Diz-se por aí que tudo o que, na natureza o homem não tem como reproduzir tende a escassear nos próximos cem anos. A água, o ar respirável, o petróleo, os minerais. Há, porém, algo criado de que raramente se fala e que o homem, há pelo menos meio século afirma já não ter: o tempo. “Estou em uma correria doida! Não tenho mais tempo para nada!”, dizem todos, dos seis aos oitenta anos.
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O tempo, como toda criação, foi estabelecido pelo próprio Deus ao criar dia e noite e colocar um astro para regê-los, como vemos em Gênesis 1. Deus sabia bem que precisaríamos de ritmo para crescer e amadurecer, para trabalhar e descansar, para gerir nossa concupiscência a ser desenfreada pelo pecado, para voltar atrás e arrepender-se dele, para preparar e acolher a salvação. Sem o tempo, esqueceríamos mais facilmente ainda do que nos deveria ser óbvio: somos criaturas e, portanto, limitados, necessitados, frágeis e, devido ao pecado, também fracos.
Pessoalmente, o mistério do tempo recorre infinitas vezes a meu pensamento e oração, em uma atração irresistível e misteriosamente ligada ao mistério da encarnação. Assim, cada vez que medito no mistério da salvação, dou graças a Deus por ter criado o tempo e o ter colocado a meu serviço. Graças a ele, que me serve, posso arrepender-me, crescer, amadurecer, morrer e viver plenamente em Deus, ingressando, livre da cronologia que para ele criei, no “Coração da Existência, livre pulsar do tempo”, que é o coração de Jesus, segundo Von Baltazar. Em admirável paradoxo, o tempo que me revela Deus dele me priva, e, ao privar-me dele a Ele me conduz, como o leito de um rio que, em suas quedas e planos acaba por revelar-se, enfim, sua própria mão divina a conduzir minha existência à plena vida no coração da Trindade.
Agradeço, então, a Deus por tê-lo criado e colocado a nosso serviço, como, de resto toda a criação. Agrada-me saber que o tempo é criatura. Desta forma, posso empinar o nariz e declarar-lhe que ele é quem me deve servir e não o contrário. Posso, também, soberanamente, ordená-lo para o amor e, assim, embora inexoravelmente conduzida por seu curso, tornar-me livre do seu jugo. Quando me lembro disso, dou uma arrumada geral na vida, reorganizo minhas prioridades, diminuo o nível de culpa por não ter tempo para fazer tudo o que gostaria ou, segundo meu critério, precisaria.
Questionamento
A questão é: será que precisaria mesmo? Será que não nos falta tempo exatamente porque fazemos mais do que realmente nos cabe? Não nos daria Deus tudo o necessário para sermos felizes, inclusive o tempo? Não seria Ele incoerente se nos desse tudo de que precisamos para viver felizes e nos deixasse faltar algo tão precioso quanto o tempo? Será que é Deus quem exige que façamos mais de uma coisa de cada vez quando ele mesmo criou uma coisa depois da outra, dispôs um dia após o outro e depois dispôs do tempo para descansar?
No Fórum de 2004 as Edições Shalom lançaram um livro que traduzi. Chama-se Liberdade Interior, de Jacques Philippe. Desde que o li pela primeira vez esta obra, em novembro de 2003, chamou-me atenção o que lá se diz sobre o tempo. Veja só: Deus criou o dia e a noite, é certo. Mas nós, no afã de cumprir nossa missão de co-cridores, fracionamos o tempo. Dividimo-lo em milênios, séculos, decênios, anos, anos-luz, meses, dias, horas, segundos, frações de segundo. Isso por enquanto, pois nossa busca de exatidão em breve vai subdividi-lo ainda mais.
Segundo Jacques Philippe, este tempo é “cerebral” e, porque medido por nossos parâmetros e ordenado por nosso egoísmo, sempre nos falta. Em sua visão, existe um outro tempo, o tempo interior, psicológico, o tempo de Deus, aquele dos ritmos profundos da graça em nossas vidas (…) Este tempo é feito de uma sucessão de instantes que se unem uns os outros harmoniosa e pacificamente. Cada um destes instantes e um todo em si mesmo e traz uma plenitude que o preenche e faz com que nada lhe falte e que seja suficiente, porque pleno (…) Neste tempo, de forma especial, Deus habita.
Noções de tempo
A estas três noções – o tempo como criatura de Deus e, portanto, submissa a mim; o tempo cerebral, fracionado, que criamos; o tempo interior, no qual Deus habita, soma-se a visão do tempo de Santo Agostinho, que o vê como tesouro precioso do Deus que se une à nossa história e que habita em nossa “memória de amor”.
Acerca do tempo, tem lugar especial a belíssima percepção do teólogo Urs Von Baltazar em seu livro O Coração do Mundo, no qual mostra, com incomparável poesia, que o tempo cronológico foi criado para que Jesus, coração da existência, divino pulsar do tempo, se fizesse homem no tempo favorável e estabelecesse “o tempo que se chama hoje”, isto é, o tempo da graça, a salvação disponível a cada instante em nosso interior. Para ele, tempo e amor estão entrelaçados e tal fato dá sentido ao tempo no qual decorre a vida que, sem perder-se, passa pela morte:
Toda a existência particular de cada um se dissolve, como um curso de vários rios, no único mar da morte e da vida. (…) Ei-la, a significação de nossa vida: reconhecer e provar que nós não somos Deus. Assim, pois, morremos em Deus, porque Deus é a vida eterna. Como poderíamos nós atingi-lo senão pela morte? A morte é para a nossa vida a garantia de que sobreviveremos. A morte é a mesura que faz a nossa vida, é a cerimônia de adoração ante o trono do criador. E, como o íntimo sentir de cada ser se baseia no louvor, na obediência, na veneração que deve ao seu criador, há uma gota de morte em cada momento da existência. Por estarem entrelaçados o tempo e o amor, os seres amam também a morte, e o fato de existirem não se opõe ao seu desaparecimento.
Deus, que, em Jesus desposou o homem, nele penetrou no tempo para Ele criado, nele habita nosso tempo interior e nele está sempre integralmente disponível a nós, como coração da existência e divino pulsar do tempo que a nós faz disponível o mistério do Amor nosso hóspede interior sempre acessível, sempre presente.
Segundo Jacques Philippe, os santos descobriram este tempo interior no qual o mal tem muito menor chance de penetrar (…) e conseguiram viver nele. Para tanto, é preciso uma grande liberdade, um total despojamento com relação a toda programação e a toda vontade pessoal. É preciso estar pronto para fazer, no segundo seguinte, o contrário do que havíamos previsto, viver em total abandono a Deus, sem inquietação e sem medo, não tendo outra preocupação a não ser a vontade divina e estar plenamente disponível aos acontecimentos e às pessoas.
Este tempo, na verdade, é gerido pelo amor a Deus acima de todas as coisas e ao outro com o mesmo amor com que Deus nos ama. Habitando a eternidade e sendo presença no tempo interior, Deus está sempre plenamente disponível a nós. Não vive apressado a fazer isso ou aquilo, a correr para socorrer alguém na África, a salvar alguém em um acidente, a receber alguém que acaba de morrer. Neste tempo de amor em que Ele habita, está sempre inteiramente presente e disponível a nós.
O amor, que tudo vence, vence também o tempo cronológico libertando-o ao transformá-lo em tempo interior, nele descobrindo o pulsar do Coração da Existência. É ele que nos faz acolher o irmão, cada irmão, com nossa mais integral e incondicional presença, fazendo dele, naquele instante, a pessoa mais importante do mundo, dispondo para ele de todo o tempo, dando-lhe toda a nossa atenção, unindo a ele nosso pensamento, nosso coração, nossa alma, nossa vida, nossa história. É esse tempo-amor que, ao invés de dizer a nosso irmão “vai em paz e que Deus te abençoe”, diz “não vais só, vou contigo e que Deus nos abençoe”.
Tempo interior
Jacques Philippe continua: Quando nós vivemos segundo o tempo interior, fazemos a maravilhosa experiência de que nada é fruto do acaso. Quando caminhamos frequentemente na escuridão e no desconhecido, pressentimos e verificamos que nossa vida se desenrola segundo um ritmo que nos ultrapassa, sobre o qual não temos poder, mas ao qual podemos nos abandonar e encontrarmos a felicidade, pois ele nos leva muito além de nos mesmos. Nele todos os acontecimentos estão dispostos segundo uma sabedoria infinita.
Por que não acrescentar, parafraseando Baltazar: Nele, Jesus Cristo, Coração da Existência, pulsa como instrumento da vida eterna, usando nosso coração e nosso pobre tempo para nele entrelaçar o amor, e, assim, nele ser, através de nós, amor, uma vez que só o Seu amor existe.
Para não tocar com meus dedos sujos a limpidez da poesia, entrego a Baltasar a tarefa de resumir e encerrar – ou recomeçar! – estes meus tantos pensamentos embaralhados acerca do tempo:
Entrega-te, pois, à graça do tempo que é tão longo como a graça. Tu não podes interromper a música a fim de a prender e arrecadar. Deixa-a correr, fugir; de outro modo não a entenderás (… )O que é eterno se sobrepõe ao tempo e é sua colheita e todavia só se realiza a si mesmo no decorrer do tempo. (…) Não amadurecemos, não enriquecemos senão por meio duma ininterrupta renúncia de todos os momentos. (…) Tu não podes armazenar o tempo. Aprende com ele a arte de dissipar. (…) Nele adivinhamos o doce âmago da vida: a oferta de um infatigável amor. Deixa-o correr!(…) Ele é escola de superabundância, escola de magnanimidade, a grande escola de amor.
Ao mundo que acredita que time is money, proclamemos, com coragem e fé, a verdade: time is love!