Formação

Encíclica “Caritas in Veritate” – Cap 2

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CARTA ENCÍCLICA CARITAS IN VERITATE

DO SUMO PONTÍFICE BENTO XVI

CAPÍTULO II

O DESENVOLVIMENTO HUMANO

NO NOSSO TEMPO

21. Paulo VI tinha uma visão articulada do desenvolvimento. Com otermo « desenvolvimento », queria indicar, antes de mais nada, oobjetivo de fazer sair os povos da fome, da miséria, das doençasendêmicas e do analfabetismo. Isto significava, do ponto de vistaeconômico, a sua participação ativa e em condições de igualdade noprocesso econômico internacional; do ponto de vista social, a suaevolução para sociedades instruídas e solidárias; do ponto de vistapolítico, a consolidação de regimes democráticos capazes de assegurar aliberdade e a paz. Depois de tantos anos e enquanto contemplamos,preocupados, as evoluções e as perspectivas das crises que foramsucedendo neste período, interrogamo-nos até que ponto as expectativasde Paulo VI tenham sido satisfeitas pelo modelo de desenvolvimento quefoi adotado nos últimos decênios. E reconhecemos que eram fundadas aspreocupações da Igreja acerca das capacidades do homem meramentetecnológico conseguir impor-se objetivos realistas e saber gerir,sempre adequadamente, os instrumentos à sua disposição. O lucro é útilse, como meio, for orientado para um fim que lhe indique o sentido e omodo como o produzir e utilizar. O objetivo exclusivo de lucro, quandomal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se adestruir riqueza e criar pobreza. O desenvolvimento econômico desejadopor Paulo VI devia ser capaz de produzir um crescimento real, extensivoa todos e concretamente sustentável. É verdade que o desenvolvimentofoi e continua a ser um fator positivo, que tirou da miséria milhões depessoas e, ultimamente, deu a muitos países a possibilidade de setornarem atores eficazes da política internacional. Todavia há quereconhecer que o próprio desenvolvimento econômico foi e continua a sermolestado por anomalias e problemas dramáticos, evidenciados ainda maispela atual situação de crise. Esta coloca-nos improrrogavelmente diantede opções que dizem respeito sempre mais ao próprio destino do homem, oqual aliás não pode prescindir da sua natureza. As forças técnicas emcampo, as inter-relações a nível mundial, os efeitos deletérios sobre aeconomia real duma atividade financeira mal utilizada emaioritariamente especulativa, os imponentes fluxos migratórios, comfrequência provocados e depois não geridos adequadamente, a exploraçãodesregrada dos recursos da terra, induzem-nos hoje a refletir sobre asmedidas necessárias para dar solução a problemas que são não apenasnovos relativamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também esobretudo com impacto decisivo no bem presente e futuro da humanidade.Os aspectos da crise e das suas soluções bem como de um possível novodesenvolvimento futuro estão cada vez mais interdependentes,implicam-se reciprocamente, requerem novos esforços de enquadramentoglobal e uma nova síntese humanista. A complexidade e gravidade dasituação econômica atual preocupa-nos, com toda a justiça, mas devemosassumir com realismo, confiança e esperança as novas responsabilidadesa que nos chama o cenário de um mundo que tem necessidade dumarenovação cultural profunda e da redescoberta de valores fundamentaispara construir sobre eles um futuro melhor. A crise obriga-nos aprojetar de novo o nosso caminho, a impor-nos regras novas e encontrarnovas formas de empenhamento, a apostar em experiências positivas erejeitar as negativas. Assim, a crise torna-se ocasião de discernimentoe elaboração de nova planificação. Com esta chave, feita mais deconfiança que resignação, convém enfrentar as dificuldades da horaatual.

22. Atualmente o quadro do desenvolvimento é policêntrico. Os atorese as causas tanto do subdesenvolvimento como do desenvolvimento sãomúltiplas, as culpas e os méritos são diferenciados. Este dado deveriainduzir a libertar-se das ideologias que simplificam, de formafrequentemente artificiosa, a realidade, e levar a examinar comobjetividade a espessura humana dos problemas. Hoje a linha dedemarcação entre países ricos e pobres já não é tão nítida como nostempos da Populorum progressio, como aliás foi assinalado por JoãoPaulo II[55]. Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, masaumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociaisempobrecem e nascem novas pobrezas. Em áreas mais pobres, alguns gruposgozam duma espécie de superdesenvolvimento dissipador e consumista quecontrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de misériadesumanizadora. Continua « o escândalo de desproporções revoltantes»[56]. Infelizmente a corrupção e a ilegalidade estão presentes tantono comportamento de sujeitos económicos e políticos dos países ricos,antigos e novos, como nos próprios países pobres. No número de quantosnão respeitam os direitos humanos dos trabalhadores, contam-se às vezesgrandes empresas transnacionais e também grupos de produção local. Asajudas internacionais foram muitas vezes desviadas das suasfinalidades, por irresponsabilidades que se escondem tanto na cadeiados sujeitos doadores como na dos beneficiários. Também no âmbito dascausas imateriais ou culturais do desenvolvimento e dosubdesenvolvimento podemos encontrar a mesma articulação deresponsabilidades: existem formas excessivas de proteção doconhecimento por parte dos países ricos, através duma utilizaçãodemasiado rígida do direito de propriedade intelectual, especialmenteno campo sanitário; ao mesmo tempo, em alguns países pobres, persistemmodelos culturais e normas sociais de comportamento que retardam oprocesso de desenvolvimento.

23. Temos hoje muitas áreas do globo que — de forma por vezesproblemática e não homogênea — evoluíram, entrando na categoria dasgrandes potências destinadas a jogar um papel importante no futuro.Contudo há que sublinhar que não é suficiente progredir do ponto devista econômico e tecnológico; é preciso que o desenvolvimento seja,antes de mais nada, verdadeiro e integral. A saída do atraso econômico— um dado em si mesmo positivo — não resolve a complexa problemática dapromoção do homem nem nos países protagonistas de tais avanços, nem nospaíses economicamente já desenvolvidos, nem nos países ainda pobresque, além das antigas formas de exploração, podem vir a sofrer tambémas consequências negativas derivadas de um crescimento marcado pordesvios e desequilíbrios.

Depois da queda dos sistemas económicos e políticos dos paísescomunistas da Europa Oriental e do fim dos chamados « blocoscontrapostos », havia necessidade duma revisão global dodesenvolvimento. Pedira-o João Paulo II, que em 1987 tinha indicado aexistência destes « blocos » como uma das principais causas dosubdesenvolvimento[57], enquanto a política subtraía recursos àeconomia e à cultura e a ideologia inibia a liberdade. Em 1991, nasequência dos acontecimentos do ano 1989, o Pontífice pediu que o fimdos « blocos » fosse seguido por uma nova planificação global dodesenvolvimento, não só em tais países, mas também no Ocidente e nasregiões do mundo que estavam a evoluir[58]. Isto, porém, realizou-seapenas parcialmente, continuando a ser uma obrigação real que precisade ser satisfeita, talvez aproveitando-se precisamente das opçõesnecessárias para superar os problemas económicos atuais.

24. O mundo, que Paulo VI tinha diante dos olhos, registrava muitomenor integração do que hoje, embora o processo de sociabilização seapresentasse já tão adiantado que ele pôde falar de uma questão socialtornada mundial. Atividade econômica e função política desenrolavam-seem grande parte dentro do mesmo âmbito local e, por conseguinte, podiaminspirar recíproca confiança. A atividade produtiva tinha lugarprevalentemente dentro das fronteiras nacionais e os investimentosfinanceiros tinham uma circulação bastante limitada para o estrangeiro,de tal modo que a política de muitos Estados podia ainda fixar asprioridades da economia e, de alguma maneira, governar o seu andamentocom os instrumentos de que ainda dispunha. Por este motivo, a Populorumprogressio atribuía um papel central, embora não exclusivo, aos «poderes públicos »[59].

Atualmente, o Estado encontra-se na situação de ter de enfrentar aslimitações que lhe são impostas à sua soberania pelo novo contextoeconômico comercial e financeiro internacional, caracterizadonomeadamente por uma crescente mobilidade dos capitais financeiros edos meios de produção materiais e imateriais. Este novo contextoalterou o poder político dos Estados.

Hoje, aproveitando inclusivamente a lição resultante da criseeconômica em curso que vê os poderes públicos do Estado diretamenteempenhados a corrigir erros e disfunções, parece mais realista umarenovada avaliação do seu papel e poder, que hão de ser sapientementereconsiderados e reavaliados para se tornarem capazes, mesmo através denovas modalidades de exercício, de fazer frente aos desafios do mundoatual. Com uma função melhor calibrada dos poderes públicos, éprevisível que sejam reforçadas as novas formas de participação napolítica nacional e internacional que se realizam através da ação dasorganizações operantes na sociedade civil; nesta linha, é desejável quecresçam uma atenção e uma participação mais sentidas na res publica porparte dos cidadãos.

25. Do ponto de vista social, os sistemas de segurança e previdência— já presentes em muitos países nos tempos de Paulo VI — sentemdificuldade, e poderão senti-la ainda mais no futuro, em alcançar osseus objetivos de verdadeira justiça social dentro de um quadro deforças profundamente alterado. O mercado, à medida que se foi tornandoglobal, estimulou antes de mais nada, por parte de países ricos, abusca de áreas para onde deslocar as atividades produtivas a baixocusto a fim de reduzir os preços de muitos bens, aumentar o poder decompra e deste modo acelerar o índice de desenvolvimento centrado sobreum maior consumo pelo próprio mercado interno. Consequentemente, omercado motivou novas formas de competição entre Estados procurandoatrair centros produtivos de empresas estrangeiras através de variadosinstrumentos tais como impostos favoráveis e a desregulamentação domundo do trabalho. Estes processos implicaram a redução das redes desegurança social em troca de maiores vantagens competitivas no mercadoglobal, acarretando grave perigo para os direitos dos trabalhadores, osdireitos fundamentais do homem e a solidariedade atuada nas formastradicionais do Estado social. Os sistemas de segurança social podemperder a capacidade de desempenhar a sua função, quer nos paísesemergentes, quer nos desenvolvidos há mais tempo, quer naturalmente nospaíses pobres. Aqui, as políticas relativas ao orçamento com os seuscortes na despesa social, muitas vezes fomentados pelas própriasinstituições financeiras internacionais, podem deixar os cidadãosimpotentes diante de riscos antigos e novos; e tal impotência torna-seainda maior devido à falta de proteção eficaz por parte das associaçõesdos trabalhadores. O conjunto das mudanças sociais e econômicas faz comque as organizações sindicais sintam maiores dificuldades no desempenhodo seu dever de representar os interesses dos trabalhadores, inclusivepelo fato de os governos, por razões de utilidade econômica, muitasvezes limitarem as liberdades sindicais ou a capacidade negociadora dospróprios sindicatos. Assim, as redes tradicionais de solidariedadeencontram obstáculos cada vez maiores a superar. Por isso, o convitefeito pela doutrina social da Igreja, a começar da Rerum novarum[60],para se criarem associações de trabalhadores em defesa dos seusdireitos há de ser honrado, hoje ainda mais do que ontem, dando antesde mais nada uma resposta pronta e clarividente à urgência de instaurarnovas sinergias a nível internacional, sem descurar o nível local.

A mobilidade laboral, associada à generalizada desregulamentação,constituiu um fenômeno importante, não desprovido de aspectos positivosporque capaz de estimular a produção de nova riqueza e o intercâmbioentre culturas diversas. Todavia, quando se torna endêmica a incertezasobre as condições de trabalho, resultante dos processos de mobilidadee desregulamentação, geram-se formas de instabilidade psicológica, comdificuldade a construir percursos coerentes na própria vida, incluindoo percurso rumo ao matrimônio. Consequência disto é o aparecimento desituações de degradação humana, além de desperdício de força social.Comparado com o que sucedia na sociedade industrial do passado, hoje odesemprego provoca aspectos novos de irrelevância econômica doindivíduo, e a crise atual pode apenas piorar tal situação. A exclusãodo trabalho por muito tempo ou então uma prolongada dependência daassistência pública ou privada corroem a liberdade e a criatividade dapessoa e as suas relações familiares e sociais, causando enormessofrimentos a nível psicológico e espiritual. Queria recordar a todos,sobretudo aos governantes que estão empenhados a dar um perfil renovadoaos sistemas económicos e sociais do mundo, que o primeiro capital apreservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: « comefeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vidaeconómico-social »[61].

26. No plano cultural, as diferenças, relativamente aos tempos dePaulo VI, são ainda mais acentuadas. Então, as culturas apresentavam-sebastante bem definidas e tinham maiores possibilidades para se defenderdas tentativas de homogeneização cultural. Hoje, cresceram notavelmenteas possibilidades de interação das culturas, dando espaço a novasperspectivas de diálogo intercultural; um diálogo que, para ser eficaz,deve ter como ponto de partida uma profunda noção da específicaidentidade dos vários interlocutores. No entanto, não se deve descuraro fato de que esta aumentada transação de intercâmbios culturais trazconsigo, atualmente, um duplo perigo. Em primeiro lugar, nota-se umecletismo cultural assumido muitas vezes sem discernimento: as culturassão simplesmente postas lado a lado e vistas como substancialmenteequivalentes e intercambiáveis umas com as outras. Isto favorece acedência a um relativismo que não ajuda ao verdadeiro diálogointercultural; no plano social, o relativismo cultural faz com que osgrupos culturais se juntem ou convivam, mas separados, sem autênticodiálogo e, consequentemente, sem verdadeira integração. Depois, temos operigo oposto que é constituído pelo nivelamento cultural e ahomogeneização dos comportamentos e estilos de vida. Assim perde-se osignificado profundo da cultura das diversas nações, das tradições dosvários povos, no âmbito das quais a pessoa se confronta com as questõesfundamentais da existência[62]. Ecletismo e nivelamento culturalconvergem no fato de separar a cultura da natureza humana. Assim, asculturas deixam de saber encontrar a sua medida numa natureza que astranscende[63], acabando por reduzir o homem a simples dado cultural.Quando isto acontece, a humanidade corre novos perigos de servidão emanipulação.

27. Em muitos países pobres, continua — com risco de aumentar — umainsegurança extrema de vida, que deriva da carência de alimentação: afome ceifa ainda inúmeras vítimas entre os muitos Lázaros, a quem não épermitido — como esperara Paulo VI — sentar-se à mesa do ricoavarento[64]. Dar de comer aos famintos (cf. Mt 25, 35.37.42) é umimperativo ético para toda a Igreja, que é resposta aos ensinamentos desolidariedade e partilha do seu Fundador, o Senhor Jesus. Além disso,eliminar a fome no mundo tornou-se, na era da globalização, também umobjetivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra. Afome não depende tanto de uma escassez material, como sobretudo daescassez de recursos sociais, o mais importante dos quais é de naturezainstitucional; isto é, falta um sistema de instituições econômicas queseja capaz de garantir um acesso regular e adequado, do ponto de vistanutricional, à alimentação e à água e também de enfrentar as carênciasrelacionadas com as necessidades primárias e com a emergência de reaise verdadeiras crises alimentares provocadas por causas naturais ou pelairresponsabilidade política nacional e internacional. O problema dainsegurança alimentar há de ser enfrentado numa perspectiva a longoprazo, eliminando as causas estruturais que o provocam e promovendo odesenvolvimento agrícola dos países mais pobres por meio deinvestimentos em infra-estruturas rurais, sistemas de irrigação,transportes, organização dos mercados, formação e difusão de técnicasagrícolas apropriadas, isto é, capazes de utilizar o melhor possível osrecursos humanos, naturais e socioeconômicos mais acessíveis a nívellocal, para garantir a sua manutenção a longo prazo. Tudo isto há deser realizado, envolvendo as comunidades locais nas opções e nasdecisões relativas ao uso da terra cultivável. Nesta perspectiva,poderia revelar-se útil considerar as novas fronteiras abertas por umcorreto emprego das técnicas de produção agrícola, tanto astradicionais como as inovadoras, desde que as mesmas tenham sido,depois de adequada verificação, reconhecidas oportunas, respeitadorasdo ambiente e tendo em conta as populações mais desfavorecidas. Aomesmo tempo não deveria ser transcurada a questão de uma equitativareforma agrária nos países em vias de desenvolvimento. Os direitos àalimentação e à água revestem um papel importante para a consecução deoutros direitos, a começar pelo direito primário à vida. Por isso, énecessário a maturação duma consciência solidária que considere aalimentação e o acesso à água como direitos universais de todos osseres humanos, sem distinções nem discriminações[65]. Além disso, éimportante pôr em evidência que o caminho da solidariedade com odesenvolvimento dos países pobres pode constituir um projeto de soluçãopara a presente crise global, como homens políticos e responsáveis deinstituições internacionais têm intuído nos últimos tempos.Sustentando, através de planos de financiamento inspirados pelasolidariedade, os países economicamente pobres, para que provejam elesmesmos à satisfação das solicitações de bens de consumo e dedesenvolvimento dos próprios cidadãos, é possível não apenas gerarverdadeiro crescimento econômico mas também concorrer para sustentar ascapacidades produtivas dos países ricos que correm o risco de ficarcomprometidas pela crise.

28. Um dos aspectos mais evidentes do desenvolvimento atual é aimportância do tema do respeito pela vida, que não pode ser de modoalgum separado das questões relativas ao desenvolvimento dos povos.Trata-se de um aspecto que, nos últimos tempos, está a assumir umarelevância sempre maior, obrigando-nos a alargar os conceitos depobreza [66] e subdesenvolvimento às questões relacionadas com oacolhimento da vida, sobretudo onde o mesmo é de várias maneirasimpedido.

Não só a situação de pobreza provoca ainda altas taxas demortalidade infantil em muitas regiões, mas perduram também, em váriaspartes do mundo, práticas de controle demográfico por parte dosgovernos, que muitas vezes difundem a contracepção e chegam mesmo aimpor o aborto. Nos países economicamente mais desenvolvidos, são muitodifusas as legislações contrárias à vida, condicionando já o costume ea práxis e contribuindo para divulgar uma mentalidade antinatalista quemuitas vezes se procura transmitir a outros Estados como se fosse umprogresso cultural.

Também algumas organizações não governamentais trabalham ativamentepela difusão do aborto, promovendo nos países pobres a adoção daprática da esterilização, mesmo sem as mulheres o saberem. Além disso,há a fundada suspeita de que às vezes as próprias ajudas aodesenvolvimento sejam associadas com determinadas políticas sanitáriasque realmente implicam a imposição de um forte controle dosnascimentos. Igualmente preocupantes são as legislações que prevêem aeutanásia e as pressões de grupos nacionais e internacionais quereivindicam o seu reconhecimento jurídico.

A abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento.Quando uma sociedade começa a negar e a suprimir a vida, acaba pordeixar de encontrar as motivações e energias necessárias para trabalharao serviço do verdadeiro bem do homem. Se se perde a sensibilidadepessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham também outrasformas de acolhimento úteis à vida social[67]. O acolhimento da vidarevigora as energias morais e torna-nos capazes de ajuda recíproca. Ospovos ricos, cultivando a abertura à vida, podem compreender melhor asnecessidades dos países pobres, evitar o emprego de enormes recursoseconómicos e intelectuais para satisfazer desejos egoístas dos próprioscidadãos e promover, ao invés, ações virtuosas na perspectiva dumaprodução moralmente sadia e solidária, no respeito do direitofundamental de cada povo e de cada pessoa à vida.

29. Outro aspecto da vida atual, intimamente relacionado com odesenvolvimento, é a negação do direito à liberdade religiosa. Não merefiro só às lutas e conflitos que ainda se disputam no mundo pormotivações religiosas, embora estas às vezes sejam apenas a coberturapara razões de outro gênero, tais como a sede de domínio e de riqueza.Na realidade, com frequência hoje se faz apelo ao santo nome de Deuspara matar, como diversas vezes foi sublinhado e deplorado publicamentepelo meu predecessor João Paulo II e por mim próprio[68]. As violênciasrefreiam o desenvolvimento autêntico e impedem a evolução dos povospara um bem-estar sócio-económico e espiritual maior. Isto aplica-se demodo especial ao terrorismo de índole fundamentalista[69], que gerasofrimento, devastação e morte, bloqueia o diálogo entre as nações edesvia grandes recursos do seu uso pacífico e civil. Mas há queacrescentar que, se o fanatismo religioso impede em alguns contextos oexercício do direito de liberdade de religião, também a promoçãoprogramada da indiferença religiosa ou do ateísmo prático por parte demuitos países contrasta com as necessidades do desenvolvimento dospovos, subtraindo-lhes recursos espirituais e humanos. Deus é o garantedo verdadeiro desenvolvimento do homem, já que, tendo-o criado à suaimagem, fundamenta de igual forma a sua dignidade transcendente ealimenta o seu anseio constitutivo de « ser mais ». O homem não é umátomo perdido num universo casual[70], mas é uma criatura de Deus, àqual quis dar uma alma imortal e que desde sempre amou. Se o homemfosse fruto apenas do acaso ou da necessidade, se as suas aspiraçõestivessem de reduzir-se ao horizonte restrito das situações em que vive,se tudo fosse somente história e cultura e o homem não tivesse umanatureza destinada a transcender-se numa vida sobrenatural, entãopoder-se-ia falar de incremento ou de evolução, mas não dedesenvolvimento. Quando o Estado promove, ensina ou até impõe formas deateísmo prático, tira aos seus cidadãos a força moral e espiritualindispensável para se empenhar no desenvolvimento humano integral eimpede-os de avançarem com renovado dinamismo no próprio compromisso deuma resposta humana mais generosa ao amor divino[71]. Sucede também queos países economicamente desenvolvidos ou os emergentes exportem paraos países pobres, no âmbito das suas relações culturais, comerciais epolíticas, esta visão redutiva da pessoa e do seu destino. É o dano queo « superdesenvolvimento » [72] acarreta ao desenvolvimento autêntico,quando é acompanhado pelo « subdesenvolvimento moral »[73].

30. Nesta linha, o tema do desenvolvimento humano integral atinge umponto ainda mais complexo: a correlação entre os seus vários elementosrequer que nos empenhemos por fazer interagir os diversos níveis dosaber humano tendo em vista a promoção de um verdadeiro desenvolvimentodos povos. Muitas vezes pensa-se que o desenvolvimento ou as relativasmedidas socioeconômicas necessitam apenas de ser postos em prática comofruto de um agir comum, ignorando que este agir comum precisa de serorientado, porque « toda a ação social implica uma doutrina »[74].Vista a complexidade dos problemas, é óbvio que as várias disciplinasdevem colaborar através de uma ordenada interdisciplinaridade. Acaridade não exclui o saber, antes reclama-o, promove-o e anima-o apartir de dentro. O saber nunca é obra apenas da inteligência; pode,sem dúvida, ser reduzido a cálculo e a experiência, mas se quer sersapiência capaz de orientar o homem à luz dos princípios primeiros edos seus fins últimos, deve ser « temperado » com o « sal » dacaridade. A ação é cega sem o saber, e este é estéril sem o amor. Defato, « aquele que está animado de verdadeira caridade é engenhoso emdescobrir as causas da miséria, encontrar os meios de a combater evencê-la resolutamente »[75]. Relativamente aos fenômenos queanalisamos, a caridade na verdade requer, antes de mais nada, conhecere compreender no respeito consciencioso da competência específica decada nível do saber. A caridade não é uma junção posterior, como sefosse um apêndice ao trabalho já concluído das várias disciplinas, masdialoga com elas desde o início. As exigências do amor não contradizemas da razão. O saber humano é insuficiente e as conclusões das ciênciasnão poderão sozinhas indicar o caminho para o desenvolvimento integraldo homem. Sempre é preciso lançar-se mais além: exige-o a caridade naverdade[76]. Todavia ir mais além nunca significa prescindir dasconclusões da razão, nem contradizer os seus resultados. Não aparece ainteligência e depois o amor: há o amor rico de inteligência e ainteligência cheia de amor.

31. Isto significa que as ponderações morais e a pesquisa científicadevem crescer juntas e que a caridade as deve animar num todointerdisciplinar harmônico, feito de unidade e distinção. A doutrinasocial da Igreja, que tem « uma importante dimensão interdisciplinar»[77], pode desempenhar, nesta perspectiva, uma função deextraordinária eficácia. Ela permite à fé, à teologia, à metafísica eàs ciências encontrarem o próprio lugar no âmbito de uma colaboração aoserviço do homem; é sobretudo aqui que a doutrina social da Igreja atuaa sua dimensão sapiencial. Paulo VI tinha visto claramente que, entreas causas do subdesenvolvimento, conta-se uma carência de sabedoria, dereflexão, de pensamento capaz de realizar uma síntese orientadora[78],que requer « uma visão clara de todos os aspectos económicos, sociais,culturais e espirituais »[79]. A excessiva fragmentação do saber[80], oisolamento das ciências humanas relativamente à metafísica[81], asdificuldades no diálogo entre as ciências e a teologia danificam não sóo avanço do saber mas também o desenvolvimento dos povos, porque,quando isso se verifica, fica obstaculizada a visão do bem completo dohomem nas várias dimensões que o caracterizam. É indispensável o «alargamento do nosso conceito de razão e do uso da mesma » [82] para seconseguir sopesar adequadamente todos os termos da questão dodesenvolvimento e da solução dos problemas socioeconômicos.

32. As grandes novidades, que o quadro atual do desenvolvimento dospovos apresenta, exigem em muitos casos novas soluções. Estas hão deser procuradas conjuntamente no respeito das leis próprias de cadarealidade e à luz duma visão integral do homem, que espelhe os váriosaspectos da pessoa humana, contemplada com o olhar purificado pelacaridade. Descobrir-se-ão então singulares convergências e concretaspossibilidades de solução, sem renunciar a qualquer componentefundamental da vida humana.

A dignidade da pessoa e as exigências da justiça requerem, sobretudohoje, que as opções econômicas não façam aumentar, de forma excessiva emoralmente inaceitável, as diferenças de riqueza [83] e que se continuea perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho paratodos, ou da sua manutenção. Bem vistas as coisas, isto é exigidotambém pela « razão econômica ». O aumento sistemático dasdesigualdades entre grupos sociais no interior de um mesmo país e entreas populações dos diversos países, ou seja, o aumento maciço da pobrezaem sentido relativo, tende não só a minar a coesão social — e, por estecaminho, põe em risco a democracia —, mas tem também um impactonegativo no plano econômico com a progressiva corrosão do « capitalsocial », isto é, daquele conjunto de relações de confiança, decredibilidade, de respeito das regras, indispensáveis em qualquerconvivência civil.

E é ainda a ciência econômica a dizer-nos que uma situaçãoestrutural de insegurança gera comportamentos antiprodutivos e dedesperdício de recursos humanos, já que o trabalhador tende aadaptar-se passivamente aos mecanismos automáticos, em vez de darlargas à criatividade. Também neste ponto se verifica uma convergênciaentre ciência econômica e ponderação moral. Os custos humanos sãosempre também custos económicos, e as disfunções econômicas acarretamsempre também custos humanos.

Há ainda que recordar que o nivelamento das culturas à dimensãotecnológica, se a curto prazo pode favorecer a obtenção de lucros, alongo prazo dificulta o enriquecimento recíproco e as dinâmicas decooperação. É importante distinguir entre considerações econômicas ousociológicas a curto prazo e a longo prazo. A diminuição do nível detutela dos direitos dos trabalhadores ou a renúncia a mecanismos deredistribuição do rendimento, para fazer o país ganhar maiorcompetitividade internacional, impede a afirmação de um desenvolvimentode longa duração. Por isso, há que avaliar atentamente as consequênciasque podem ter sobre as pessoas as tendência atuais para uma economia acurto senão mesmo curtíssimo prazo. Isto requer uma nova e profundareflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins[84], bem como umarevisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento, para secorrigirem as suas disfunções e desvios. Na realidade, exige-o o estadode saúde ecológica da terra; pede-o sobretudo a crise cultural e moraldo homem, cujos sintomas são evidentes por toda a parte.

33. Passados mais de quarenta anos da publicação da Populorumprogressio, o seu tema de fundo — precisamente o progresso — permaneceainda um problema em aberto, que se tornou mais agudo e premente com acrise económico-financeira em curso. Se algumas áreas do globo, outroraoprimidas pela pobreza, registraram mudanças notáveis em termos decrescimento econômico e de participação na produção mundial, há outraszonas que vivem ainda numa situação de miséria comparável à existentenos tempos de Paulo VI; antes, em qualquer caso pode-se mesmo falar deagravamento. É significativo que algumas causas desta situação tivessemsido já identificadas na Populorum progressio, como, por exemplo, asaltas tarifas aduaneiras impostas pelos países economicamentedesenvolvidos que ainda impedem aos produtos originários dos paísespobres de chegar aos mercados dos países ricos. Entretanto, outrascausas que a encíclica tinha apenas pressentido, apareceram depois commaior evidência; é o caso da avaliação do processo de descolonização,então em pleno curso. Paulo VI almejava um percurso de autonomia quehavia de realizar-se na liberdade e na paz; quarenta anos depois, temosde reconhecer como foi difícil tal percurso, tanto por causa de novasformas de colonialismo e dependência de antigos e novos paíseshegemónicos, como por graves irresponsabilidades internas aos própriospaíses que se tornaram independentes.

A novidade principal foi a explosão da interdependência mundial, jáconhecida comummente por globalização. Paulo VI tinha-a em parteprevisto, mas os termos e a impetuosidade com que aquela evoluiu sãosurpreendentes. Nascido no âmbito dos países economicamentedesenvolvidos, este processo por sua própria natureza causou umenvolvimento de todas as economias. Foi o motor principal para a saídado subdesenvolvimento de regiões inteiras e, por si mesmo, constituiuma grande oportunidade. Contudo, sem a guia da caridade na verdade,este ímpeto mundial pode concorrer para criar riscos de danos até agoradesconhecidos e de novas divisões na família humana. Por isso, acaridade e a verdade colocam diante de nós um compromisso inédito ecriativo, sem dúvida muito vasto e complexo. Trata-se de dilatar arazão e torná-la capaz de conhecer e orientar estas novas e imponentesdinâmicas, animando-as na perspectiva daquela « civilização do amor »,cuja semente Deus colocou em todo o povo e cultura.

VEJA TAMBÉM:

» Introdução
» Capítulo I
» Capítulo II
» Capítulo III
» Capítulo IV
» Capítulo V
» Capítulo VI e conclusão

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[55] Cf. Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 28: AAS 80 (1988), 548-550.

[56] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de Março de 1967), 9: AAS 59 (1967), 261-262.

[57] Cf. Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 20: AAS 80 (1988), 536-537.

[58] Cf. Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 22-29: AAS 83 (1991), 819-830.

[59] Cf. nn. 23.33: AAS 59 (1967), 268-269.273-274.

[60] Cf. Leonis XIII P. M. Acta, XI (1892), 135.

[61] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 63.

[62] Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 24: AAS 83 (1991), 821-822.

[63] Cf. João Paulo II, Carta enc. Veritatis splendor (6 de Agostode 1993), 33.46.51: AAS 85 (1993), 1160.1169-1171.1174-1175; Discurso àAssembleia Geral das Nações Unidas na comemoração do cinquentenário defundação (5 de Outubro de 1995), 3: Insegnamenti XVIII/2 (1995),732-733.

[64] Cf. Carta enc. Populorum progressio (26 de Março de 1967), 47:AAS 59 (1967), 280-281; João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo reisocialis (30 de Dezembro de 1987), 42: AAS 80 (1988), 572-574.

[65] Cf. Bento XVI, Mensagem por ocasião do Dia Mundial da Alimentação 2007: AAS 99 (2007), 933-935.

[66] Cf. João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae (25 de Março de 1995), 18.59.63-64: AAS 87 (1995), 419-421.467-468.472-475.

[67] Cf. Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2007, 5: Insegnamenti II/2 (2006), 778.

[68] Cf. João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2002,4-7.12-15: AAS 94 (2002), 134-136.138-140; Mensagem para o Dia Mundialda Paz 2004, 8: AAS 96 (2004), 119; Mensagem para o Dia Mundial da Paz2005, 4: AAS 97 (2005), 177-178; Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundialda Paz 2006, 9-10: AAS 98 (2006), 60-61; Mensagem para o Dia Mundial daPaz 2007, 5.14: Insegnamenti II/2 (2006), 778.782-783.

[69] Cf. João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2002, 6:AAS 94 (2002), 135; Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2006,9-10: AAS 98 (2006), 60-61.

[70] Cf. Bento XVI, Homilia da Santa Missa no « Islinger Feld » diRegensburg (12 de Setembro de 2006): Insegnamenti II/2 (2006), 252-256.

[71] Cf. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 1: AAS 98 (2006), 217-218.

[72] João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 28: AAS 80 (1988), 548-550.

[73] Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de Março de 1967), 19: AAS 59 (1967), 266-267.

[74] Ibid., 39: o.c., 276-277.

[75] Ibid., 75: o.c., 293-294.

[76] Cf. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 28: AAS 98 (2006), 238-240.

[77] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 59: AAS 83 (1991), 864.

[78] Cf. Carta enc. Populorum progressio (26 de Março de 1967), 40.85: AAS 59 (1967), 277.298-299.

[79] Ibid., 13: o.c., 263-264.

[80] Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 85: AAS 91 (1999), 72-73.

[81] Cf. ibid., 83: o.c., 70-71.

[82] Bento XVI, Discurso na Universidade de Regensburg (12 de Setembro de 2006): Insegnamenti II/2 (2006), 265.

[83] Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de Março de 1967), 33: AAS 59 (1967), 273-274.

[84] Cf. João Paulo II, Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2000, 15: AAS 92 (2000), 366.


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