam, mas sabiam que o Messias viria através de uma mulher. Nossa Senhora foi profetizada como o sonho lindo de Deus.
Na promessa divina, Nossa Senhora vai avançando como aurora, brilhando como a lua, precedendo o sol – isso contagia a todos nós! Precedemos a Jesus, vamos como anunciadores e profetas, com a nossa vida, sendo aurora para Jesus.
Nossa Senhora e o fogo
E nas várias ocasiões em que a Palavra de Deus usa o fogo, podemos já ver Maria. Como não veríamos Maria grávida na imagem da sarça ardente, cheia de fogo, que queima sem consumir? Como não poderíamos ver em Maria grávida, o brilho deste Deus que é o “Eu Sou”, o “Deus Iahweh”? Quando Jesus foi encarnado, no seio de Maria, a chama viva do amor de Deus passou a viver no seio dela. E Nossa Senhora, com toda a certeza, brilhava, queimava de amor.
Como não veríamos Nossa Senhora na coluna de fogo que guiava o povo de Israel nas noites no deserto? Essa que é aurora do novo sol, é coluna de fogo que vai conduzindo, no deserto, o povo de Deus. De dia, eles viam a nuvem; à noite, viam a coluna de fogo. Como posso olhar para Maria e não ver dentro dela o incêndio de amor causado pela presença de Deus na sua alma, no seu corpo, na sua feminilidade, no seu serviço e nos seus atos de amor?
De maneira especial, como não ver a coluna de fogo em Maria, de pé, aos pés da cruz? É a coluna que indica: “Eis o salvador, eis o caminho”. Do mesmo modo que a coluna foi guiando o povo através do deserto, nas noites escuras e frias do deserto – onde a coluna de fogo andava, também andava o povo -, também Maria, de pé aos pés de Jesus que agoniza, estica-se e se torna, então, a consoladora, o amor que se dá, o amor que pensa mais na dor do outro que na sua dor.
Também temos de ver o mistério de Nossa Senhora no carro de fogo de Ezequiel. Aquele carro que Ezequiel nunca conseguiu descrever de maneira física, mas como um mistério de amor, de entrega e de salvação.
Como nós não veríamos Nossa Senhora como a mulher louvor, na fornalha ardente? Essa fornalha que arde sem queimar e enche de dança os três jovens e o anjo. Quando olhamos para o Magnificat, com o coração, com o corpo, com a alma em chamas de amor e de gratidão, Nossa Senhora também dança, glorifica, canta os louvores de Deus, ardendo sem se queimar.
Mulher de oração
Podemos ainda ver Nossa Senhora no fogo que queima o sacrifício de Elias e que destrói a idolatria. Sabemos que, pelo amor de união e pelo poder de intercessão que Deus deu a Nossa Senhora, ela destrói a idolatria.
Como não veríamos Nossa Senhora como a “mulher-oração” diante do fogo que queimava no Templo, diante do santo dos santos, o fogo perpétuo?
Nossa Senhora é também a mulher acolhida no fogo do lar. Nossa Senhora é a mulher oração, é a mulher aurora, é a mulher louvor, é a mulher com poder de intercessão, a mulher aos pés da Cruz e é também a mulher acolhimento, aquela que acolhe no fogo do lar. No lar de Nazaré, sempre havia fogo, porque sempre chegava alguém – um parente, um amigo – então, sempre havia pão quente. Era, portanto, uma casa quente, uma casa pronta para servir. Como o lar de Abraão e Sara, quando fizeram pão para os anjos; como o de Marta e Maria, que acolhiam Jesus com dois fogos diferentes, mas ambos muito eficazes: Marta com o fogo do fogão e Maria com o fogo do coração.
Há uma passagem de Baruc 3 que diz assim: “Brilham em seus postos as estrelas e se alegram; e as chama, e respondem: Aqui estamos. E jubilosas refulgem para o seu criador”. Como vocês sabem, a estrela também é fogo e é impossível não vermos Maria nas estrelas do céu, às quais o Senhor sustenta e para as quais o Senhor olha e chama, e elas, felizes, refulgem para o seu criador dizendo, cada uma: “Eis-me aqui”. É Nossa Senhora a “mulher-adoração”, que brilha para o seu Criador sem esperar recompensa; a “mulher-gratuidade”, que se dá sem ficar pedindo, mas brilhando, amando, dando…
Como não veríamos Nossa Senhora no êxtase da mulher esposa do Espírito, quando são derramadas as línguas de fogo, quando o fogo que brilhava dentro dela brilhou também fora?
Como não veríamos nos olhos de Nossa Senhora assunta ao céu o brilho do Cordeiro, que ilumina o céu, que não precisa mais de luz, porque o Cordeiro é a própria luz?
Como poderíamos deixar de vê-la em cada homem e em cada mulher que se enche de luz quando entra em contato com Cristo?
Como não ver, finalmente, Nossa Senhora na dignidade de cada mulher? Aqui cito João Paulo II: “Cada mulher, cuja extraordinária dignidade é manifestada na plenitude dos tempos, em Maria, elevada de forma sobrenatural à união com Deus, pela união entre mãe e filho que só a mulher tem como viver”.
Nossa Senhora é feliz por ser mulher
Às vezes somos acostumados a ver nossa Senhora como uma pessoa que não é gente, mas a graça a transforma na realização do sonho de Deus para você e para mim. E o que Deus quer é que Sua glória brilhe dentro de você e de mim, para que o mundo pegue fogo.
Quando Moisés falava com Deus face a face, tinha de esconder o rosto, porque se enchia de brilho. Nossa Senhora fala com Deus dentro, de coração para coração, e na face dela brilha a própria face de Deus.
Quais são as imagens de Nossa Senhora que vemos? Fátima, Lourdes, Rainha da Paz, Loretto, Guadalupe… Tem algo que não sei se vocês acham estranho, mas eu acho. Vemos as imagens de Nossa Senhora sozinha, como Fátima, Nossa Senhora das Graças, Guadalupe, Lourdes… vemos as imagens de Nossa Senhora com Jesus no colo e depois pula para a imagem de Nossa Senhora com Jesus morto, nos braços. Se eu fosse artista, queria pintar Nossa Senhora assim no chão, dizendo: “Ei, nenê, vem cá, com a mamãe”.
Queria pintá-la levantando as perninhas de Jesus e mudando a fralda dele; embalando Jesus num balanço ou levantando-o assim e dizendo: “Coisa linda da mãezinha!”, e a babinha de Jesus caindo no rosto dela, senão na boca, porque parece que menino acerta… Queria pintar Nossa Senhora dizendo: “Jesus, tá na hora de comer!” ou “Meu filho, você já escovou os dentes?” ou “Jesus, não dá certo pentear o cabelo para esse lado, você tem um redemoinho bem aqui”. Queria pintar Nossa Senhora com Jesus adolescente, não só lá no Templo, mas travando com Jesus um relacionamento de amizade. Essa mãe que dizia a São José: “José, pelo amor de Deus, espera aí, calma, olha que o menino é filho de Deus… José, larga esse menino devagar…”. Essa Nossa Senhora humana, mãe.
Essa Nossa Senhora que conversa com Jesus sobre as coisas de Deus, que conhece Jesus em profundidade e tem com Ele um relacionamento profundamente humano. Tudo o que é profundamente humano é profundamente divino e tudo que é profundamente divino, exceto Deus, em si próprio é profundamente humano.
Precisamos entender que Nossa Senhora é feliz por ser mulher, por ser gente, e sermos capazes de entender essa dignidade da qual o Papa fala.
Nossa Senhora serve porque ama
Um dia perguntaram a um grande mestre: “Mestre, quando é que o amor é verdadeiro?” O mestre respondeu: “Quando ele é fiel”. E perguntaram: “E quando é que o amor é profundo?” O mestre respondeu: “Quando ele sofre”. E perguntaram: “E que língua fala o amor?” O mestre respondeu: “O amor não fala, o amor ama”. Nossa Senhora foi serviço porque amou.
Em geral, quando se vai falar do serviço de Nossa Senhora, colocam-na na casa de Santa Isabel. Será que não podemos ver Nossa Senhora no serviço do ser e não no serviço do fazer somente? Não podemos ver Nossa Senhora que, ao ser mulher, ao ser mãe de Deus, amou e amando serviu a Jesus e a José e aos irmãos e aos vizinhos? É preciso ver que o serviço vai além do fazer. O amor de Deus em nós gera amor e atos de amor em nós.
O grande serviço de Nossa Senhora era amar. Nossa Senhora expressa o fogo de amor que queima dentro dela através do serviço, através da acolhida. “Onde reina o amor, ali se encontram olhos que sabem ver” [1].
Vamos todos aprender a ver com esses óculos, com o olho do coração. O que será acolher? J.S. Helliot escreveu: “Ah! O indizível conforto de nos sentirmos seguros com uma pessoa. Cresce a síndrome do pânico, cresce a desconfiança, cresce a insegurança, cresce a falta de ternura, a falta de acolhida. O conforto de não termos de pesar os nossos pensamentos, o conforto de não termos que medir as nossas palavras mas de podermos derramar as nossas palavras tais como são. O joio e o trigo misturados, sabendo que mão fiel os irá apanhar e os irá peneirar. Conservar o que merece ser conservado e depois, com o sopro da bondade, soprar fora o resto”.
Você não gosta quando você pode chegar para uma pessoa e saber que ela não vai jogá-lo fora? Você não gosta quando pode conversar com uma pessoa sem ter de medir os pensamentos nem as palavras, pois sabe que ela vai acolhê-lo com o seu joio e com o seu trigo? Saber que ela vai acolhê-lo como você é e depois peneirar o joio e o trigo e com o sopro da bondade soprar fora o joio e se alegrar pelo trigo que ficou? A acolhida.
Temos vivido num mundo de desconfiança, de defesas. Não era assim. E não é assim a acolhida de Nossa Senhora. Nossa Senhora e Jesus jamais exigiram que alguém mudasse para acolhê-los. Nossa Senhora, como Jesus, nos acolhe como somos, mas esquecemos essa ternura. Esquecemos Nossa Senhora, esquecemos que queremos ser acolhidos e não amamos os outros como gostaríamos de ser amados.
Nossa Senhora ensina a acolher
“Meu único desejo, homem, é ser o teu parente. Sejas tu negro ou acrobata, repouses ainda nas profundezas da guarda materna, vibre no pátio o teu canto de menina e dirija as tuas jangadas ao sopro do crepúsculo… Conheço bem a angústia da harpista solitária, da tímida mulher, no seio de uma família estranha. Conheço a solidão dos que envelhecem, mas homem, eu quero só ser teu companheiro. Eu te pertenço. Como a qualquer outro homem, eu te pertenço. Sem preconceito, sem desconfiança, sem medo. Eu te pertenço, como a qualquer outro homem, como a qualquer outra mulher, eu te pertenço. Suplico-te, não te recuses! Se isso pudesse acontecer meu irmão, ah! Se pudesse acontecer, que nós finalmente caíssemos nos braços um do outro”. [2]
Temos esquecido o acolhimento, temos esquecido a ternura. Temos feito de nossos grupos de oração e nossas comunidades, verdadeiras empresas que se levam como negócios de evangelização e se esquecem da ternura, se esquecem do olhar de ternura. Nem nos trocamos mais olhares de ternura. E Nossa Senhora pode vir em nosso socorro.
As nossas famílias, as levamos como um trem que passa rápido e que tem de parar em todas as estações, e nos esquecemos de olhar o outro com ternura, de acolhê-lo, de ver o outro com os olhos do coração. Nossa Senhora vive esse fogo de amor que queima no coração dela como serviço, acolhida. Nossa Senhora vive a força deste amor que ama nela, que a ama e a quem ela ama.
Nossa Senhora vive esse fogo na força do humilde amor. No livro “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoiévski, um monge russo diz as seguintes palavras: “Irmãos, não temais o pecado dos homens, amai os homens mesmo no seu pecado”. Não fique exigindo que as pessoas mudem ou sejam diferentes para você amar.
Se só existe um amor, Nossa Senhora amou com esse amor único, que é o amor de Deus. E o amor de Deus ama o homem pecador. E o amor de Nossa Senhora é esse fogo do amor de Deus que queima nela ama o homem pecador.
“Amai os homens mesmo em seu pecado, porque esta imagem do amor de Deus é também o cume do amor de Deus sobre toda a Terra. Amai toda a criação divina em seu conjunto e em cada grão de areia. Amai toda a neve e todo o raio de sol. Os animais, as plantas, todas as coisas. Amai particularmente as crianças, porque são como anjos, não têm pecado e existem para nos ensinar a ternura, para purificar os nossos corações e são para nós como uma profecia. Às vezes te vêm alguns pensamentos, especialmente quando tu te vês diante do pecado do mundo. Tu ficas perplexo e te perguntas: ‘eu devo reagir com a força ou devo escolher o humilde amor?’, e eu te digo: decida-te sempre pelo humilde amor, e diga sempre: ‘eu recorrerei ao humilde amor’. Se tomares esta decisão de uma vez por todas, poderás elevar o mundo inteiro. O amor humilde, o humilde amor é uma força formidável, a maior de todas, incomparável a qualquer outra força.” [3]
Nossa Senhora expressou esse fogo de amor que arde no coração dela, esse fervor que Deus pede hoje, que não é o fervor de orar forte, que é muito bom, mas este fervor que só existe e só é autêntico quando vem do amor, do amor concreto, do amor em ato, do amor sem preconceito, do amor sem medo.
Referências:
[1] “ubi amor, ibi est oculus”, expressão encontrada nos escritos dos teólogos medievais.
[2] Franz V. Werfel (Sérgio Milliet), Poema
[3] Fiódor Dostoiévski, em “Os Irmãos Karamazov”
Pintura que ilustra este artigo: Virgin of the Green Cushion, do italiano Andrea Solari (1507)
(Pregação ministrada no Fórum Carismático Shalom, em Fortaleza, em novembro de 2002. Mantido o tom coloquial)
Que lindo e edificante texto em todos os sentidos!
Oh Mãe ensina-nos e ajuda-nos a nos decidir pelo humilde amor que ele arda em nossos corações assim como em teu coração.Amém….