Evangelhode São Marcos 9, 2-10
A cena da Transfiguração situa-se nosinícios da segunda parte do Evangelho de Marcos. A primeira parte (Mc 1, 1 – 8, 29) parece querer sera resposta à incompreensão das pessoas que se interrogam – “quem é este homem?”– sem atinarem com a resposta certa, culminando com a confissão de Pedro: “Tués o Cristo!” (8, 29). Mas perante a revelação da natureza da obra messiânicade Jesus, que passa pela aparente derrota da Paixão e da Cruz, surge aincompreensão dos próprios discípulos, a começar pelo próprio Pedro (8, 31-33). A visão antecipada da glória do Messias naTransfiguração serve de corretivo para aqueles queficaram confundidos com o primeiro anúncio da Cruz como meio de salvação (8, 31 – 9, 1). Para nós, é também uma visão antecipada davinda gloriosa de Cristo, a encher-nos de esperança (cf. Filp3, 21). A Transfiguração do Senhor nada tem a ver com os mitos gregos dasmetamorfoses. O próprio S. Lucas, melhor conhecedor da cultura grega, teve oescrupuloso cuidado de evitar o verbo grego usado por S. Marcos – metamorfôthê, transfigurou-Se – substituindo-o por umcircunlóquio: “ao rezar, ficou outro o aspecto do seu rosto”. Nos mistériosgregos, chega-se progressivamente à transformação da natureza – a metamorfose–, através duma iniciação mistagógica, ao passo queesta transfiguração de Jesus foi repentina e passageira, uma manifestação doque Jesus já era antes.
Pedro, Tiago e João, são ostrês prediletos de Jesus, destinados a ser “colunasda Igreja” (Gal 2, 9) particularmente firmes, tambémtestemunhas da ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,37) e da agonia de Jesus no horto (Mt 26, 37), diríamos, uma espécie de núcleoduro dos Doze. “A um alto monte”: Os Evangelhos não dizem o nome do monte quehabitualmente se julga ser o Tabor, um monte situadoa 10 kma Leste de Nazaré, segundo uma antiga tradição já referida por Orígenes. Comoeste monte não é muito alto (apenas 560 m), há exegetas que falam antes do Monte Hermon (2.759 m), junto a Cesarea de Filipe,região onde Jesus tinha estado, segundo os três sinópticos, uma semana antes.“E transfigurou-Se diante deles”: o acontecimento é descrito,não como uma visão, mas como uma epifania, pois foiEle mesmo a “manifestar” a sua própria glória divina, enquanto estava com eles.O fato deveras notável não foi tanto a visão deMoisés e Elias, mas a da glória de Jesus.
“As vestes… resplandecentes…” S.Marcos não faz referência ao rosto de Jesus que ficou brilhante como o Sol (Mt17, 2). O Evangelista não precisava de pormenorizarmais, pois a referência da brancura sobrenatural das vestes era o suficientepara que o leitor tomasse consciência da personalidade celestial de Jesus (cf. Dan 7, 9; Act 1, 10; Apoc 3, 4-5; 4, 4; 7, 9).
“Moisés e Elias”. A sua presença à voltade Jesus deixa ver como a Lei e os Profetas convergem para Ele, uma vez quetinham preparado e anunciado a sua vinda. A própria tradição rabínica falava deMoisés como precursor do Messias e Malaquiasanunciara a vinda de Elias nos tempos messiânicos (Mal 3, 23).
“Três tendas”. Assim se prestava Pedro afacilitar que se prolongasse aquele êxtase paradisíaco. Fala de três e não deum único refúgio, tendo em conta a desigual dignidade de cada uma das pessoas.“Não sabia o que dizia”: Pedro, tomado de assombro, pensa em categorias de ummessianismo glorioso e pretende que aquela situação extraordinária se prolonguee mantenha, totalmente alheado da realidade do dia adia. “Veio então uma nuvem”: mas esta não era uma resposta à sugestão de Pedropara construir um abrigo; a nuvem – a tenda de Deus (cf. 2 Sam22, 12; Sl 18(17), 12), que cobriu e envolveu Jesus“com a sua sombra” –, aparece sobretudo como um sinalbíblico da presença de Deus, que simultaneamente O revelava e O ocultava (cf.Ex 13, 22; 19, 9; 24, 15-16; 33, 9; Lv 16, 2; Nm 9, 15-23; 11, 25). De acordo com Lc9, 32, este prodígio deve-se ter verificado de noite, enquanto o Senhor faziaoração (Lc 9, 29). Mas não consta que Jesus se tenhaelevado, levitando no ar, como O pintou Rafael. “Este é o meu Filho”. Com estaspalavras a cena atinge o apogeu: a voz vinda do Céu (a bat-qol,como garantia divina) é mais uma confirmação divina da anterior confissão da féde Pedro (Mc 8, 29). S. Tomás comenta: “Apareceu todaa Trindade, o Pai na voz, o Filho no homem, o Espírito na nuvem luminosa”.
“Ordenou-lhes que não contassem…” Estaordem pertence à chamada disciplina do segredo messiânico – a que Marcos dáespecial ênfase pela preocupação teológica de fazer ressaltar a incompreensãoperante Jesus, a ser superada pelos seus só após a glória da Ressurreição –,visa evitar possíveis agitações populares, que só contribuiriam, para perturbare dificultar a missão de Jesus.