Formação

Estudo Bíblico: Deus leva a sério a sua eleição

Daniel Ramos, missionário da Comunidade Shalom na França, conduz o Estudo Bíblico desta quarta-feira a partir da Liturgia do Dia.

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V SEMANA DA QUARESMA (Roxo – Ofício do Dia)
 
1ª Leitura – Dn 3,14-20.24.49a.91-92.95 | Salmo – Dn 3, 52. 53. 54. 55. 56 (R. 52b)
Evangelho – Jo 8,31-42

Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo, amém.

Senhor, nós te pedimos pela intercessão de Nossa Senhora que tu envies sobre nós o Teu Espírito. Dai-nos a Tua graça. Sem Ti nada podemos fazer. Nós temos sede da Tua palavra. Como dizia o profeta Jeremias, Senhor, nós temos sede de devorar as tuas palavras. Temos sede de Ti. Existe como que um fogo encerrado nos nossos ossos que arde de desejo de Ti. O mundo está doente de tanto barulho, e o homem não sabe mais detectar qual é a palavra que traz vida. Senhor, dai-nos a graça do silêncio interior para escutarmos a Tua palavra, e que essa palavra gere em nós um mundo interior novo, que testemunhe o mundo ao qual nós somos chamados. Amém.

Vamos em frente, queridos irmãos? Vamos continuar o capítulo 8 do Evangelho de São João, onde Jesus está conversando com os judeus. Não são todos os judeus, mas são uns que creem em Jesus, mas têm dificuldade de ir mais além, outros que resistem ao anúncio da revelação da pessoa de Jesus, e aí tem todo esse debate, todo esse diálogo, esses questionamentos para com a pessoa de Jesus.

+ Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo São João 8,31-42

– Naquele tempo, Jesus disse aos judeus que nele tinham acreditado: ‘Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.’ Responderam eles: ‘Somos descendentes de Abraão, e nunca fomos escravos de ninguém. Como podes dizer: `Vós vos tornareis livres’?’ Jesus respondeu: ‘Em verdade, em verdade vos digo, todo aquele que comete pecado é escravo do pecado. O escravo não permanece para sempre numa família, mas o filho permanece nela para sempre. Se, pois, o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres. Bem sei que sois descendentes de Abraão; no entanto, procurais matar-me, porque a minha palavra não é acolhida por vós. Eu falo o que vi junto do Pai; e vós fazeis o que ouvistes do vosso pai.’ Eles responderam então: ‘O nosso pai é Abraão.’ Disse-lhes Jesus: ‘Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão! Mas agora, vós procurais matar-me, a mim, que vos falei a verdade que ouvi de Deus. Isto, Abraão não o fez. Vós fazeis as obras do vosso pai.’ Disseram-lhe, então: ‘Nós não nascemos do adultério, temos um só pai: Deus.’ Respondeu-lhes Jesus: ‘Se Deus fosse vosso Pai, vós certamente me amaríeis, porque de Deus é que eu saí, e vim. Não vim por mim mesmo, mas foi ele que me enviou. Palavra da Salvação.

 A permanência que forma discípulos

É interessante, porque o início do Evangelho começa dizendo que Jesus fala aos judeus que tinham acreditado Nele, e depois, amanhã, vamos ver que Jesus diz que o pai deles aqui é o demônio. Então, ficamos meio confusos.

Se esses são os que acreditaram em Jesus, imagina os que não acreditaram! Mas na verdade é que parece ser apenas uma inclusão do evangelista para deixar claro que alguns judeus tinham acreditado em Jesus e tornaram-se discípulos de Jesus. Mas logo depois ele volta ao diálogo entre Jesus e os Seus opositores.

Eu gostaria de começar com esse versículo, porque ele foi muito utilizado de maneira política recentemente no Brasil, ideologicamente:

“Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos”, e a parte que foi comentada politicamente é essa: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Mas você vê que o que foi veiculado politicamente muitas vezes foi essa frase solta: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Mas quando a colocamos no contexto, a colocamos no contexto de que você só pode conhecer a verdade que te liberta se você permanecer na minha Palavra.

O segredo está na permanência

O verbo em grego muito utilizado por João é menow, que também é utilizado para dizer quando Jesus fala que Ele está no Pai, e o Pai está Nele. Ele permanece no Pai e o Pai permanece em Mim.

Então, é uma presença existencial, é a atmosfera, é a seiva vital daquela presença. Não é uma presença simplesmente geográfica, como estou sentado aqui agora e daqui a pouco estarei em outro lugar. Não! Mas é uma presença ontológica, existencial, tanto a nível do ser como a nível da existência, que é o ser que se move na história, na existência dia após dia.

Jesus vai dizer assim: “O segredo do discípulo é permanecer nele, na palavra Dele” – Jesus vai desenvolver isso em João 15, quando Ele fala da videira e dos ramos-, ou seja, fazer com que essa palavra, esse Evangelho, com que essa vida que é a vida de Jesus seja a seiva mais profunda, seja o meu alimento, como Jesus diz com relação ao Pai: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou”[1]. Tornar-se para mim um verdadeiro alimento. Tonar-se para mim o ar que eu respiro.

O livro “O Irmão de Assis”[2], falando de São Francisco, o autor diz algo que sempre me tocou muito. Ele diz, falando de Francisco, que Deus era a grande realidade da sua vida. Então, é um pouco isso. Permanecer na palavra, permanecer em Jesus, é fazer de Deus a grande realidade da minha vida.

Utilizando a linguagem dos Evangelhos sinóticos, os outros três Evangelhos, é buscar em primeiro lugar o reino dos céus e tudo mais será dado por acréscimo.

É buscar em primeiro lugar Deus e permanecer, porque se eu busco é porque de alguma maneira já o encontrei, se que vale a pena buscá-lo. Então continuo buscando mais, porque sei que Deus é eterna novidade, como já vimos aqui outro dia. São João da Cruz diz que Deus é eterna novidade. Eu continuo buscando, continuo cavando.

O verbo em hebraico para se falar de contemplar é um verbo que tem o sentido de cavar, é uma escavação. A contemplação é uma escavação. Eu estou buscando na profundidade do meu coração aquela presença divina, porque eu quero permanecer Nele. Não existe outro lugar para mim.

Onde quer que eu esteja, eu quero permanecer Nele, eu quero viver Dele, eu quero viver com Ele e para Ele, permanecer. Como o Filho permanece no Pai, o Pai permanece no Filho, eu quero permanecer em Jesus, e Jesus permanecer em mim.

É uma união esponsal, no caso da nossa vocação, porque é uma união total entre essas duas pessoas que se amam e se entregam uma à outra. O amor esponsal é um amor de entrega, o amor do esposo que se entrega à esposa, a esposa que acolhe o Esposo como ele é e que se entrega a ele. Assim, é o nosso amor por Deus e o amor de Deus por nós.

Reconhecemos as nossas escravidões?

Os interlocutores de Jesus dizem que não precisam de mais nada, porque já são descendentes de Abraão, e por isso não foram nunca escravos de ninguém. Bem, politicamente falando não é verdade.

Sabemos que os judeus inclusive foram deportados para a Babilônia, foram mantidos escravos dezenas de anos, foram escravos no Egito, houve invasões também, várias deportações. O que eles estão querendo dizer aqui é que a nível de religiosidade, por terem Abraão por pai, eles não são escravos de ninguém.

Isso é muito interessante, porque já nos Evangelhos sinóticos, nos três primeiros Evangelhos, a invocação da paternidade automática de Abraão era criticada já por João Batista.

João Batista diz em Mateus 3, 9: “Deus pode suscitar filhos de Abraão a essas pedras que estão aqui”, como que se dissesse: “Vocês não tem mérito nenhum de ser filho de Abraão, porque dessa pedra aqui Deus pode fazer um filho de Abraão. Não coloquem a segurança do coração de vocês na eleição. Se você não responde a essa eleição com uma resposta total de amor, essa eleição vai ser um peso para você, porque você vai ser um eleito ingrato”.

Por exemplo, Jesus não escolheu onze apóstolos e um traidor. Ele escolheu doze apóstolos, mas um dos doze respondeu a essa escolha de Jesus traindo, que foi Judas. Jesus não escolhe uma pessoa para fazer o papel do malvado, quando como vamos fazer uma peça: “Você vai fazer quem? Você vai fazer o malvado, eu faço o personagem do mocinho”, não! Não é um teatro. Jesus chama a cada um de nós para a santidade, mas se nós nos prevalecermos dessa eleição: “Ah, eu sou Shalom”, “tenho um tau no pescoço”, “já tenho promessas definitivas”, “tenho promessas temporárias”, “ah, conheço Fulano e Beltrano, que são autoridades e que confiam muito em mim”.

Então, na medida em que eu vou colocando a segurança da minha alma nestas realidades, que Deus pode tirar das pedras aquilo ali, isso daí é um caminho para que eu falte com a vigilância interior.

“Bem, se eu tenho essa segurança aqui, eu, no fundo, posso me dar alguns direitos”, e aí vou deslizando para a tibieza, para a acedia, para uma vida morna, e vou aos poucos afrouxando a minha vida espiritual.

“Porque eu sou filho espiritual do fundador da Comunidade Shalom, o Moysés”, “Sou filha espiritual da Emmir”, ou então “conheço o Bispo Fulano”, ou “sou dessa célula, que é muito antiga na minha missão”.

Damos sempre um jeito para querermos mostrar que somos melhores do que os outros, não é?

Até quando pecamos, dizemos: “Eu sou o maior pecador do mundo”. É como se tivéssemos de ser o maior em alguma coisa.

O orgulho, a arrogância e a vaidade

O Papa Francisco diz que nós preferimos muitas vezes ser um general de um exército que está perdendo a guerra do que um simples soldado de um exército que está ganhando a guerra, porque nós somos orgulhosos, vaidosos e arrogantes. Essa é a verdade.

E aí João Batista vai dizer:

“Deus pode suscitar dessas pedras que estão aqui filhos de Abraão”.

Na Parábola de Lázaro[3], aquele pobre que morreu na porta daquele homem rico e que se encontra no seio de Abraão, o mau rico olha para o céu, e diz: “Abraão, meu pai, pede para que Lazaro toque com a ponta do dedo na minha língua para refrescar, porque é muito quente aqui”.

Então, ele chama Abraão de pai. O que Abraão diz? “Não. Existe uma distância que não pode ser percorrida entre onde tu estás e onde Lázaro está”. Esse mau rico quis se prevalecer, quis ter direitos até ali naquele lugar de sofrimento porque se achava filho de Abraão.

E aí Jesus fala na Parábola do Reino dos Céus, em Mateus 8, 11-12, de um grande banquete em que virão de todos os lugares do mundo os herdeiros do Reino, para festejar com Abraão, enquanto vós sereis jogados nas trevas exteriores.

O que Jesus quer dizer aqui é que tenham cuidado, não é suficiente ser eleito de Deus. Deus leva a sério a responsabilidade a qual Ele te chama. Ele espera um sim da sua parte. A pessoa que leva mais a sério a nossa responsabilidade, a nossa liberdade, é Deus.

O pecado é a verdadeira escravidão

E Jesus vem lembrar de que o que torna escravo não é pertencer a este ou aquele povo, não é ser desta ou daquela comunidade, mas é ser escravo do pecado. O pecado é essa realidade que desfigura o homem.

Às vezes nós dizemos assim: “Ah, quem quiser que me acolha como eu sou. Eu sou assim”, não, meu irmão! Se por detrás desse “eu sou” estão os seus pecados, então você não é o que o pecado tornou você. O pecado desfigura a imagem de Deus em nós.

A nossa identidade não é o pecado. A nossa identidade, talvez nós nem saibamos qual seja ainda, porque Jesus ainda não revelou a maravilha que nós somos chamados a ser. Você entende que é preciso deixar que Jesus nos surpreenda? Nós temos que deixar os nossos pedestais.

Às vezes quando somos formadores pessoais ou comunitários, ou autoridade de algum tipo, achamos que porque temos de estar ali ajudando os que estão começando, ou os que já tem alguma caminhada, é como se: “Não, eu não caio naqueles pecados ali, porque se eu sou formador dele”, não é assim não!

Às vezes Deus me coloca na formação porque sabe que eu seria muito desobediente se não estivesse ali naquela formação. Deus escolhe sempre os piores.

Então, não vamos tirar o nosso corpo de um exame de consciência sincero, real, e que nos leve a uma conversão verdadeira. Não percamos tempo! Sofremos tanto para ainda não nos convertermos? Não é possível! Não percamos tempo!

Acolher a paternidade de Deus

“Se Deus fosse vosso Pai, vós certamente me amaríeis”, disse Jesus.

E quando é que nós não amamos a Deus? Quando não cumprimos a Sua vontade, quando rejeitamos os nossos irmãos, quando nos centralizamos em nós mesmos, quando negligenciamos os nossos tempos de oração.

Nós estamos mostrando um amor limitado para com Jesus, e assim a filiação divina vai se enfraquecendo, o nosso relacionamento com Deus que é Pai vai se enfraquecendo, e é próprio do pecado nos dar uma falsa imagem de Deus.

Quando Adão e Eva pecariam, o que foi que fizeram logo? Esconderam-se de Deus, porque não tinham mais um olhar livre e luminoso, e por isso tiveram medo. O pecado gera medo, o pecado nos faz nos esconder de Deus, e o pecado nos faz matar os nossos irmãos, como Caim matou Abel.

Um convite à oração

Irmãos, vamos rezar. Os judeus terminam, dizendo: “Nós não nascemos do adultério, temos um só pai: Deus”. Eles falam aqui no sentido mesmo de que a idolatria é um tipo de adultério, porque Deus é o esposo do povo. Então, a idolatria é um adultério espiritual.

Que o Senhor nos dê a graça de ser fiéis a Ele, de irmos até o fim no Seu seguimento, e de termos a alegria de amar a Jesus, e assim de experimentarmos a doce paternidade do Pai.

Vem, Senhor, derrama sobre nós a Tua graça. Dai-nos a graça de acolher a tua graça. Dai-nos a perseverança de permanecer em Ti. Liberta-nos dos nossos pecados e faz-nos novos em Cristo Jesus.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, para sempre seja louvado! Shalom.

[1] João 4, 34.
[2] O Irmão de Assis. Autor: Inácio Larrañaga. Editora: Paulinas.
[3] Lucas 16, 19-31.

Daniel Ramos, Missionário da Comunidade de Vida Shalom na França


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