Formação

Estudo Bíblico: Acolher as nossas próprias contradições

Daniel Ramos, missionário da Comunidade Shalom na França, conduz o Estudo Bíblico desta sexta-feira a partir da Liturgia do Dia.

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Foto: Unsplash

IV SEMANA DA QUARESMA

Primeira Leitura – Sabedoria 2,1.12-22| Salmo – 33/34 | Evangelho – João 7,1-2.10.25-30

Bom dia! Vamos meditar no Evangelho desta sexta-feira, continuando o nosso caminho de leitura orante da Palavra de Deus.

Vamos invocar o Espírito Santo, porque Ele que inspirou as Escrituras pode nos mergulhar no sentido que elas têm para nós também a nível pessoal e a nível de Igreja. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém. “Senhor, envia sobre nós o Teu Espírito Santo. Dai-nos a graça de apreciar retamente todas as coisas, segundo o Teu Espírito. Dai-nos esse olhar pascal de Jesus que integra morte e vida, cruz e ressurreição, e que vê toda a realidade sob a ótica pascal, não apenas as dores como absolutas, mas como caminhos para uma vida nova. Vinde Espírito Santo sobre nós, não nos deixe entregues a nós mesmos. Amém”.

Vamos ler o Evangelho de hoje em oração, deixando que a Palavra vá nos visitando, vá agindo. João 7,1-2.10.25-30:

Naquele tempo, depois disso, Jesus percorria a Galileia. Ele não queria deter-se na Judéia, porque os judeus procuravam tirar-lhe a vida. Aproximava-se a festa dos judeus chamada dos Tabernáculos. Mas quando os seus irmãos tinham subido, então subiu também ele à festa, não em público, mas despercebidamente. Algumas das pessoas de Jerusalém diziam: “Não é este aquele a quem procuram tirar a vida? Todavia, ei-lo que fala em público e não lhe dizem coisa alguma. Porventura reconheceram de fato as autoridades que ele é o Cristo? Mas este nós sabemos de onde vem. Do Cristo, porém, quando vier, ninguém saberá de onde seja”. Enquanto ensinava no templo, Jesus exclamou: “Ah! Vós me conheceis e sabeis de onde eu sou! Entretanto, não vim de mim mesmo, mas é verdadeiro aquele que me enviou, e vós não o conheceis. Eu o conheço, porque venho dele e ele me enviou”. Procuraram prendê-lo, mas ninguém lhe deitou as mãos, porque ainda não era chegada a sua hora.

Jesus obedece ao tempo da graça de Deus

Ao ler esse texto a primeira coisa que nos salta aos olhos, pelo ao menos para mim nesse momento, foi que Jesus obedece a uma hora, a um tempo, que é o tempo do Pai, o tempo de Deus, o tempo da graça. Em grego temos a palavra Chronos para falar de tempo, mas também Kairós, que é o tempo da graça de Deus, tempo da ação de Deus, e o tempo de Deus é diferente do tempo humano. O nosso tempo humano é regido pela sucessão de dias e noites, a terra que gira ao redor do sol e que gira sobre si mesma, ela vai se mostrando ao sol e se escondendo do sol, formando os dias e as noites.

Mas o tempo da graça é diferente, ele é por momentos, por obras, por ações. Deus vai realizando momentos, obras, ações, manifestações da Sua obra. Por isso que a Palavra de Deus diz que para Deus um dia são como mil anos e mil anos como um dia, querendo dizer justamente que Deus é que conduz tudo para o seu fim, no sentido de finalidade, para a sua finalidade, e está conduzindo o  universo para Si. O universo será novo, será renovado. Na renovação dos últimos tempos tudo será novo. O mal será destruído e o último inimigo, a morte, será vencido. Deus será tudo em todos, nos diz São Paulo aos Coríntios.

Por isso ele vai se servindo na Sua Divina Providência dos acontecimentos e das liberdades dos homens, daqueles que se servem dela para fazer o bem, ou dessas liberdades abusadas daqueles que se servem do livre arbítrio para cair no mal. Deus é tão Deus que até de um erro Ele tira um caminho novo de salvação para a humanidade.

O maior pecado da humanidade

Qual foi o maior pecado da humanidade, se não ter crucificado Jesus Cristo? Pois bem, desse maior erro, desse maior pecado, Deus encheu esse ato de morrer na cruz com o Seu amor e destruiu o poder da morte, e transformou a morte que nos faz tanto medo muitas vezes em uma passagem para o mundo novo, para o mundo de Deus, para a contemplação do rosto de Deus. Por isso Jesus não obedece aos tempos. Ele se submete aos calendários humanos, mas a missão Dele está na lógica do tempo divino, do tempo do Pai.

Quando ele começa nessa leitura de hoje, fala que Jesus por isso mesmo não estava na hora ainda de dar sua vida sobre a cruz. Então, Ele anda pela Judeia, mas evitava deter-se por lá, porque os judeus procuravam mata-lo. Quando ele ia para lá, era meio que às escondidas, despercebidamente. Quando Ele falava no templo era em momentos precisos e estratégicos aos olhos divinos, não aos olhos humanos. Jesus acolhe a contradição que a Sua missão gera nos corações dos homens. Ele acolhe a lentidão da humanidade em perceber quem Ele é. Ele se esconde porque percebe que nem todo mundo está pronto para encontrar a Sua verdade ainda, e se revela no momento certo.

Muitas vezes nos perguntamos: “Porque que Deus não se revela logo para todo mundo?”. Pois bem, o Senhor que sabe mais do que nós, e às vezes com essa pergunta queremos dizer: “Se fosse eu, já tinha me revelado a todos e já estava tudo resolvido”. Mas o Senhor tem uma condição para Ele se revelar a nós. Ele não quer passar por cima da nossa liberdade, porque quem ama deixa livre. Você não pode apontar um revólver para uma pessoa e dizer: “Case comigo, senão lhe mato”. A pessoa pode se entregar a você até fisicamente, mas não entrega o coração.

Deus não quer apontar um revólver sobre a nossa cabeça. Então, às vezes Ele percebe que se Ele se revelar naquele momento na vida daquela pessoa vai ter mais chance dela dizer um não. Então, Ele espera. Ele espera os tempos da graça, mesmo que Ele sofra muito, porque enquanto nós não O conhecemos mais nós mesmos vamos sofrendo mais. Quanto mais nos unimos a Deus mais o nosso coração vai encontrando forças até em meio dos sofrimentos da vida. O Senhor acolhe, aceita essa contradição que a Sua missão gera nos corações dos homens. tem quem queira matá-lo e não é a hora ainda Dele dar Sua vida na cruz. Então, Ele se esconde até o momento mais estratégico sob a ótica divina onde Ele fala no tempo.

Acolher as nossas próprias contradições

Outra questão que se levantou de mim ao rezar com essa palavra agora foi que o próprio Jesus nos convida a nós também acolhermos as nossas próprias contradições, porque existem áreas do nosso ser que ainda não são evangelizadas. Você pode estar indo à missa, rezando todos os dias, mas têm áreas do meu ser que talvez ainda não tenham se submetido ao amor de Deus.

Existe essa contradição na humanidade. Tem quem acolha Jesus, tem quem não O acolha, mas existe essa contradição dentro de nós também. Áreas do nosso ser que são rebeldes ao Evangelho, que ainda estão na reação e não na ação.

Como assim? A reação é quando você se deixa ditar por um estímulo exterior. Então, se pisaram no seu pé, você pisa no pé do outro; se bateram no seu rosto, você bate de volta; se falaram mal de você, você fala mal também; se te fizeram mal, você se vinga. Aí você está na reação, e isso não é um ato humano, mas é um ato humano desfigurado pelo pecado.

Os atos humanos dignos desse nome são aqueles em que eu recebo o estímulo às vezes até negativo, mas eu sei que o que sinto não é ainda a minha verdade. É aquela primeira pulsão. Mas o quê que eu faço com essa pulsão? E aí eu às vezes rezo, clamo a Deus rapidamente ali, não tenho tempo, mas: “Senhor, me ajude! Ajude-me a não responder na mesma medida. Ajude-me a não falar mal do outro. Ajude-me a não criticar, porque eu ainda não entendi bem o que está acontecendo”.

O cristão tem essa sabedoria de se afastar um pouco da situação, pelo menos interiormente falando, para perceber as contradições próprias daquela situação a fim de não ser injusto na sua própria ação. O que eu sinto, eu não sou obrigado a consentir. Eu sinto raiva? Eu não sou obrigado a soltar os cachorros, como dizem. Se eu faço tudo aquilo que eu sinto, então eu estou cada vez mais relegando a minha racionalidade para segundo plano, porque eu nem reflito e já vou atacando o outro, eu vou cada vez mais entrando num caminho de animalização, degradando a minha humanidade.

Em compensação, se eu espero para entender o que está acontecendo, não vou falar com essa pessoa ainda, e não é desprezar o outro, mas é você até dizer: “Meu irmão, eu queria conversar contigo, mas vou dar só um tempinho porque ainda não estou pronto para esse momento”. É diferente de você “matar o outro na unha”, como dizem, ser indiferente. Isso daí não é de Deus, mas às vezes você precisa de um tempo antes de conversar com aquela pessoa para você não agir segundo o que você está sentindo, mas segundo uma sabedoria de vida, segundo o Evangelho.

Os instintos do cristão são as inspirações do Espírito

São Tomás de Aquino vai dizer que os instintos do homem cristão são as inspirações do Santo Espírito. Cada vez mais eu vou me deixando guiar pelas inspirações do Espírito Santo e não pelo que eu sinto, que tantas vezes nos faz fazer bobagens, não é verdade? Os nossos sentimentos nos enganam muitas vezes. São sentimentos movidos por feridas, por experiências do passado que ainda estão influenciando a minha reação no hoje. São reações condicionadas que não levam em conta as contradições da minha alma, mas que toma por verdade tudo o que eu sinto. Isso é o homem ca carne, que vive na carne, como diz São Paulo, o homem velho.

Nós precisamos aceitar as nossas contradições para aprender a lidar com elas e a responder inspirados pelo Espírito Santo, senão vamos, como esses homens da lei, querer matar Jesus dentro de nós. O Senhor quer investir em áreas da nossa vida e não deixamos, porque estamos feridos, e calamos a boca de Jesus que quer tocar na nossa afetividade, que quer tocar na nossa sexualidade, na nossa relação com o dinheiro, com os nossos bens, que quer tocar nas nossas relações familiares, que quer tocar na minha entrega, na minha vida de oração, em como eu vivo o meu tempo. Deus quer tocar porque Ele quer o nosso coração!

Ele não quer só comportamento não. Ele quer o nosso coração, Ele é apaixonado por nós. Deus não se contenta de menos do que o seu coração. Por isso acolha as contradições do seu coração sem cair num remorso estéril, mas reconhecendo os seus pecados e entregando a Deus para que Ele vá derramando o Seu Espírito Santo e nos ensinando a lidar com as nossas contradições. E assim nós não vamos mais abortar ou calar a boca de Jesus que quer falar no nosso coração.

É até interessante porque diz aqui no Evangelho: “Vós dizeis que me conheceis”, e tantas vezes dizemos: “Senhor, eu te conheço. Eu tenho uma experiência contigo”, e é verdade, nós temos certa experiência com Deus, mas comparado ainda ao que está por vir é muito pouco. Nós não conhecemos é nada ainda.

Deus é eterna novidade

São João da Cruz vai dizer que Deus é eterna novidade. Então, nós precisamos nos deixar surpreender sempre por Deus. Se achamos que já demos a volta naquela praça, que Deus é como um objeto que eu dou a volta e conheço tudo, então já não é mais Deus aquilo dali. É o ídolo que eu criei na minha cabeça e chamo de Deus. Deus eu nunca vou entender, porque Ele é infinito! Nós nunca vamos conhecer nesse mundo o suficiente.

Claro, eu conheço Jesus, sou amigo de Jesus, eu posso dizer para as pessoas que eu conheço a Deus, mas é preciso também saber que tem muito mais ainda a conhecer do que eu conheço, e que por isso eu preciso ser pequeno sob o olhar do Senhor, acolher as minhas contradições para não viver de reação, mas de ações humanas – no bom sentido da palavra- que são marcadas pela reflexão, pela análise, e que são inspiradas pelo Espírito Santo.

E assim tantas bobagens que fizemos, não vamos mais fazer, e vamos percebendo que o nosso comportamento vai mudar porque do interior, do nosso ser, o nosso contato com o mundo vai mudando, e o mal que nos escandaliza tanto nos outros, vamos olhar de uma maneira nova, não canonizando o mal, mas não julgando mais tanto os outros.

O fato de não julgar não quer dizer que eu chame o mal de bem. O mal é mal, mas eu não julgo aquela pessoa. Eu rezo por ela. Eu estou disponível para conversar com ela se necessário, acolhê-la, escutá-la. Então, eu não me sinto melhor do que ela porque talvez se eu tivesse a história de vida dela, se eu tivesse a mesma família ou tivesse nascido no mesmo país, eu fizesse muito pior do que aquela pessoa. Então, eu vou acolhendo as contradições dos outros para aprender a lidar com as contradições dos outros, e a levar a presença do amor de Deus aonde ainda Jesus é perseguido no meio de nós.

Plante amor e você colherá amor

São João da Cruz também vai dizer que aonde não há amor, plante amor e você colherá amor. Mas é preciso, como toda plantação, ter paciência. Não é desenho animado, onde você joga uma somente e ela já cresce de uma vez, mas é preciso ter a paciência do agricultor. A paciência de Deus é a paciência de quem ama. A caridade é paciente, já dizia São Paulo.

Que Nosso Senhor nos ajude a acolher essas contradições para aprender a lidar com elas, tanto em nós como nos outros, e assim não mais calarmos a boca de Deus, ou termos a impressão de que calamos, porque não calamos, mas não tentarmos mais matar Jesus no nosso coração. Tantas vezes já o fizemos sem nos dar conta.

São Paulo dizia: “Não contristeis o Espírito Santo”[3], isso quer dizer que nós podemos deixar Deus triste quando não O deixamos ser Deus na nossa vida. Nós já deixamos muito tempo nós, sermos nós, no sentido de nossos pecados, do nosso homem velho, da mulher velha que existe em você. Agora está na hora de deixar Deus ser Deus na minha vida e na sua vida.

Vamos terminar rezando, como sempre? Senhor, nós Te suplicamos: vem em nós, mesmo que muitas vezes Tu tenhas vindo como que as escondidas, como nesse Evangelho, mas fala-nos, fala-nos hoje, pois não queremos mais resistir a Tua palavra, não queremos mais Te condenar à morte, como fizemos tantas vezes, mas dai-nos a graça de Te conhecer não da boca para fora, mas com o coração que deseja se apaixonar cada vez mais por Ti.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, para sempre seja louvado! Shalom!

Daniel Ramos
Comunidade de Vida


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