Vida como Autopoiésis
Para os chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, vida é a capacidade de conhecer ou de exibir uma conduta adequada, inerente ao ser vivo ao interagir com o meio, sem alteração de sua identidade, nem nos limites, nem no domínio de sua existência.
Vincent Bourguert, seguindo a linha autopoiética de Varela, afirma que “Francisco J. Varela define da seguinte maneira a ontogênese de um sistema vivo: ‘A história da conservação de sua identidade pela perpetuação de sua autopoiésis no espaço material’. A biologia contemporânea, dizíamos, mais que confirma a ideia aristotélica de autopoiésis. Sem adentrar na querela do finalismo, a noção de teleonomia proposta por J. Monod (e antes por Pittendrigh) não infringe fundamentalmente a ideia aristotélica de autopoiésis do ser vivo, pois retorna à ‘ideia de uma atividade orientada, coerente e construtiva’ sob a orientação de um programa chamado, precisamente, de ‘programa genético’”
A distinção entre o ser vivo e o ser inerte residiria, então, na chamada autopoiésis, ou seja, na capacidade do primeiro de ter em si mesmo o seu princípio de movimento, ou melhor, de ter em si a sua própria natureza, que lhe confere tanto movimento local, quanto o movimento de produzir-se a si mesmo. Assim, não é um ser movido por outrem, nem possui sua existência condicionada ao querer de um corpo estranho, mas é meio e fim em si mesmo.
Todavia, essa imanência autopoiética do ser vivo, traduz a necessidade da realização do transcurso do tempo, pois só através dele é possível notar crescimento, decaimento e a continuidade da vida. Assim, o ser vivo é aquele por si mesmo uno no transcurso do tempo e nele constrói a sua individualidade.
Dentro da Teoria da Evolução percebe-se que a origem da vida constitui uma incógnita. Embora, já se tenha descoberto como realizar em laboratório a síntese de aminoácidos, não se conseguiu, ainda, a síntese de elementos mais complexos tais como a um ser procarionte, por exemplo (o que significa dizer que não se sabe ainda como a vida surgiu ao certo, pois só assim seria possível a criação da vida em laboratório). Essas dificuldades levaram os pesquisadores a empenharem-se em descobrir qual elemento principal da composição vital, elemento este que deu origem ao processo denominado vida. Neste aspecto, existe um sério debate entre os que defendem a sua origem através da formação de ácidos nucléicos, ou um ancestral primitivo do mesmo, enquanto outros defendem a proteína, ou também algo que a ela se assemelhe, ainda que de forma menos complexa. Uma terceira teoria, entretanto, desloca o ponto de enfoque de “como a vida tenha começado”, para “como a vida se processa”. É essa teoria que concebe a vida como um sistema autopoiético, dando uma resposta mais satisfatória às grandes objeções enfrentadas pelas outras duas hipóteses. Forçoso, porém, é reconhecer, que independentemente de como a vida tenha começado, a existência dela significou um salto qualitativo, gerando assim uma diferenciação entre o ser vivo e o não-vivo.
Vida, portanto, é um processo autopoiético nos termos formulados por Varela, em que a essência do ser vivo é percebida e gerada pela perpetuação de sua individualidade no tempo e no espaço material. Seu processo é intrínseco, não havendo nada exterior que lhe confira unidade, mas é uma em si. Essa denomina sob um mesmo conceito um vasto conjunto de seres, diversos entre si, mas unidos por esse processo único dentro da natureza, no qual o homem está inserido.
O conceito de vida humana seria: processo autopoiético próprio do homem em todas as fases do desenvolvimento, desde o seu início até o seu fim.
Em relação à definição de homem, qual o início de sua vida e o seu fim, não bastará o conceito de indivíduo, porque nesse podem ser abarcados, senão todos, ao menos muitos dos seres vivos. Também não é suficiente dizer que o ser humano é um indivíduo descendente geneticamente de um homem com uma mulher, porque isto excluiria o primeiro ser humano. Ademais, a clonagem poderia trazer alguns problemas aparentes ainda que superáveis a este conceito menos complexo.
Por seu turno, não bastará também para conceituá-lo a existência do mesmo código genético, visto que descobertas científicas comprovam serem as diferenças genéticas muito pequenas entre as espécies e entre os indivíduos nelas contidos. Por isso mesmo, o critério atualmente utilizado na biologia é o da capacidade de cruzamento e geração de um novo ser da mesma espécie. Entretanto, esse critério, qual seja, a procriação, por estar presente em todos os seres, exige, pressupondo a individualidade, o complemento da natureza racional na definição do homem. Ademais, a capacidade de gerar filhos, em si também não pode ser considerada um conceito formado para definir ser humano, por existirem pessoas humanas incapazes para a procriação. Outra crítica que se pode fazer também é a geração de seres intermediários tendo em vista o cruzamento de duas espécies.
Portanto, o melhor conceito de homem deverá defini-lo como: indivíduo de natureza racional de mesmo código genético próprio dos homens, capaz em tese de com os seus pares gerar um novo ser da mesma espécie humana. Esse conceito, embora bastante extenso, não é capaz, como nenhum outro é, de definir com precisão algo tão complexo quanto o ser humano, por isso mesmo, a sua análise exige um olhar criterioso, não devendo seus elementos serem tidos como absolutos.
Na decomposição do conceito, vê-se que é formado por quatro elementos: indivíduo, natureza racional, código genético e capacidade procriativa.
I. Indivíduo
O primeiro elemento é o indivíduo, que, para nós, corresponde inicialmente à definição de substância individual (Substância na filosofia corresponde a corpo e alma) presente no conceito de pessoa de Boécio, mas, ao mesmo tempo, o substitui para aqueles em que ainda perdura o preconceito a respeito do conceito de alma, mesmo que na filosofia grega não se emprestasse o sentido que se tem hoje. Assim, o conceito de indivíduo é mais adequado por não padecer de tal preconceito.
Indivíduo pode ser definido como um ser em si mesmo uno no tempo, sendo sua individualidade imanente ao seu ser, possuindo em si mesmo o movimento e a causa de sua existência, como já foi dito acima. Esse ser unitário o é por ser uno em si mesmo e por ser destacado do seu ambiente, já a capacidade de locomoção apenas acentua o destaque do ser em relação ao meio, que é o ponto crucial de sua individualidade. Esse critério, todavia, seria questionável (destaque do ambiente) ante ao pequeno número de elementos naturais constituintes da matéria (Pequeno em relação ao grande número de substâncias conhecidas. Seria também uma objeção, porque o ambiente e o indivíduo são formados pelos mesmos elementos, retirando o destaque do ser em relação a paisagem), bem como pelo fato de na composição dos organismos existirem mais espaços entre si do que matéria propriamente.
Esses dados afetam tanto o destaque do ambiente como a unidade interna do indivíduo, sendo impossível encontrar-se um indivíduo, no sentido de um ser indivisível como a escolástica o definiu, ante as frequentes possibilidades de subdivisão dos elementos que compõem a matéria (Subdivisão dos nêutrons, elétrons, prótons). O conceito de indivíduo, porém, subsiste ao se imaginar o ser orgânico que, embora seja composto por várias partes, o seu conjunto não é mero agregado, mas um todo unitário e transcendente a um simples somatório, de onde emergem em si novas propriedades. Dando um exemplo mais simples da água, embora o composto não se enquadre como ser vivo: vê-se que é composta por hidrogênio e oxigênio, sem que estes elementos, contudo, tragam em si as características próprias do composto, do mesmo modo que, ao separá-los, a água já não mais existe. Assim também ocorre com o indivíduo.
Os compostos não-vivos, por sua vez, não sendo indivíduos, também não têm em si a capacidade de se autoproduzirem. Em outras palavras: água não produz água. Já o indivíduo se autoproduz (autopoiésis). Sua individualidade é construída no tempo, pois é a sua permanência no tempo que prova sua individualidade, num processo em que os seus elementos são renovados, mas o seu ser permanece, por isso todo indivíduo possui um início e um fim.
II. Natureza Racional
O segundo elemento do conceito de homem é a natureza racional. Natureza é o movimento inerente do ser. Já racionalidade, em sentido sociológico na visão de Habermas, pode ser entendida por uma ótica realista, ou sob uma visão fenomenológica. No primeiro caso, limita-se a determinadas condições como: controle atual ou potencial do agente passível a um juízo crítico; a direção da conduta à consecução de um determinado propósito, o juízo de valor relativo ao agente e a sua eleição de fim; os juízos sobre a razoabilidade ou não razoabilidade presentes se se conhece, ao menos de forma parcial, a acessibilidade e eficácia dos meios; e o juízo de valor respaldado em motivos.
No segundo caso, os aspectos objetivos do mundo se submetem ao reconhecimento e consideração da comunidade formada por sujeitos capazes de linguagem e ação. O estudo da racionalidade, portanto, seja qual for referencial, não investiga se uma catástrofe natural é racional ou não, mas a investigação racional se debruça sobre a cultura, onde se pode falar em imputação moral. Parece que, deste modo, o conceito de racional faz referência direta ao ser humano, o que justificaria sua inclusão na definição de homem como fator de distinção, porém vem enfrentando algumas oposições nesse sentido.
Da potencialidade, da eficácia e do embrião
No feto, a consciência do saber e a autossuperação, bem como a liberdade, existem em potência, mas não o tornam ser humano em potência, pois a natureza existe e se expressa em duas formas: potência e efetivação, só podendo efetivar-se o existente prévio. Efetivação é questão de eficácia, não de existência da natureza.
Falar, contudo, em potência parece ser um subterfúgio para dar a algo uma característica que ela não possui, precisando explicar melhor a questão da potência do ser.
Potência é uma capacidade não manifestada de uma determinada natureza, mas nela existente. Parece, todavia, pressupor movimento, pois nele se percebe a existência de algo não manifestado antes e agora perceptível, porém, também se verifica em objetos estáticos.
A potência revela a natureza do ser, por isso ela não pode transformar uma natureza em outra. Um exemplo disso é que um peixe não é potência de um ser humano, nem ser humano potência do peixe, porque as naturezas são diferentes. Só se pode falar em potência dentro da mesma natureza, mas potência não existe em relação à natureza, mas em relação à efetividade. Assim, quando se fala que determinados indivíduos têm certas características humanas em potência, não quer dizer que seja humano (natureza) em potência, mas que, por ser um ‘ser humano’, tem certas características próprias dos humanos já efetivadas ou por efetivar. Toda natureza, também, só o pode ser em abstrato, pois se fosse específica não serviria para definir vários seres, mas só serviria a um ser. Ao contrário, ela reúne em si aquilo que se é em potência e aquilo que se é em efetivação. A natureza manifesta-se como tendência, podendo ser verificada, ou afastada, mas existindo em abstrato. O ser humano tende a racionalidade e é isso que o faz humano, não a sua efetivação.
De outro lado, integrando a racionalidade humana o conceito, deve a mesma ser vista apenas como um elemento da humanidade, nunca podendo definir o homem por inteiro. Embora possa ser absoluta como conceito, como elemento de outro não passa de mero componente e sozinha não define o indivíduo humano, nem tão pouco define pessoa. Por último, a natureza racional abstrata também se justifica porque, mesmo que fatores externos ou internos inibam a efetivação, a capacidade de autossuperação faz com que o sujeito possa ir além dos limites impostos pela biologia realizando a potência contida no ser. Não se opõe a explicitação da natureza racional formada pelo código genético e a ancestralidade do fenômeno conhecido como mola, porque a sua natureza é toda patológica, constitui uma neoplasia, não um ser. Já uma mera deformação genética do concepto com ela também não se confunde, pois apenas deforma elementos, mas não desnatura o ser, como faz o câncer. Embora, não seja possível neste trabalho a conceituação da distinção entre uma deformação genética e a mola, existe diferença fática e, portanto, é possível uma diferença teórica.
III. Código Genético
O terceiro elemento do conceito de homem é o código genético. Nesse tópico é importante explicitar que o ser humano possui dentro de si diversos fatores e dentre eles está o biológico. Embora esse elemento sozinho não seja adequado como conceito, quando colocado em conjunto com outros elementos, cumpre bem sua finalidade de definição.
Ademais, mesmo com as semelhanças evidentes entre espécies, sempre é possível definir quando se trata de DNA humano, ou animal, embora futuras experiências com o genoma humano possam tornar esse elemento não tão confiável.
IV. Procriação
O quarto elemento do conceito de homem é a capacidade de gerar filhos da mesma espécie e que já está suficientemente explicado. Cumpre apenas ressaltar que essa capacidade em si também não pode ser considerada um conceito formado, por existirem pessoas incapazes para a procriação e por esta característica estar presente em diversos seres vivos.
Demonstrada está, por seu turno, a necessidade de recorrer-se sempre aos demais elementos do conceito e analisá-los em conjunto, nunca absolutizá-los. É impossível caracterizar o ser humano plenamente, pois sempre haverá exceções em uma série de variáveis. É preciso uma análise global e não superficial do assunto, como parece ser feita por aqueles que se apegam a um predicado apenas do ser humano para desqualificar o feto como humano.
Esses opositores defendem a não-vida humana do embrião, gerando confusão a tal ponto de, no senso comum, afirmar-se que o embrião não possui vida. Não é bem assim. Não há quem negue, mesmo àqueles que defendem o aborto como atitude lícita, que o feto é vida. Não é pacífico, no entanto, embora sem fundamento científico real, a vida humana no feto. Porém sem o reconhecimento do feto como vida, o diálogo beira a irracionalidade.
De posse do conceito de homem, não há como negar que o embrião é um indivíduo de natureza racional, de mesmo código genético próprio dos homens, capaz de com os seus pares gerar um novo ser da mesma espécie humana (embora a capacidade de reprodução só seja atingida na fase adulta, isso nem de longe chega a ser uma objeção forte, pois as crianças e os bebês também não podem reproduzir a espécie e é inegável sua condição humana).
Thiago Victor Rodrigues Freire
Mestre em Direito pela Universidade de Haifa. Excerto da Monografia de Graduação apresentada em 2010 com o título: A legitimidade do aborto enquanto crime (Universidade Federal da Bahia – UFBA)
Falar sobre o direito à vida implica responder a questões como: Quando a vida começa e quando termina? Qual o valor da vida humana? A teologia moral influencia o agir humano? Quais as implicações morais e sociais do aborto, da fecundação artificial, da eutanásia e do suicídio assistido? O que são os cuidados paliativos ou cuidados em fim de vida?
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