Formação

Escravidão de São Luís de Montfort e a liberdade do “Eis-me aqui”

Esse conceito cristão de adequar sua vontade à vontade de Deus foi compreendido profundamente por Maria.

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“Minha vida é toda Tua, os meus planos e os meus sonhos. De nada vale o existir se não for pra te ofertar…”. Assim fala a belíssima letra desta música, interpretada por Suely Façanha, da Comunidade Shalom. De fato, nossa vida só passa a ter sentido quando a ofertamos por amor. Isto me faz lembrar Madre Teresa de Calcutá, Padre Léon Dehon e João Paulo II que, unanimemente, diziam: “só é amor se doer”. Toda oferta, toda renúncia e sacrifício exigem dor, porque tiramos algo de nós e entregamos ao outro. Mas, quando essa oferta é feita por amor, tem um valor redentor, seja pra minha história de salvação pessoal, ou para a salvação da humanidade (como foi o caso de Jesus, no alto da cruz).

A oferta que Maria fez a Deus

A oferta de Maria a Deus foi nessa direção. “Minha vida é toda tua… eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua Palavra” (cf. Lc 1,38). A Virgem Maria não mais se pertencia, mas apenas a Deus; realizava a mais perfeita obediência na fé (cf. CEC 148); “entregou-se ela mesma totalmente à pessoa e à obra de seu Filho, para servir, na dependência dele e com Ele” (LG 56). Ora, o que é isso senão uma consagração total de si mesmo ao Senhor? Não estaria ela sob uma condição de escravidão? Onde está a vontade de Maria? Foi anulada? Sua vontade em momento algum foi anulada, mas livremente ofertada a Deus, por amor.

Alguns acham estranho que alguém encontre liberdade dentro de uma condição escrava. E, de fato, seria algo impossível, se a pessoa estivesse sujeita a uma escravidão indesejada por ela ou direcionada a um outro ser humano (que tende ao egoísmo da dominação). Mas a escravidão de Maria se direcionava ao Senhor. Portanto, não poderia haver uma relação dominador-dominado, já que, sendo Pai, Deus não oprime. E, além disso, a própria Virgem consentiu e buscou ser a “serva de Deus”. Isso nos leva a concluir que Maria tomou uma decisão livre.

Ser escravo e livre ao mesmo tempo

É possível, então, ser escravo e livre ao mesmo tempo, desde que eu escolha, por amor, me fazer escravo. Vejamos o que diz Emmir Nogueira, psicóloga e cofundadora da Comunidade Shalom: “O cristão não é livre para fazer o que quiser quando quiser e como bem quiser. Sua liberdade é ordenada para o amor, isto é, para a responsabilidade com relação à consequência de seus atos. É ordenada para a união de sua vontade com a vontade de Deus” e, continua: “quanto mais a pessoa se identifica com a vontade de Deus para ela e pauta sua vida segundo esta vontade, tanto mais ela será livre e feliz, mais será ela mesma” (Tecendo o Fio de Ouro, 2009, p.298).

Esse conceito cristão de adequar sua vontade à vontade de Deus foi compreendido profundamente por Maria. E é nesse sentido que São Luís Maria Grignion de Montfort fundamenta seu conceito de escravidão a Jesus: uma oferta livre e amorosa dos bens interiores e exteriores que seriam meu por direito. Com isso, digo não a mim e sim a Jesus, Sabedoria Encarnada. Obtenho a liberdade interior, assumida através da escravidão (oferta) por amor.

Seguimos, assim, os passos de Jesus, que “aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo” (Fl 2,7). Um escravo por amor, capaz de dizer: “ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo” (Jo 10,18). São Luís de Montfort, sabendo que só se chega ao amor a partir da doação total de si e sendo profundo conhecedor das Sagradas Escrituras, assume uma das imagens comuns à época de Cristo, que é do serviço.

Conceito simbólico de escravidão

Havia duas formas de servir a um senhor na Palestina do início da era cristã: de maneira direta ou indireta. Mas como assim? Imaginemos que o imperador quisesse comer peixe. Quem pescaria seria um homem livre que, em virtude do serviço prestado, receberia um salário, nem sempre justo. Mas quem prepararia o almoço do imperador seria aquele que constantemente o servia, isto é, o escravo.

São Luís Maria supôs que quiséssemos estar junto do Senhor, na casa Dele. E, a única forma de fazer isso seria pela escravidão e não pelo trabalho “terceirizado”. Mas lembremos que esta história de “escravidão” é apenas uma imagem, adotada para representar uma realidade interior, profundamente espiritual e oblativa.

A escravidão na época de Jesus

A escravidão era um meio comum de servidão na época de Jesus e de Montfort. Não tem, portanto, toda a conotação negativa que se encontra hoje, após anos de proclamação dos Direitos Humanos – em nível internacional – e com a Lei Áurea – no Brasil.

Havia algo na sociedade judaica chamado “Código da Aliança” (cf. Ex 21,1-11 e Dt 15,12-18), que regulamentava a escravatura entre israelitas, mesmo apesar do número destes ser bem mais reduzido no período de Jesus – quando se optava mais pelos escravos pagãos (cf. J. JEREMIAS. Jerusalem zur Zeit Jesu. Kulturgeschichtliche Untersuchung zur neutestamentlichen Zeitgeschichte. II Teil: Die sozialen Verhàltnisse, Gõttingen 31962, A. Reich und Arm, pp. 25-26; B. Hochund Niedrig, p. 184.).

O escravo judeu, graças ao Código, não era tratado com tanta aspereza, isto porque tinha uma série de direitos que deveriam ser respeitados. Mas a situação já era inversa para o escravo pagão. Por esse motivo a escravatura hebraica entrou em decadência no período neotestamentário. Como fundamento para tal mudança, muitos resgataram antigos escritos como o que dizia: “O escravo ou a escrava que pretendais adquirir, devem sair dos povos que vos rodeiam” (Lv 25,44).

Escravo: símbolo daquele que espera no Senhor

O escravo era aquele que dependia totalmente do seu senhor. Nada podia adquirir por si só, tudo esperava do seu superior. É assim, confiando na Providência do bom Deus, que queremos trilhar o caminho da santidade. “Pela escravidão, um homem depende inteiramente de outro durante toda a vida, e deve servir a seu senhor, sem esperar salário nem recompensa alguma” (Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, 2010, Vozes, p. 74). É dessa forma que somos convidados a agir diante de Deus.

“É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). Este é o lema da Campanha da Fraternidade deste ano, que trabalha a temática do Tráfico Humano. Dizer-se “escravo de Jesus” (“de Jesus por Maria” ou “de Maria”), em momento algum contrapõe essa afirmação de São Paulo, já que o grau mais alto de liberdade é aquela que se realiza no interior, através da graça divina. Ora, é a graça da liberdade interior, gerada pelo amor, que a consagração à Virgem Maria, segundo o método de Montfort, objetiva.

Servos pelo Batismo

O próprio Cristo “nos associou a Ele pelo batismo”, isto é, “o batismo nos transformou em escravos de Jesus Cristo” (TVD, 2010, p. 73). Portanto, “devemos pertencer a Jesus Cristo e servi-lo, não só como servos mercenários, mas como escravos amorosos” (TVD, 2010, p.78).

Trilhar o caminho da escravidão por amor é viver a vontade de Deus; é fazer o percurso que nos torna livres e santos. “[A vontade de Deus] não é para nós um peso exterior que nos oprime e nos priva da liberdade. Conhecer o que Deus quer, conhecer qual é o caminho da vida, eis a alegria de Israel, eis seu grande privilégio. Esta é também a nossa alegria: a vontade de Deus não nos desvia, mas purifica-nos talvez de maneira até dolorosa e assim conduz-nos a nós mesmos. Desta forma, não servimos só a Ele, mas à salvação de todo o mundo, de toda a história” (BENTO XVI na homilia por ocasião da Eucaristia inaugural do seu pontificado).

Fr. Thiago Pereira, SCJ


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