Haverá algo de cuja posse sejamos mais ciosos, hoje em dia, que da posse do nosso tempo? Somos tão “donos” do nosso tempo que quando a ele nos referimos utilizamos, hoje, o verbo “ter” e não mais o verbo “dispor” conforme mandava a educação de antigamente. Nossos Escritos dizem que a posse, toda posse, “pesa”, inclusive, portanto, a posse do tempo. Como tudo o mais que pensamos possuir (quem há de possuir verdadeiramente alguma coisa senão o Senhor de tudo?) podemos gerir nosso tempo para a comunhão ou para a exclusividade, para o egoísmo ou para o amor. Não teríamos que refletir mais acerca de como fazer comunhão do nosso tempo como o Pai, em Jesus, fez do Seu e nosso tempo comunhão?
No Fórum de 2004 as Edições Shalom lançaram um livro que traduzi. Chama-se Liberdade Interior, de Jacques Philippe. Quando li esta obra, em novembro de 2003, chamou-me atenção o que lá se diz sobre o tempo. Veja só: Deus criou o dia e a noite, é certo. Mas nós, no afã de cumprir nossa missão de co-criadores, fracionamos o tempo. Dividimo-lo em milênios, séculos, decênios, anos, anos-luz, meses, dias, horas, segundos, frações de segundo. Isso por enquanto, pois nossa busca de exatidão em breve vai subdividi-lo ainda mais.
Segundo Jacques Philippe, este tempo é “cerebral” e, porque medido por nossos parâmetros e ordenado por nosso egoísmo, sempre nos falta. Em sua visão, existe um outro tempo, o tempo interior, psicológico, “o tempo de Deus, aquele dos ritmos profundos da graça em nossas vidas (…) Este tempo é feito de uma sucessão de instantes que se unem uns os outros harmoniosa e pacificamente. Cada um destes instantes e um todo em si mesmo e traz uma plenitude que o preenche e faz com que nada lhe falte e que seja suficiente, porque pleno (…) Neste tempo, de forma especial, Deus habita.”
Três noções de tempo
A estas três noções – o tempo como criatura de Deus e, portanto, submissa a mim; o tempo cerebral, fracionado, que criamos; o tempo interior, no qual Deus habita, soma-se a belíssima percepção do teólogo Urs Von Baltazar em seu livro O Coração do Mundo, em que mostra, com incomparável poesia, que o tempo foi criado para que Jesus, seu Senhor, se fizesse homem no tempo favorável e estabelecesse “o tempo que se chama hoje”, isto é, o tempo da graça. Gostaria de dispor de espaço para transcrever uma belíssima mas longa passagem do livro que certamente mudaria nossa relação com o tempo.
De uma forma ou de outra, o importante é: o Pai, em Jesus, penetrou no tempo criado, que denominamos “cronológico” e fez comunhão de tempo conosco, unindo ao nosso tempo utilitário, superficial, fracionado e horizontal seu tempo livre e libertador, profundo, integral e vertical que definimos como “interior”.
Segundo Jacques Philippe, os santos descobriram este tempo interior no qual o mal tem muito menor chance de penetrar (…) e conseguiram viver nele. Para tanto, é preciso uma grande liberdade, um total despojamento com relação a toda programação e a toda vontade pessoal. É preciso estar pronto para fazer, no segundo seguinte, o contrário do que havíamos previsto, viver em total abandono a Deus, sem inquietação e sem medo, não tendo outra preocupação a não ser a vontade divina e estar plenamente disponível aos acontecimentos e às pessoas.
Tempo interior
Como se vê, despojar-se, fazer comunhão do tempo cronológico abre as portas para penetrarmos no tempo interior. Gera a verdadeira pobreza, que consiste em “estar abandonado nas mãos de Deus”, como nos ensinam os Escritos. Este tempo no qual penetramos ao nos despojarmos dele e dele fazermos comunhão é, na verdade, gerido pelo amor a Deus acima de todas as coisas e ao outro com o mesmo amor com que Deus nos ama. Habitando a eternidade e sendo presença no tempo interior, Deus está sempre plenamente disponível a nós. Não vive apressado a fazer isso ou aquilo, a correr para socorrer alguém na África, a salvar alguém em um acidente, a receber alguém que acaba de morrer. Neste tempo de amor em que Ele habita, está sempre inteiramente presente e disponível a nós.
Na verdade, o amor, que tudo vence, vence também o tempo cronológico libertando-o ao transformá-lo em tempo interior. É ele que nos faz acolher o irmão, cada irmão, com nossa mais integral e incondicional presença, fazendo dele, naquele instante, a pessoa mais importante do mundo, dispondo para ele de todo o tempo, dando-lhe toda a nossa atenção, unindo a ele nosso pensamento, nosso coração, nossa alma, nossa vida, nossa história. É esse tempo-amor que, ao invés de dizer a nosso irmão “vai em paz e que Deus te abençoe”, diz “não vais só, vou contigo e que Deus nos abençoe”.
Neste tempo interior, fazemos comunhão do tempo integral, sem divisões, no qual Deus habita. É nele que fazemos comunhão com Deus e com o irmão, sabendo que Deus, que habita este tempo, deseja que nele habitem todos os que, através de nós, Ele ama. Ao nos dispormos a fazer comunhão do tempo, estaremos, na verdade, dando um passo em direção à conversão do egoísmo para o amor, da ganância para a generosidade, da avareza para a longanimidade, do consumismo para a humanização, do fechamento para a abertura. Estaremos vivendo o segredo de Teresinha que, vivenciando a graça do “tempo que se chama hoje” usava o tempo cronológico para a comunhão que expressava em sua famosa afirmação: Para amar-te, ó meu Deus, só tenho este instante.