CARTA ENCÍCLICA CARITAS IN VERITATE
DO SUMO PONTÍFICE BENTO XVI
CAPÍTULO III
FRATERNIDADE, DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO E SOCIEDADE CIVIL
34. A caridade na verdade coloca o homem perante a admirávelexperiência do dom. A gratuidade está presente na sua vida sobmúltiplas formas, que frequentemente lhe passam despercebidas por causaduma visão meramente produtiva e utilarista da existência. O ser humanoestá feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão detranscendência. Por vezes o homem moderno convence-se, erroneamente, deque é o único autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade. Trata-sede uma presunção, resultante do encerramento egoísta em si mesmo, queprovém — se queremos exprimi-lo em termos de fé — do pecado dasorigens. Na sua sabedoria, a Igreja sempre propôs que se tivesse emconta o pecado original mesmo na interpretação dos fenómenos sociais ena construção da sociedade. « Ignorar que o homem tem uma naturezaferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio daeducação, da política, da acção social e dos costumes »[85]. No elencodos campos onde se manifestam os efeitos perniciosos do pecado, hámuito tempo que se acrescentou também o da economia. Temos uma provaevidente disto mesmo nos dias que correm. Primeiro, a convicção de serauto-suficiente e de conseguir eliminar o mal presente na históriaapenas com a própria acção induziu o homem a identificar a felicidade ea salvação com formas imanentes de bem-estar material e de acçãosocial. Depois, a convicção da exigência de autonomia para a economia,que não deve aceitar « influências » de carácter moral, impeliu o homema abusar dos instrumentos económicos até mesmo de forma destrutiva. Como passar do tempo, estas convicções levaram a sistemas económicos,sociais e políticos que espezinharam a liberdade da pessoa e dos corpossociais e, por isso mesmo, não foram capazes de assegurar a justiça queprometiam. Deste modo, como afirmei na encíclica Spe salvi[86],elimina-se da história a esperança cristã, a qual, ao invés, constituium poderoso recurso social ao serviço do desenvolvimento humanointegral, procurado na liberdade e na justiça. A esperança encoraja arazão e dá-lhe a força para orientar a vontade[87]. Já está presente nafé, pela qual aliás é suscitada. Dela se nutre a caridade na verdade e,ao mesmo tempo, manifesta-a. Sendo dom de Deus absolutamente gratuito,irrompe na nossa vida como algo não devido, que transcende qualquernorma de justiça. Por sua natureza, o dom ultrapassa o mérito; a suaregra é a excedência. Aquele precede-nos, na nossa própria alma, comosinal da presença de Deus em nós e das suas expectativas a nossorespeito. A verdade, que é dom tal como a caridade, é maior do que nós,conforme ensina Santo Agostinho[88]. Também a verdade acerca de nósmesmos, da nossa consciência pessoal é-nos primariamente « dada »; comefeito, em qualquer processo cognoscitivo, a verdade não é produzidapor nós, mas sempre encontrada ou, melhor, recebida. Tal como o amor,ela « não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa formaimpõe-se ao ser humano »[89].
Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma forçaque constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades quenão conhecem barreiras nem confins. A comunidade dos homens pode serconstituída por nós mesmos; mas, com as nossas simples forças, nuncapoderá ser uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para além dequalquer fronteira, ou seja, não poderá tornar-se uma comunidadeverdadeiramente universal: a unidade do género humano, uma comunhãofraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da palavrade Deus-Amor. Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar,por um lado, que a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe aela num segundo tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimentoeconómico, social e político precisa, se quiser ser autenticamentehumano, de dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão defraternidade.
35. O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é ainstituição económica que permite o encontro entre as pessoas, na suadimensão de operadores económicos que usam o contrato como regra dassuas relações e que trocam bens e serviços entre si fungíveis, parasatisfazer as suas carências e desejos. O mercado está sujeito aosprincípios da chamada justiça comutativa, que regula precisamente asrelações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a doutrina socialnunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiçadistributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, nãosó porque integrada nas malhas de um contexto social e político maisvasto, mas também pela teia das relações em que se realiza. De facto,deixado unicamente ao princípio da equivalência de valor dos benstrocados, o mercado não consegue gerar a coesão social de que necessitapara bem funcionar. Sem formas internas de solidariedade e de confiançarecíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a própria funçãoeconómica. E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar;e a perda da confiança é uma perda grave.
Na Populorum progressio, Paulo VI sublinhava oportunamente o factode que seria o próprio sistema económico a tirar vantagem da práticageneralizada da justiça, uma vez que os primeiros a beneficiar dodesenvolvimento dos países pobres teriam sido os países ricos[90]. Nãose tratava apenas de corrigir disfunções, através da assistência. Ospobres não devem ser considerados um « fardo »[91] mas um recurso,mesmo do ponto de vista estritamente económico. Há que considerarerrada a visão de quantos pensam que a economia de mercado tenhaestruturalmente necessidade duma certa quota de pobreza esubdesenvolvimento para poder funcionar do melhor modo. O mercado teminteresse em promover emancipação, mas, para o fazer verdadeiramente,não pode contar apenas consigo mesmo, porque não é capaz de produzirpor si aquilo que está para além das suas possibilidades; tem de haurirenergias morais de outros sujeitos, que sejam capazes de as gerar.
36. A actividade económica não pode resolver todos os problemassociais através da simples extensão da lógica mercantil. Esta há-de tercomo finalidade a prossecução do bem comum, do qual se deve ocupartambém e sobretudo a comunidade política. Por isso, tenha-se presenteque é causa de graves desequilíbrios separar o agir económico — ao qualcompetiria apenas produzir riqueza — do agir político, cuja funçãoseria buscar a justiça através da redistribuição.
Desde sempre a Igreja defende que não se há-de considerar o agireconómico como anti-social. De per si o mercado não é, nem se devetornar, o lugar da prepotência do forte sobre o débil. A sociedade nãotem que se proteger do mercado, como se o desenvolvimento desteimplicasse ipso facto a morte das relações autenticamente humanas. Éverdade que o mercado pode ser orientado de modo negativo, não porqueisso esteja na sua natureza, mas porque uma certa ideologia podedirigi-lo em tal sentido. Não se deve esquecer que o mercado, em estadopuro, não existe; mas toma forma a partir das configurações culturaisque o especificam e orientam. Com efeito, a economia e as finanças,enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se quem as gere tiverapenas referimentos egoístas. Deste modo é possível conseguirtransformar instrumentos de per si bons em instrumentos danosos; mas éa razão obscurecida do homem que produz estas consequências, não oinstrumento por si mesmo. Por isso, não é o instrumento que deve serchamado em causa, mas o homem, a sua consciência moral e a suaresponsabilidade pessoal e social.
A doutrina social da Igreja considera possível viver relaçõesautenticamente humanas de amizade e camaradagem, de solidariedade ereciprocidade, mesmo no âmbito da actividade económica e não apenasfora dela ou « depois » dela. A área económica não é nem eticamenteneutra nem de natureza desumana e anti-social. Pertence à actividade dohomem; e, precisamente porque humana, deve ser eticamente estruturada einstitucionalizada.
O grande desafio que temos diante de nós — resultante dasproblemáticas do desenvolvimento neste tempo de globalização, masrevestindo-se de maior exigência com a crise económico-financeira — émostrar, a nível tanto de pensamento como de comportamentos, que não sónão podem ser transcurados ou atenuados os princípios tradicionais daética social, como a transparência, a honestidade e a responsabilidade,mas também que, nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e alógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrarlugar dentro da actividade económica normal. Isto é uma exigência dohomem no tempo actual, mas também da própria razão económica. Trata-sede uma exigência simultaneamente da caridade e da verdade.
37. A doutrina social da Igreja sempre defendeu que a justiça dizrespeito a todas as fases da actividade económica, porque esta sempretem a ver com o homem e com as suas exigências. A angariação dosrecursos, os financiamentos, a produção, o consumo e todas as outrasfases do ciclo económico têm inevitavelmente implicações morais. Destemodo cada decisão económica tem consequências de carácter moral. Tudoisto encontra confirmação também nas ciências sociais e nas tendênciasda economia actual. Outrora talvez se pudesse pensar, primeiro, emconfiar à economia a produção de riqueza para, depois, atribuir àpolítica a tarefa de a distribuir; hoje tudo isto se apresenta maisdifícil, porque, enquanto as atividades econômicas deixaram de estarcircunscritas no âmbito dos limites territoriais, a autoridade dosgovernos continua a ser sobretudo local. Por isso, os cânones dajustiça devem ser respeitados desde o início enquanto se desenrola oprocesso económico, e não depois ou marginalmente. Além disso, épreciso que, no mercado, se abram espaços para actividades económicasrealizadas por sujeitos que livremente escolhem configurar o próprioagir segundo princípios diversos do puro lucro, sem por isso renunciara produzir valor económico. As numerosas expressões de economia quetiveram origem em iniciativas religiosas e laicas demonstram que isto éconcretamente possível.
Na época da globalização, a economia denota a influência de modeloscompetitivos ligados a culturas muito diversas entre si. Oscomportamentos econômico-empresariais daí resultantes possuem, na suamaioria, um ponto de encontro no respeito da justiça comutativa. A vidaeconômica tem, sem dúvida, necessidade do contrato, para regular asrelações de transação entre valores equivalentes; mas precisaigualmente de leis justas e de formas de redistribuição guiadas pelapolítica, para além de obras que tragam impresso o espírito do dom. Aeconomia globalizada parece privilegiar a primeira lógica, ou seja, ada transação contratual, mas directa ou indiretamente dá provas denecessitar também das outras duas: a lógica política e a lógica do domsem contrapartidas.
38. O meu antecessor João Paulo II sublinhara esta problemática,quando, na Centesimus annus, destacou a necessidade de um sistema comtrês sujeitos: o mercado, o Estado e a sociedade civil[92]. Ele tinhaidentificado na sociedade civil o âmbito mais apropriado para umaeconomia da gratuidade e da fraternidade, mas sem pretender negá-la nosoutros dois âmbitos. Hoje, podemos dizer que a vida económica deve serentendida como uma realidade com várias dimensões: em todas deve estarpresente, embora em medida diversa e com modalidades específicas, oaspecto da reciprocidade fraterna. Na época da globalização, aactividade económica não pode prescindir da gratuidade, que difunde ealimenta a solidariedade e a responsabilidade pela justiça e o bemcomum em seus diversos sujeitos e actores. Trata-se, em última análise,de uma forma concreta e profunda de democracia económica. Asolidariedade consiste primariamente em que todos se sintamresponsáveis por todos[93] e, por conseguinte, não pode ser delegada sóno Estado. Se, no passado, era possível pensar que havia necessidadeprimeiro de procurar a justiça e que a gratuidade intervinha depoiscomo um complemento, hoje é preciso afirmar que, sem a gratuidade, nãose consegue sequer realizar a justiça. Assim, temos necessidade de ummercado, no qual possam operar, livremente e em condições de igualoportunidade, empresas que persigam fins institucionais diversos. Aolado da empresa privada orientada para o lucro e dos vários tipos deempresa pública, devem poder-se radicar e exprimir as organizaçõesprodutivas que perseguem fins mutualistas e sociais. Do seu recíprococonfronto no mercado, pode-se esperar uma espécie de hibridização doscomportamentos de empresa e, consequentemente, uma atenção sensível àcivilização da economia. Neste caso, caridade na verdade significa queé preciso dar forma e organização àquelas iniciativas económicas que,embora sem negar o lucro, pretendam ir mais além da lógica da troca deequivalentes e do lucro como fim em si mesmo.
39. Na Populorum progressio, Paulo VI pedia que se configurasse ummodelo de economia de mercado capaz de incluir, pelo menosintencionalmente, todos os povos e não apenas aqueles adequadamentehabilitados. Solicitava que nos empenhássemos na promoção de um mundomais humano para todos, um mundo no qual « todos tenham qualquer coisaa dar e a receber, sem que o progresso de uns seja obstáculo aodesenvolvimento dos outros »[94]. Estendia assim ao plano universal asmesmas instâncias e aspirações contidas na Rerum novarum, escritaquando pela primeira vez, em consequência da revolução industrial, seafirmou a ideia — seguramente avançada para aquele tempo — de que aordem civil, para subsistir, tinha necessidade também da intervençãodistributiva do Estado. Hoje esta visão, além de ser posta em crisepelos processos de abertura dos mercados e das sociedades, revela-seincompleta para satisfazer as exigências duma economia plenamentehumana. Aquilo que a doutrina social da Igreja, partindo da sua visãodo homem e da sociedade, sempre defendeu, é hoje requerido também pelasdinâmicas características da globalização.
Quando a lógica do mercado e a do Estado se põem de acordo entre sipara continuar no monopólio dos respectivos âmbitos de influência, como passar do tempo definha a solidariedade nas relações entre oscidadãos, a participação e a adesão, o serviço gratuito, que sãorealidades diversas do « dar para ter », próprio da lógica datransacção, e do « dar por dever », próprio da lógica doscomportamentos públicos impostos por lei do Estado. A vitória sobre osubdesenvolvimento exige que se actue não só sobre a melhoria dastransações fundadas sobre o intercâmbio, nem apenas sobre astransferências das estruturas assistenciais de natureza pública, massobretudo sobre a progressiva abertura, em contexto mundial, paraformas de actividade económica caracterizadas por quotas de gratuidadee de comunhão. O binómio exclusivo mercado-Estado corrói asociabilidade, enquanto as formas económicas solidárias, que encontramo seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo se reduzir a ela,criam sociabilidade. O mercado da gratuidade não existe, tal como nãose podem estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e todavia tantoo mercado como a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco.
40. As actuais dinâmicas económicas internacionais, caracterizadaspor graves desvios e disfunções, requerem profundas mudançasinclusivamente no modo de conceber a empresa. Antigas modalidades davida empresarial declinam, mas outras prometedoras se esboçam nohorizonte. Um dos riscos maiores é, sem dúvida, que a empresa prestecontas quase exclusivamente a quem nela investe, acabando assim porreduzir a sua valência social. Devido ao seu crescimento de dimensão eà necessidade de capitais sempre maiores, são cada vez menos asempresas que fazem referimento a um empresário estável que se sintaresponsável não apenas a curto mas a longo prazo da vida e dosresultados da sua empresa, tal como diminui o número das que dependemde um único território. Além disso, a chamada deslocalização daactividade produtiva pode atenuar no empresário o sentido daresponsabilidade para com os interessados, como os trabalhadores, osfornecedores, os consumidores, o ambiente natural e a sociedadecircundante mais ampla, em benefício dos accionistas, que não estãoligados a um espaço específico, gozando por isso duma extraordináriamobilidade; de facto, o mercado internacional dos capitais oferece hojeuma grande liberdade de acção. Mas é verdade também que está a aumentara consciência sobre a necessidade de uma mais ampla « responsabilidadesocial » da empresa. Apesar de os parâmetros éticos que guiamatualmente o debate sobre a responsabilidade social da empresa nãoserem, segundo a perspectiva da doutrina social da Igreja, todosaceitáveis, é um fato que se vai difundindo cada vez mais a convicçãode que a gestão da empresa não pode ter em conta unicamente osinteresses dos proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também comas outras diversas categorias de sujeitos que contribuem para a vida daempresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos váriosfatores de produção, a comunidade de referimento. Nos últimos anos,notou-se o crescimento duma classe cosmopolita de gerentes, que muitasvezes respondem só às indicações dos acionistas da empresa constituídosgeralmente por fundos anônimos que estabelecem de fato as suasremunerações. Todavia, hoje, há também muitos gerentes que, através deanálises clarividentes, se dão conta cada vez mais dos profundos laçosque a sua empresa tem com o território ou territórios, onde opera.Paulo VI convidava a avaliar seriamente o dano que a transferência decapitais para o estrangeiro, com exclusivas vantagens pessoais, podecausar à própria nação[95]. E João Paulo II advertia que investir temsempre um significado moral, para além de económico[96]. Tudo isto — háque reafirmá-lo — é válido também hoje, não obstante o mercado doscapitais tenha sido muito liberalizado e as mentalidades tecnológicasmodernas possam induzir a pensar que investir seja apenas um factotécnico, e não humano e ético. Não há motivo para negar que um certocapital possa ser ocasião de bem, se investido no estrangeiro antes quena pátria; mas devem-se ressalvar os vínculos de justiça, tendo emconta também o modo como aquele capital se formou e os danos quecausará às pessoas o seu não investimento nos lugares onde o mesmo foigerado[97]. É preciso evitar que o motivo para o emprego dos recursosfinanceiros seja especulativo, cedendo à tentação de procurar apenas olucro a breve prazo sem cuidar igualmente da sustentabilidade daempresa a longo prazo, do seu serviço concreto à economia real e dumaadequada e oportuna promoção de iniciativas económicas também nospaíses necessitados de desenvolvimento. Também não há motivo para negarque a deslocalização, quando compreende investimentos e formação, possafazer bem às populações do país que a acolhe — o trabalho e oconhecimento técnico são uma necessidade universal –; mas não é lícitodeslocalizar somente para gozar de especiais condições de favor ou,pior ainda, para exploração, sem prestar uma verdadeira contribuição àsociedade local para o nascimento de um robusto sistema produtivo esocial, factor imprescindível para um desenvolvimento estável.
41. Dentro do mesmo tema, é útil observar que o espírito empresarialtem, e deve assumir cada vez mais, um significado polivalente. A longaprevalência do binómio mercado-Estado habituou-nos a pensarexclusivamente, por um lado, no empresário privado de tipo capitalistae, por outro, no director estatal. Na realidade, o espírito empresarialhá-de ser entendido de modo articulado, como se depreende duma série demotivações meta-económicas. O espírito empresarial, antes de tersignificado profissional, possui um significado humano[98]; estáinscrito em cada trabalho, visto como « actus personæ »[99], pelo que ébom oferecer a cada trabalhador a possibilidade de prestar a própriacontribuição, de tal modo que ele mesmo « saiba trabalhar ‘‘por contaprópria” »[100]. Ensinava Paulo VI, não sem motivo, que « todo otrabalhador é um criador »[101]. Precisamente para dar resposta àsexigências e à dignidade de quem trabalha e às necessidades dasociedade é que existem vários tipos de empresa, muito para além dasimples distinção entre « privado » e « público ». Cada uma requer eexprime um espírito empresarial específico. A fim de realizar umaeconomia que, num futuro próximo, saiba colocar-se ao serviço do bemcomum nacional e mundial, convém ter em conta este significado amplo deespírito empresarial. Tal concepção mais ampla favorece o intercâmbio ea formação recíproca entre as diversas tipologias de empresariado, comtransferência de competências do mundo sem lucro para aquele com lucroe vice-versa, do sector público para o âmbito próprio da sociedadecivil, do mundo das economias avançadas para aquele dos países em viasde desenvolvimento.
Também a « autoridade política » tem um significado polivalente, quenão se pode esquecer quando se procede à realização duma nova ordemeconómico-produtiva, responsável socialmente e à medida do homem. Assimcomo se pretende fomentar um espírito empresarial diferenciado no planomundial, assim também se deve promover uma autoridade políticarepartida e activa a vários níveis. A economia integrada de nossos diasnão elimina a função dos Estados, antes obriga os governos a umacolaboração recíproca mais intensa. Razões de sabedoria e prudênciasugerem que não se proclame depressa demais o fim do Estado;relativamente à solução da crise actual, a sua função parece destinadaa crescer, readquirindo muitas das suas competências. Além disso,existem nações, cuja edificação ou reconstrução do Estado continua aser um elemento-chave do seu desenvolvimento. A ajuda internacional,precisamente no âmbito de um projecto de solidariedade que tivesse emvista a solução dos problemas económicos actuais, deveria sobretudoapoiar a consolidação de sistemas constitucionais, jurídicos,administrativos nos países que ainda não gozam de tais bens. A par dasajudas económicas, devem existir outros apoios tendentes a reforçar asgarantias próprias do Estado de direito, um sistema de ordem pública ecarcerário eficiente no respeito dos direitos humanos, instituiçõesverdadeiramente democráticas. Não é preciso que o Estado tenha, em todoo lado, as mesmas características: o apoio para reforço dos sistemasconstitucionais débeis pode muito bem ser acompanhado pelodesenvolvimento de outros sujeitos políticos de natureza cultural,social, territorial ou religiosa, ao lado do Estado. A articulação daautoridade política a nível local, nacional e internacional é, paraalém do mais, uma das vias mestras para se chegar a poder orientar aglobalização económica; e é também o modo de evitar que esta minerealmente os alicerces da democracia.
42. Notam-se às vezes atitudes fatalistas a respeito daglobalização, como se as dinâmicas em acto fossem produzidas por forçasimpessoais anónimas e por estruturas independentes da vontadehumana[102]. A tal propósito, é bom recordar que a globalização há-deser entendida, sem dúvida, como um processo sócio-económico, mas estasua dimensão não é a única. Sob o processo mais visível, há a realidadeduma humanidade que se torna cada vez mais interligada; tal realidade éconstituída por pessoas e povos, para quem o referido processo deve serde utilidade e desenvolvimento[103], graças à assunção das respectivasresponsabilidades por parte tanto dos indivíduos como da colectividade.A superação das fronteiras é um dado não apenas material mas tambémcultural nas suas causas e efeitos. Se a globalização for lida demaneira determinista, perdem-se os critérios para a avaliar e orientar.Trata-se de uma realidade humana que pode ter, na sua fonte, váriasorientações culturais, sobre as quais é preciso fazer discernimento. Averdade da globalização enquanto processo e o seu critério éticofundamental provêm da unidade da família humana e do seudesenvolvimento no bem. Por isso é preciso empenhar-se sem cessar porfavorecer uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta àtranscendência, do processo de integração mundial.
Não obstante algumas limitações estruturais, que não se hão-de negarnem absolutizar, « a globalização a priori não é boa nem má. Seráaquilo que as pessoas fizerem dela »[104]. Não devemos ser vítimasdela, mas protagonistas, actuando com razoabilidade, guiados pelacaridade e a verdade. Opor-se-lhe cegamente seria uma atitude errada,fruto de preconceito, que acabaria por ignorar um processo marcadotambém por aspectos positivos, com o risco de perder uma grande ocasiãode se inserir nas múltiplas oportunidades de desenvolvimento por eleoferecidas. Adequadamente concebidos e geridos, os processos deglobalização oferecem a possibilidade duma grande redistribuição dariqueza a nível mundial, como antes nunca tinha acontecido; se malgeridos, podem, pelo contrário, fazer crescer pobreza e desigualdade,bem como contagiar com uma crise o mundo inteiro. É preciso corrigir assuas disfunções, tantas vezes graves, que introduzem novas divisõesentre os povos e no interior dos mesmos, e fazer com que aredistribuição da riqueza não se verifique à custa de umaredistribuição da pobreza ou até com o seu agravamento, como uma mágestão da situação actual poderia fazer-nos temer. Durante muito tempo,pensou-se que os povos pobres deveriam permanecer ancorados a umestádio predeterminado de desenvolvimento, contentando-se com afilantropia dos povos desenvolvidos. Contra esta mentalidade, tomouposição Paulo VI na Populorum progressio. Hoje, as forças materiais deque se pode dispor para fazer aqueles povos sair da miséria sãopotencialmente maiores do que outrora, mas acabaram por se aproveitardelas prevalentemente os povos dos países desenvolvidos, queconseguiram desfrutar melhor o processo de liberalização dos movimentosde capitais e do trabalho. Por isso a difusão dos ambientes debem-estar a nível mundial não deve ser refreada por projectos egoístas,proteccionistas ou ditados por interesses particulares. De facto, hoje,o envolvimento dos países emergentes ou em vias de desenvolvimentopermite gerir melhor a crise. A transição inerente ao processo deglobalização apresenta grandes dificuldades e perigos, que poderão sersuperados apenas se se souber tomar consciência daquela almaantropológica e ética que, do mais fundo, impele a própria globalizaçãopara metas de humanização solidária. Infelizmente esta alma é muitasvezes abafada e condicionada por perspectivas ético-culturais deimpostação individualista e utilitarista. A globalização é um fenómenopluridimensional e polivalente, que exige ser compreendido nadiversidade e unidade de todas as suas dimensões, incluindo ateológica. Isto permitirá viver e orientar a globalização da humanidadeem termos de relacionamento, comunhão e partilha.
VEJA TAMBÉM:
» Introdução
» Capítulo I
» Capítulo II
» Capítulo III
» Capítulo IV
» Capítulo V
» Capítulo VI e conclusão
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[85] Catecismo da Igreja Católica, 407; cf. João Paulo II, Cartaenc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 25: AAS 83 (1991), 822-824.
[86] Cf. n. 17: AAS 99 (2007), 1000.
[87] Cf. ibid., 23: o.c., 1004-1005.
[88] Santo Agostinho expõe, de maneira detalhada, este ensinamentono diálogo sobre o livre arbítrio (De libero arbitrio, II, 3, 8s.).Aponta para a existência de um « sentido interno » dentro da almahumana. Este sentido consiste num acto que se realiza fora das funçõesnormais da razão, um acto não reflexo e quase instintivo, pelo qual arazão, ao dar-se conta da sua condição transitória e falível, admiteacima de si mesma a existência de algo de eterno, absolutamenteverdadeiro e certo. O nome, que Santo Agostinho dá a esta verdadeinterior, umas vezes é Deus (Confissões X, 24, 35; XII, 25, 35; Delibero arbitrio, II, 3, 8, 27), outras e mais frequentemente é Cristo(De magistro 11, 38; Confissões VII, 18, 24; XI, 2, 4).
[89] Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 3: AAS 98 (2006), 219.
[90] Cf. n. 49: AAS 59 (1967), 281.
[91] João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 28: AAS 83 (1991), 827-828.
[92] Cf. n. 35: AAS 83 (1991), 836-838.
[93] Cf. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 38: AAS 80 (1988), 565-566.
[94] N. 44: AAS 59 (1967), 279.
[95] Cf. ibid., 24: o.c., 269.
[96] Cf. Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 36: AAS 83 (1991), 838-840.
[97] Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de Março de 1967), 24: AAS 59 (1967), 269.
[98] Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de1991), 32: AAS 83 (1991), 832-833; Paulo VI, Carta enc. Populorumprogressio (26 de Março de 1967), 25: AAS 59 (1967), 269-270.
[99] João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens (14 de Setembro de 1981), 24: AAS 73 (1981), 637-638.
[100] Ibid., 15: o.c., 616-618.
[101] Carta enc. Populorum progressio (26 de Março de 1967), 27: AAS 59 (1967), 271.
[102] Cf. Congr. da Doutrina da Fé, Instr. sobre a liberdade cristãe a libertação Libertatis conscientia (22 de Março de 1987), 74: AAS 79(1987), 587.
[103] Cf. João Paulo II, Entrevista ao diário católico « La Croix » de 20 de Agosto de 1997.
[104] João Paulo II, Discurso à Pontifícia Academia das Ciências Sociais (27 de Abril de 2001): Insegnamenti XXIV/1 (2001), 800.