Rembrandt (1606-1669) Despedida de David e Jônatas 1642 |
“Aqueles que amam e respeitam o Senhor encontrarão o amigo fiel” (1).
Falar de uma experiência vivida de amizade já não é tão difícil como simplesmente escrever sobre a amizade. Os conceitos quase sempre limitam muito esse mistério, portanto, é necessário vivê-lo para ao menos tentar descrevê-lo. As Sagradas Escrituras nos deixaram ricos testemunhos de amizade, pra não falar d’Aquele que viveu a mais profunda e rica experiência de amizade com os homens, Jesus.O Primeiro livro de Samuel, capítulo 18, tem uma das mais belas experiências de amizade das Sagradas Escrituras.
Muitos ao longo da história já o atestaram e escreveram sobre essa amizade: trata-se de David e Jônatas (2). Diante deste relato bíblico podemos afirmar que existe uma vocação à amizade. Não só a história da Filosofia Clássica ou a história da Igreja (3) nos evidenciam tal verdade, mas também e, principalmente, o contexto bíblico em que se foi formando o Povo de Deus com o registro de suas experiências. Diz a Tradição Cristã que, nas Sagradas Escrituras, a amizade de David e Jônatas ocupa um lugar privilegiado. David e Jônatas eram dois homens de Deus, mas traziam a “marca da imperfeição”, do pecado, e os apelos interiores quanto às questões de nobreza. David provinha de uma família humilde, porém, tinha consciência disso e era um homem temente a Deus (4), enquanto Jônatas era filho do Rei Saul que, mesmo sendo descendente de uma das menores tribos de Israel, Deus o havia constituído chefe do seu patrimônio (5). A mão do Senhor estava sobre ele e seu filho Jônatas (6).
Interessante é observar que mesmo quando a mão do Senhor não pousar mais sobre Saul, Jônatas demonstrará que sua amizade com David não dependia de garantias humanas e era assim desprovida de interesses. É muito belo observar essa realidade e dela tirar uma lição de vida para as experiências de amizade nos dias atuais. Jônatas realiza o seu chamado a ser amigo de maneira exemplar: “Assim que David terminou de falar com Saul, Jônatas se apegou a David e começou a amá-lo tanto quanto a Si (…) Então Jônatas fez aliança com David, porque o amava como a si mesmo. Jônatas tirou o manto que vestia e o entregou a Davi, assim como suas vestes, até mesmo sua espada, seu arco e seu cinturão” (I Samuel 18, 1-4).Como vemos, os dois selam uma aliança, “Berit” (7), porque se amavam como a própria alma ou, como diz a Filosofia Clássica, “amor dedicado ao outro que traz como que o meu próprio coração” (nota oitava).
Interessante ressaltar que a Aliança do “Berit” dava também um caráter jurídico à relação. A Benção que um concedia ao outro fazia com que eles se acolhessem numa relação nova, numa espécie de consangüinidade. Daí a clareza e a riqueza com que se evidencia isto o livro Sapiencial dos Provérbios quando diz: “existe amigo mais fiel que irmão” (Pv 18, 24). Quem já fez a experiência da autêntica amizade sabe e compreende perfeitamente o que tento dizer aqui, a partir da experiência de Saul e Jônatas. As Sagradas Escrituras nos revelam as mais comoventes e autênticas experiências de amizade. Vale a pena conhecê-las e, olhando a vida de Cristo, sinal, referencia maior da amizade na Palavra, extrairmos para as nossas vidas os valores que os guiaram. A vida de Cristo é essa comuicação maior e mais perfeita da amizade, da fidelidade, do amor que ama ao extremo e da gratuidade. O entusiamos de saul pela pessoa de Jônatas se deu no encontro. Cristo nos amou quando ainda não o conhecíamos. Também ele nos pede a amizade, o encontro, a aproximação, o conhecer o coraçaõ do outro, mas já fez por nós o que amizade humana é capaz. Deus nos conceda a graça de viver esta amizade marcada pelo amor verdadeiro e pela coragem de dar a vida um pelo outro. Seja o amor de Jesus o referencial do amor humano. Ensine-nos, o Senhor, a sermos amigos segundo o seu coração.
Antonio Marcos
Comunidade Shalom – Fortaleza
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Notas do texto:
1 – Cf. Eclesiástico 5, 16;
2 – O Ofício das Leituras dispõe ricamente do texto: ”Fragmento do tratado sobre a amizade espiritual, do Beato Elredo, abade”. Verdadeira, perfeita e eterna amizade entre David e Jônatas. O livro “Fio de Ouro” de Maria Emmir e Dra. Sílvia (Edições Shalom), no capítulo sobre a amizade chega a citar a experiência da amizade de David e Jônatas.
3 – Na História da Filosofia se destaca Aristóteles com a sua célebre obra: “Ética a Nicômaco”, e Cícero com seu tratado “Da amizade”. Um autor atual, filósofo e professor da EDIPUCRS / Brasil, escreveu um livro no qual ele resume os principais textos da História da Filosofia sobre a amizade. Na História da Igreja se destacam os Escritos de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. No entanto, algumas obras que chegaram até nós de autores contemporâneos são ricas e aprofundam o tema, tais como: “Nos caminhos da amizade; Eu te desejo um amigo; Ministério da amizade e da Convivência à fraternidade”;
4 – Cf. I Samuel 16, 11-13; II Samuel 7, 8.18;
5 – Cf. I Samuel 9, 21; 10, 1;
6 – Cf. I Samuel 14, 45;
7 – Aliança: Uma promessa solene feita entre duas pessoas ou do Povo Santo com o Deus de Israel. Compromisso de vida através de um juramento, que pode ser uma fórmula verbal ou através de uma ação simbólica, litúrgica ou religiosa. O Berit é uma aliança acompanhada de sinais, sacrifícios e um juramento solene que selava o pacto com promessas de bênção para quem guardasse a aliança e de maldição para quem a quebrasse;
8 – Interpretação do Filósofo Aristóteles;