Até o surgimento da medicina moderna, a morte era considerada o limite, tanto da vida quanto do conhecimento médico-científico. Porém, com o desenvolvimento da ciência e das tecnologias, passou-se a conhecer as causas da morte, e a luta para combatê-la. Assim, a medicina moderna busca não somente a eliminação das doenças, mas o prolongamento da vida e, cada vez mais, vencer a morte. Contudo, todo o conhecimento acerca do funcionamento do corpo humano não revela totalmente o mistério do ser humano, visto que este é bio-psiquico-espiritual, ou seja, é uma uni-totalidade de corpo e alma espiritual.
As culturas antigas encaravam a morte como um evento dentro do sistema da vida; embora esta sempre tenha sido considerada um mal. Será a partir da era industrial que começará uma mudança progressiva da percepção cultural e social da morte, submetendo-a às leis da ciência moderna que tenta, a todo custo, separar a vida da morte. Segundo Baudrillard (1996, p.198), “abolir a morte é nosso fantasma, que se ramifica em todas as direções: a da sobrevivência e da eternidade para as religiões, da verdade para as ciências, da produtividade e da acumulação para a economia”.
Para a pesquisadora Mariama Furtado (2014), no século XIX inicia-se um fenômeno que ela denomina “processo de medicalização”. Entretanto, será no século XX que este fenômeno ganhará proporções globais. Trata-se elevação do bem-estar e da saúde a status de objetivo supremo. De fato, segundo a pesquisadora, “a saúde assume um lugar de valor supremo e um objetivo prioritário. Trata-se, hoje, de otimizar as faculdades de cada um e potencializar as condições de vida” (p.76). Contudo, essa busca (lícita) de melhores condições de vida e de saúde, não está associada a uma visão integral do ser humano, que leva em conta os seus valores éticos e metafísicos.
Atualmente a medicina dispõe de um tratamento para quase todos os problemas que envolvem o viver humano: solidão, tensões familiares, ansiedade, desafios profissionais, dificuldades de relacionamento, problemas sexuais, etc. esses aspectos passam a ser tratados com distúrbios, transtornos medicamente inscritos em categorias diagnósticas. De modo que cada um haverá um medicamento para melhor combatê-lo. Trata-se, verdadeiramente, de um modo de anestesiar a dor de viver, e consequentemente, de um modo de regulação social. (FURTADO, p. 77).
Ela ainda observa que o crescente consumo de ansiolíticos e antidepressivos depõe contra a própria cultura que os produz, porque a medicalização do sofrimento conduz à medicalização da vida, e a gravidade dessa ação está em “um viver sob o imperativo de uma expertise sanitária, na qual o sujeito desaparece, uma vez que a vida e o sofrimento passam a ser tomados num sentido puramente biológico” (FURTADO, p.196).
Quando não se compreende que o ser humano “não é só o produto de condições econômicas, nem se pode curá-lo apenas do exterior, criando condições econômicas favoráveis” (BENTO XVI, 2007, 21), pode-se chegar à negação da sua dignidade pessoal e à justificativa de qualquer manipulação da vida em detrimento de ideologias escravizantes e de outras formas de opressão.
O desconhecimento do valor do ser humano sempre conduzirá à fuga do sofrimento e à falsificação da vida, criando uma falsa realidade e uma ilusão de felicidade, pois “os homens se enganaram e enganaram aos outros, tentando acreditar que com o auxílio da actio e da ratio conseguiriam acabar com a dor, a miséria e a morte. A actio impediu que se visse a passio” (FRANKL, 1978, p. 243), mas a passio é parte da vida, porque a fragilidade, ou seja, a criaturalidade, da condição humana está submetida à mutação da potência, do desenvolvimento e da finitude. Contudo, a inevitabilidade da morte possibilita a assunção de escolhas dignas do valor sublime da vida.
É certo que as mudanças técnico-culturais das últimas décadas influenciaram nosso modo de lidar com a vida, o sofrimento e a morte; contudo todas as respostas fornecidas pela ciência não visam explicar o sentido da vida ou do sofrimento, apenas procurar aliviar os seus sintomas, entorpecer a mente durante as crises. Busca-se apenas uma resposta compatível com o status cultural do momento, conduzindo a sociedade a diversas formas de reducionismo antropológico.
Quando se perde de vista o valor e a dignidade da pessoa humana, “o efêmero é elevado a nível de valor, iludindo assim a possibilidade de se alcançar o verdadeiro sentido da existência. Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase até à borda do precipício” (JOÃO PAULO II, 1998, 6). Ou seja, com o advento do mundo moderno e com a redução do valor e da influência das tradições passamos a viver numa constante busca de autossuperação, com a necessidade de estar “perpetuamente à frente de si mesmo, em um estado de constante transgressão” (BAUMAN, 2008, p.135), mas esse tipo de perfeição é inalcançável, por isso gera frustrações em quem não aceita os limites humanos.
Segundo Frankl (2003, p.23-26), algumas patologias sociais como a proliferação da depressão, da violência, da drogadição e a hipertrofia sexual, podem ser interpretadas como caminhos de fuga diante da falta de sentido, ou seja, são decorrentes do vazio existencial. Na atual cultura essas patologias são, muitas vezes, promovidas ao patamar de status cultural ou de expressão artística, escondendo a sua raiz niilista e maquiando o seu fruto nocivo na vida individual e social de quem as elas aderem.
Em uma das catequeses sobre o amor humano, João Paulo II fala do risco de tratar o ser humano somente através de um determinado aspecto. Tendo um conhecimento parcial deve evitar a manipulação das subjetividades, sobretudo dos mais jovens que podem vir a ser privados da dignidade derivante da unidade e unicidade do seu ser. “Encontramo-nos aqui no limite de problemas, que muitas vezes exigem soluções fundamentais, impossíveis sem uma visão integral do homem” (JOÃO PAULO II, 1981).
Ao considerar o ser humano em todas as suas dimensões, a fragilidade, o sofrimento e a morte não serão excluídas, mas compreendidas na categoria de mistério, uma vez que o ser humano não pode ser “decifrado” pelas lentes científicas ou tecnológicas, mas apenas relido à luz do Deus feito homem.
Diante do mistério do sofrimento e da morte, somos convidados à fé e à esperança de quem segue o Bom Pastor, pois somente ele conhece o caminho que conduz à vida, e vida em abundância.
O Senhor é meu pastor, nada me falta […] Mesmo que atravesse vales sombrios, nenhum mal temerei, porque estais comigo » (Sal 23[22], 1.4). O verdadeiro pastor é Aquele que conhece também o caminho que passa pelo vale da morte; Aquele que, mesmo na estrada da derradeira solidão, onde ninguém me pode acompanhar, caminha comigo servindo-me de guia ao atravessá-la: Ele mesmo percorreu esta estrada, desceu ao reino da morte, venceu-a e voltou para nos acompanhar a nós agora e nos dar a certeza de que, juntamente com Ele, acha-se uma passagem. A certeza de que existe Aquele que, mesmo na morte, me acompanha e com o seu «bastão e o seu cajado me conforta », de modo que « não devo temer nenhum mal » (cf. Sal 23[22],4): esta era a nova « esperança » que surgia na vida dos crentes. (BENTO XVI, 2007, 6).
Josefa Alves dos Santos
Doutoranda em Teologia Sistemática pela PUC-Rio, Mestre em Teologia pela mesma Universidade, Master e Bacharel em Teologia pela Facoltà di Teologia di Lugano (Suiça), Coord. da Escola de Teologia do Instituto Parresia.
Quando fala-se em Bioética, logo surgem cinco questionamentos que servem de base para o debate acerca do assunto: Quando a vida começa e quando termina? Qual o valor da vida humana? A teologia moral influencia o agir humano? Quais as implicações morais e sociais do aborto, da fecundação artificial, da eutanásia e do suicídio assistido? O que são os cuidados paliativos ou cuidados em fim de vida?
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- A dignidade da vida em seu início e fim natural
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Bibliografia:
BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996.
BAUMAM, Z. A Sociedade Individualizada. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BENTO XVI. Carta Encíclica Spe Salvi. Sobre a Salvação Cristã. São Paulo: Paulus; Loyola 2007.
FRANKL, V. E. Fundamentos Antropológicos da Psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
FURTADO, M. A. O Lugar do sofrimento na cultura contemporânea: patologização do mal-estar e medicalização da vida. Rio de Janeiro 2014. Tese (Doutorado em Psicossociologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
JOÃO PAULO II. Audiência Geral 08 de abril de 1981. Disponível em: https://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/audiences/1981/documents/hf_jp-ii_aud_19810408.html. Acessado em 10/08/2017.
JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Fides et Ratio. São Paulo: Paulinas, 1998.
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