Formação

Gocce

comshalom

Hora de partir! Belas as montanhas, belo o rio que sempre passa, belo o lago que se forma, bela a lição que aprendera sobre a beleza e verdade, que se supõem, e sobre a humilde acolhida da mesma beleza e verdade. Muito bom, muito bom, mas é hora de partir.

A danadinha da Liv já se fora, sempre irrequieta, Deus sabe para onde. “E eu”, pensou, “para onde vou? Quando, enfim, vou ter um tempo de repouso? Quando vou parar de andar para lá e para cá? O que ainda me falta?”, caminhava, sem rumo, nosso peregrino, até cair mais uma vez, o pé direito enganchado sabe-se lá em quê. Eram cinco da tarde.
“Ai, desgraçado!, isto é, bendito seja Deus, louvado seja Deus, mas dói, este troço.”

Com esforço e muita dor, retirou o pé machucado da grande argola de ferro que o prendia à tampa de uma caixa de metal meio soterrada no campo. Era preciso abri-la, mas o pé recusava-se a dar-lhe apoio. Aliviada a dor, insistiu nas tentativas de abrir a tampa. Tudo em vão.

“Bem que deveria ter trazido minhas ferramentas,” pensou. “Fui cair na besteira de me livrar de tudo para ficar mais livre, mais leve… taí no que deu. Agora preciso do que deixei para trás e ninguém aparece para me ajudar!”, lamentou-se, segurando o arado, perdão, a argola, e olhando para trás, na esperança de ver ajuda.

“Ora, quer saber? Não me importo com o que tem aí dentro. Vou seguir em frente”, irritou-se, dando um soco final na tampa que… abriu-se. Devagar, ele a levantou, sem esperar grandes coisas. O sol ainda teve como fazer brilhar centenas de pequenas barras de ouro com a inscrição de um banco famoso e garantia de proveniência.

Enlouquecido, o peregrino, esquecido do pé machucado, sapateava e dançava de alegria. Livre! Estava livre! Enfim, livre! Livre do patrão chato, livre do interrogatório dos pais, livre do cansaço, livre da preocupação, livre de ter de produzir, produzir, produzir. Livre, sobretudo, daquela menininha chatinha que sempre aparecia para dar-lhe lições de moral.

“Espera! Tem alguém olhando! Alguém perdeu esta caixa aqui! Alguém está esperando um otário encontrá-la para dar o bote. Melhor esconder a caixa. Daqui a pouco escurece! Melhor não facilitar!”

Sentado na caixa, acordado por sobressaltos e calafrios, pesadelos e assombros, assim passou a noite nosso peregrino. Ninguém apareceu. Só seus próprios fantasmas.Só a velha ganância de todo e cada homem, a velha e peçonhenta ambição.

O sol nascente fê-lo acordar de vez, de um pulo sobressaltado que o fazia mais parecer um predador a olhar em todas as direções. Seguro de que não havia ninguém, desenterrou com facilidade a caixa, quase uma valise, tomou-a pela argola e saiu mancando.

Às dezessete horas, a caixa, misteriosamente, escapa-lhe da mão e se enterra, deixando de fora a argola, na qual ele, no afã de não deixá-la escapar, tropeça. Pé machucado, sobressalto, caixa aberta, ouro a brilhar, noite insone, olhar de predador, nova partida.

Dezessete horas do terceiro dia e a caixa novamente lhe escapa, novamente se enterra e tudo se repete.

Dezessete horas do quarto, quinto, sexto, sétimo dia e tudo, a cada dia se repete. Cego, o peregrino não percebe que, ainda que tenha caminhado por sete dias sem parar, encontra-se exatamente no mesmo lugar. A mala e seu ouro o dominam. Cego, nada vê. Surdo, não escuta Liv a chamá-lo ao longe. Alienado, não entende nada, não deseja nada, não é capaz de raciocinar sobre nada a não ser na posse de suas amadas barras de ouro.

Liv chora. Sabe que o perdeu. É impotente para retirá-lo das garras da ganância, da prisão do dinheiro como um fim. Apesar de não ter muita esperança, resolve tentar. Tranças muito apertadas, amarradas ao redor da cabeça, aparece e implora, mendiga: “Um pouco do teu ouro, por amor a Deus!”

Nada. Não se move o peregrino, nem fala,nem ouve. Nada. Está pronto somente para recomeçar sua peregrinação ilusória com passos que não o retiram de si, deixando-o no mesmo lugar vasto e deserto, cercado de pedras em forma de gigantescas grades.

“Perdi-o”, admite Liv. Mais um que não passa desta prova. E, levantando os olhos, contempla o que o amigo não consegue ver: milhares de esqueletos espalhados pelo campo, agachados, vergados sobre si mesmos, como o pobre e enlouquecido peregrino. Este, cabelos engrenhados, esturricados pelos já trezentos e sessenta dias de esforço, no auge da exaustão, vê toda a sua vida passar diante de si: gestação, infância, adolescência, hoje. “Vou morrer!”, percebeu e, abrindo os olhos, vê Liv que o olha como a esperá-lo e cai, curvado sobre si, inerte, aos seus pés.

Maria Emmir Oquendo Nogueira
Continuação dos Gocce precedentes,
sobre a liberdade interior.


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