Testemunho, confissão, testemunho. Esta a receita do ‘sanduíche’ deste mês.
No dia 29 de maio de 1985, foi feito o discernimento de que era vontade de Deus que eu largasse meu emprego e, embora casada e mãe de dois filhos, me preparasse para ingressar na Comunidade de Vida (CV) Shalom. No dia 30, após entregar, formalmente, meu pedido de demissão do IBEU, instituição que tanto amava e que tanto amo, subi as famosas ‘escadas do pátio’ como uma noiva, cantando, em meu coração: ‘Subo apoiada em seu braço, forte, doce, louco amor’. No dia 31, iniciava minha preparação para a consagração, aos 06 de fevereiro de 1986, dia de São Paulo Miki e seus companheiros mártires.
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No final de janeiro de 1995, por volta do dia de São Paulo Miki, o Ronaldo, que iria entregar a vida até o sangue pelos jovens alguns dias depois, disse-me, radiante: ‘Encontrei o caminho! Caminho simples, reto, fácil, seguro!’ e foi correndo para o seu quarto buscar um pequenino livro chamado Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Eu já conhecia o livro e já havia tentado lê-lo pelo menos três vezes, sem jamais passar das primeiras páginas. No entanto, acolhi seu entusiasmo e, após sua ida para o céu, em homenagem a ele e por me parecer óbvio que, de fato, ele havia encontrado o caminho mais curto, recomecei a leitura, mais uma vez sem sucesso.
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Algum tempo depois, ao pregar um retiro, durante momento de intenso sofrimento, pedi a Deus que me mostrasse uma saída e, embora fosse tarde da noite, saí do quarto para tomar água. Encontrei uma irmã que, impelida a sair do seu quarto, trazia um pequeno livro na mão, desejando entregar-me, mas sem coragem de me chamar devido ao adiantado da hora. Deus havia providenciado o encontro. Ela, então, entregou-me um pequenino livro chamado ‘O Livro de Ouro’, com o qual, em meu orgulho, antipatizei imediatamente. No entanto, sem sono, resolvi ‘dar uma lida’ só para agradá-la. Aos poucos, vi que era a resposta de Deus. Era uma explicação simples, fácil, prática da consagração a Nossa Senhora segundo o método de São Luis Grignon de Montfort, cuja espiritualidade está detalhada no Tratado da Verdadeira Devoção, que, por quatro vezes havia tentado pelo menos ler, sem entender quase nada. Deus estava decidido a me conduzir pelo caminho da simplicidade. Comecei, naquela mesma noite, minha preparação para a consagração a Nossa Senhora.
Consagração a Nossa Senhora
Trinta e três dias depois, no dia 29 de maio de 1999, logo após a missa de corpo presente do Carlos, noviço da CV, eu formalizava, diante do Santíssimo, do Pe. Teles, do Cassiano e alguns outros irmãos, minha consagração. Um filho falecido me havia indicado o caminho, que se completava diante do corpo de outro filho falecido, exatamente 15 anos após minha decisão pela comunidade de vida.
A preparação para a consagração, como se sabe, é muito exigente e requer muita fé e confiança em Deus, em especial na famosa ‘semana para o autoconhecimento’. Durante os 33 dias de preparação, além da dolorosa enfermidade do Carlos, apareceu-me uma pedra nos rins que, foi carregada a custa de medicamentos durante os dias do Congresso Mariano em Quixadá, do qual, providencialmente, não participei, o que foi muito importante para o socorro de emergência do seu quadro, que entrava na sua fase final.
Autoconhecimento
A consagração mudou minha vida. Não sei explicar como, mas percebo que, daquele momento em diante, tem ocorrido em minha vida um processo contínuo e cada vez mais aprofundado de autoconhecimento. Surgiu em mim uma grande sede da Verdade, em especial a verdade ligada à humildade, pois sabia que uma pressupunha a outra e que, assim como não há nenhum orgulhoso no céu, também não há nenhum humilde no inferno.
Iniciou-se, também, um processo novo de intimidade e conhecimento de Nossa Senhora, algo além da lógica humana, uma graça. Ela passou a ser para mim muito concreta, muito humana, muito acessível, mesmo sendo muito santa. Além disso, o mistério da Encarnação do Verbo e sua inabitação, que sempre me haviam impressionado, passaram a ser uma fascinação cheia de louvor, como uma partilha indelével dos segredos de Deus. Como fruto dessas graças, terminei de escrever meu querido ‘Filho de Deus, Menino Meu’, publicado em 2000.
Outro fruto desta graça foi que as pessoas mais próximas a mim, ao me verem tão mudada, perguntaram o que me havia acontecido e acabaram por consagrar-se a Nossa Senhora, dando início a dezenas de consagrações que, infelizmente, parecem ter cessado. E é aí que vem minha dor e confissão: durante os primeiros anos, a cada dia 29 eu renovava minha consagração usando a fórmula mais simples. Depois, uma série de acontecimentos vieram fazer agir minha fraqueza e covardia e acabei por renovar somente a cada seis meses, e, desta última vez, a cada ano. Pior! Deixei de falar de Maria e da imensa graça que é tudo fazer com ela, por ela, nela e para ela como caminho mais curto, fácil e seguro para tudo fazer com Cristo, por Cristo, em Cristo e para Cristo.
Resultado: afastei-me da prática amorosa e consciente das virtudes, vi-me entregue às minhas paixões, saí da ‘forma de Maria’ e entrei em minha velha triste forma de mim mesma pecadora. Sem o testemunho, a enxurrada de consagrações cessou.
Tecendo o Fio de Ouro
Atualmente passo por outra intensa e dolorosa fase de autoconhecimento, na qual muito me ajudou a elaboração do Tecendo o Fio de Ouro. Com o consentimento e orientação de minhas autoridades, retirei-me para o deserto a fim de ‘lutar com o demônio’ e, pelo poder de Deus, vencê-lo e ouvir o Senhor, que, no silêncio e segredo do deserto, fala ao nosso coração. Apesar do amoroso amparo dos meus irmãos e da mais absoluta e contínua certeza do amor de Deus, sei que preciso lutar sozinha.
No deserto, no meio da luta na qual ainda me encontro, gritei a Deus: ‘Sou impotente! Não consigo me mover! Encontro-me jogada na areia, em meu sangue e na sujeira do meu parto, como a jovem de Ez 16. Se você não vier, morro aqui!’ Esperei que ele viesse correndo. Não veio! Porém, depois de vários dias de clamor intenso, surgiu, lá bem longe, a luz que precede a aurora: Maria! Lá está ela, parada, a convidar sem palavras, a esperar sem interferir, pois sabe que preciso estar só na luta. A luz tênue que precede a aurora como que está parada e, mais uma vez aguarda que, em minha imensa fraqueza, eu aceite, ainda que com muito medo, ‘entrar em sua forma’.
No próximo dia 29 de maio, provavelmente ainda no deserto, que promete tornar-se ainda pior e mais solitário, estarei, com a graça de Deus, renovando minha consagração, calmamente deitada no coração de Maria, forma de todos os santos.