Formação

Cristologia da Palavra

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11. A partir deste olhar sobre a realidade como obra daSantíssima Trindade, através do Verbo divino, podemos compreender as palavrasdo autor da Carta aos Hebreus: «Tendo Deus falado outrora aos nossos pais,muitas vezes e de muitas maneiras, pelos Profetas, agora falou-nos nestesúltimos tempos pelo Filho, a Quem constituiu herdeiro de tudo e por Quemigualmente criou o mundo» (Hb 1, 1-2). É estupendo observar como todo o AntigoTestamento se nos apresenta já como história na qual Deus comunica a sua Palavra:de facto, «tendo estabelecido aliança com Abraão (cf. Gn 15, 18), e com o povode Israel por meio de Moisés (cf. Ex 24, 8), revelou-Se ao Povo escolhido comoúnico Deus verdadeiro e vivo, em palavras e obras, de tal modo que Israelpudesse conhecer por experiência os planos de Deus sobre os homens, oscompreendesse cada vez mais profunda e claramente, ouvindo o mesmo Deus falarpor boca dos profetas, e os difundisse mais amplamente entre os homens (cf. Sl21, 28-29; 95, 1-3; Is 2, 1-4; Jr 3, 17)».[32]

 Esta condescendência de Deus realiza-se, de modoinsuperável, na encarnação do Verbo. A Palavra eterna que se exprime na criaçãoe comunica na história da salvação, tornou-se em Cristo um homem, «nascido demulher» (Gl 4, 4). Aqui a Palavra não se exprime primariamente num discurso, emconceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de Jesus.A sua história, única e singular, é a palavra definitiva que Deus diz àhumanidade. Daqui se compreende por que motivo, «no início do ser cristão, nãohá uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento,com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumodecisivo».[33] A renovação deste encontro e desta consciência gera no coraçãodos fiéis a maravilha pela iniciativa divina, que o homem, com as suas própriascapacidades racionais e imaginação, jamais teria podido conceber. Trata-se deuma novidade inaudita e humanamente inconcebível: «O Verbo fez-Se carne ehabitou entre nós» (Jo 1, 14a). Estas expressões não indicam uma figuraretórica mas uma experiência vivida. Quem a refere é São João, testemunhaocular: «Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como Filho únicocheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14b). A fé apostólica testemunha que aPalavra eterna Se fez Um de nós. A Palavra divina exprime-se verdadeiramente empalavras humanas.

 12. A tradição patrística e medieval, contemplando esta«Cristologia da Palavra», utilizou uma sugestiva expressão: O Verboabreviou-Se.[34] «Na sua tradução grega do Antigo Testamento, os Padres daIgreja encontravam uma frase do profeta Isaías – que o próprio São Paulo cita –para mostrar como os caminhos novos de Deus estivessem já preanunciados noAntigo Testamento. Eis a frase: “O Senhor compendiou a sua Palavra,abreviou–a” (Is 10, 23; Rm 9, 28). (…) O próprio Filho é a Palavra, é o Logos:a Palavra eterna fez-Se pequena; tão pequena que cabe numa manjedoura. Fez–Secriança, para que a Palavra possa ser compreendida por nós».[35] Desde então aPalavra já não é apenas audível, não possui somente uma voz; agora a Palavratem um rosto, que por isso mesmo podemos ver: Jesus de Nazaré.[36]

 Repassando a narração dos Evangelhos, notamos como a própriahumanidade de Jesus se manifesta em toda a sua singularidade precisamentequando referida à Palavra de Deus. De facto, na sua humanidade perfeita, Elerealiza a vontade do Pai a todo o momento; Jesus ouve a sua voz e obedece-Lhecom todo o seu ser; conhece o Pai e observa a sua palavra (cf. Jo 8, 55);comunica-nos as coisas do Pai (cf. Jo 12, 50); «dei-lhes as palavras que Tu Medeste» (Jo 17, 8). Assim Jesus mostra que é o Logos divino que Se dá a nós, masé também o novo Adão, o homem verdadeiro, aquele que cumpre em cada momento nãoa própria vontade mas a do Pai. Ele «crescia em sabedoria, em estatura e emgraça, diante de Deus e dos homens» (L c 2, 52). De maneira perfeita, escuta,realiza em Si mesmo e comunica-nos a Palavra divina (cf. L c 5, 1).

 Por fim, a missão de Jesus cumpre-se no Mistério Pascal:aqui vemo-nos colocados diante da «Palavra da cruz» (cf. 1 Cor 1, 18). O Verboemudece, torna-se silêncio de morte, porque Se «disse» até calar, nada retendodo que nos devia comunicar. Sugestivamente os Padres da Igreja, ao contemplaremeste mistério, colocam nos lábios da Mãe de Deus esta expressão: «Está sempalavra a Palavra do Pai, que fez toda a criatura que fala; sem vida estão osolhos apagados d’Aquele a cuja palavra e aceno se move tudo o que temvida».[37] Aqui verdadeiramente comunica-se-nos o amor «maior», aquele que dá avida pelos próprios amigos (cf. Jo 15, 13).

 Neste grande mistério, Jesus manifesta-Se como a Palavra daNova e Eterna Aliança: a liberdade de Deus e a liberdade do homemencontraram–se definitivamente na sua carne crucificada, num pacto indissolúvel,válido para sempre. O próprio Jesus, na Última Ceia, ao instituir a Eucaristiafalara de «Nova e Eterna Aliança», estabelecida no seu sangue derramado (cf. Mt26, 28; Mc 14, 24; L c 22, 20), mostrando-Se como o verdadeiro Cordeiroimolado, no qual se realiza a definitiva libertação da escravidão.[38]

 No mistério refulgente da ressurreição, este silêncio daPalavra manifesta-se com o seu significado autêntico e definitivo. Cristo,Palavra de Deus encarnada, crucificada e ressuscitada, é Senhor de todas ascoisas; é o Vencedor, o Pantocrator, e assim todas as coisas ficamrecapituladas n’Ele para sempre (cf. Ef 1, 10). Por isso, Cristo é «a luz domundo» (Jo 8, 12), aquela luz que «resplandece nas trevas» (Jo 1, 5) mas astrevas não a acolheram (cf. Jo 1, 5). Aqui se compreende plenamente osignificado do Salmo 119 quando a designa «farol para os meus passos, e luzpara os meus caminhos» (v. 105); esta luz decisiva na nossa estrada éprecisamente a Palavra que ressuscita. Desde o início, os cristãos tiveramconsciência de que, em Cristo, a Palavra de Deus está presente como Pessoa. APalavra de Deus é a luz verdadeira, de que o homem tem necessidade. Sim, naressurreição, o Filho de Deus surgiu como Luz do mundo. Agora, vivendo com Elee para Ele, podemos viver na luz.

 13. Chegados por assim dizer ao coração da «Cristologia daPalavra», é importante sublinhar a unidade do desígnio divino no Verboencarnado: é por isso que o Novo Testamento nos apresenta o Mistério Pascal deacordo com as Sagradas Escrituras, como a sua íntima realização. São Paulo, naPrimeira Carta aos Coríntios, afirma que Jesus Cristo morreu pelos nossospecados, «segundo as Escrituras» (15, 3) e que ressuscitou no terceiro dia«segundo as Escrituras» (15, 4). Deste modo o Apóstolo põe o acontecimento damorte e ressurreição do Senhor em relação com a história da Antiga Aliança deDeus com o seu povo. Mais ainda, faz-nos compreender que esta história recebede tal acontecimento a sua lógica e o seu verdadeiro significado. No MistérioPascal, realizam-se «as palavras da Escritura, isto é, esta morte realizada“segundo as Escrituras” é um acontecimento que contém em si mesmo um logos, umalógica: a morte de Cristo testemunha que a Palavra de Deus Se fez totalmente“carne”, “história” humana».[39] Também a ressurreição de Jesus acontece «aoterceiro dia, segundo as Escrituras»: dado que a corrupção, segundo ainterpretação judaica, começava depois do terceiro dia, a palavra da Escrituracumpre-se em Jesus, que ressuscita antes de começar a corrupção. Deste modo SãoPaulo, transmitindo fielmente o ensinamento dos Apóstolos (cf. 1 Cor 15, 3),sublinha que a vitória de Cristo sobre a morte se verifica através da forçacriadora da Palavra de Deus. Esta força divina proporciona esperança e alegria:tal é, em definitivo, o conteúdo libertador da revelação pascal. Na Páscoa,Deus revela-Se a Si mesmo juntamente com a força do Amor trinitário queaniquila as forças destruidoras do mal e da morte.

 Assim, recordando estes elementos essenciais da nossa fé,podemos contemplar a unidade profunda entre criação e nova criação e de toda ahistória da salvação em Cristo. Recorrendo a uma imagem, podemos comparar ouniverso com uma partitura, um «livro» – diria Galileu Galilei – considerando-ocomo «a obra de um Autor que Se exprime através da “sinfonia” da criação.Dentro desta sinfonia, a determinado ponto aparece aquilo que, em linguagemmusical, se chama um “solo”, um tema confiado a um só instrumento ou a uma sóvoz; e é tão importante que dele depende o significado da obra inteira. Este“solo” é Jesus (…). O Filho do Homem compendia em Si mesmo a terra e o céu, acriação e o Criador, a carne e o Espírito. É o centro do universo e dahistória, porque n’Ele se unem sem se confundir o Autor e a sua obra».[40]

 Dimensão escatológica da Palavra de Deus

 14. Por meio de tudo isto, a Igreja exprime a consciência dese encontrar, em Jesus Cristo, com a Palavra definitiva de Deus; Ele é «oPrimeiro e o Último» (Ap 1, 17). Deu à criação e à história o seu sentidodefinitivo; por isso somos chamados a viver o tempo, a habitar na criação deDeus dentro deste ritmo escatológico da Palavra. «Portanto, a economia cristã,como nova e definitiva aliança, jamais passará, e não se há-de esperar nenhumaoutra revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor JesusCristo (cf. 1 Tm 6, 14; Tt 2, 13)».[41] De facto, como recordaram os Padresdurante o Sínodo, a «especificidade do cristianismo manifesta-se noacontecimento que é Jesus Cristo, ápice da Revelação, cumprimento das promessasde Deus e mediador do encontro entre o homem e Deus. Ele, “que nos deu aconhecer Deus” (Jo 1, 18), é a Palavra única e definitiva confiada àhumanidade».[42] São João da Cruz exprimiu esta verdade de modo admirável: «Aodar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra – e não tem outra –Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única e jánada mais tem para dizer (…). Porque o que antes disse parcialmente pelosprofetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho. E por isso,quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma visão ou revelação,não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhostotalmente em Cristo e buscar fora d’Ele outra realidade ou novidade».[43]

 Consequentemente, o Sínodo recomendou que «se ajudassem osfiéis a bem distinguir a Palavra de Deus das revelações privadas»,[44] cujo«papel não é (…) “completar” a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar avivê-la mais plenamente, numa determinada época histórica».[45] O valor dasrevelações privadas é essencialmente diverso do da única revelação pública:esta exige a nossa fé; de facto nela, por meio de palavras humanas e damediação da comunidade viva da Igreja, fala-nos o próprio Deus. O critério daverdade de uma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo.Quando aquela nos afasta d’Ele, certamente não vem do Espírito Santo, que nosguia no âmbito do Evangelho e não fora dele. A revelação privada é uma ajuda paraa fé, e manifesta-se como credível precisamente porque orienta para a únicarevelação pública. Por isso, a aprovação eclesiástica de uma revelação privadaindica essencialmente que a respectiva mensagem não contém nada que contradigaa fé e os bons costumes; é lícito torná-la pública, e os fiéis são autorizadosa prestar-lhe de forma prudente a sua adesão. Uma revelação privada podeintroduzir novas acentuações, fazer surgir novas formas de piedade ouaprofundar antigas. Pode revestir-se de um certo carácter profético (cf. 1 Ts5, 19-21) e ser uma válida ajuda para compreender e viver melhor o Evangelho nahora actual; por isso não se deve desprezá-la. É uma ajuda, que é oferecida,mas da qual não é obrigatório fazer uso. Em todo o caso, deve tratar-se de umalimento para a fé, a esperança e a caridade, que são o caminho permanente dasalvação para todos.[46]

Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini –Introdução »

I Parte:
O Deus que fala »
Cristologia da Palavra »
A Palavra de Deus e o Espírito Santo »
Deus Pai, fonte e origem da Palavra »
A hermenêutica da Sagrada Escritura na Igreja »
O perigo do dualismo e a hermenêutica secularizada »
A relação entre Antigo e Novo Testamento »
Diálogo entre Pastores, teólogos e exegetas »

II – Parte:
A Igreja acolhe a Palavra »
A sacramentalidade da Palavra »
A palavra de Deus na vida eclesial »
Leitura orante da Sagrada Escritura e "lectio divina" »

III-Parte
A missão da Igreja: anunciar a palavra de Deus ao mundo »
Palavra de Deus e compromisso no mundo »
Anúncio da Palavra de Deus e os migrantes »
A Sagrada Escritura nas diversas expressões artísticas »
Palavra de Deus e diálogo inter-religioso »

Conclusão
A palavra definitiva de Deus »


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