O mistério da Encarnação de Cristo nos revela Deus em seu amor incondicional pela humanidade, assumir a condição humana, unindo-se de modo particular a cada homem. O Verbo que se fez carne e veio habitar entre nós[1], entra na história da humanidade e “com este ato redentor a história do homem atingiu, no desígnio de amor de Deus, o seu vértice.”[2] Deus que conhece a vida humana e o coração humano em sua profundidade, entrando no tempo do homem, fazendo-se um de nós, comunica-nos a sua vida, o Seu Espírito, e faz misteriosamente de todos como que o Seu Corpo. As Sagradas Escrituras nos indicam que o Corpo de Cristo é a Igreja, “é nesse corpo que a vida de Cristo se difunde”[3]. Portanto, celebrar o mistério da Encarnação é celebrar o mistério que é a Igreja. Porém diante dessa verdade emerge uma pergunta: a Igreja é uma instituição ou continuação do mistério da Encarnação?
O novo cardeal da Igreja, frei Raniero Cantalamessa, em sua primeira pregação de advento de 2015, fazendo uma releitura cristológica da Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, afirma que a pergunta fundamental não é o que é a Igreja, mas quem é a Igreja. A chave interpretativa para responder a esta interrogativa não é simplesmente social ou institucional, mas cristológica. Compreender a Igreja como corpo de Cristo nos ajuda a entender que ela verdadeiramente é uma continuação do mistério da Encarnação, que a Igreja é um organismo vivo, e não simplesmente uma instituição, mas na vida de membros de modo efetivo se manifesta a vida de Cristo.
Segundo a Lumen Gentium, “a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”[4], é ao mesmo tempo “sociedade organizada hierarquicamente, e o Corpo místico de Cristo, o agrupamento visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja ornada com os dons celestes”[5] e “não se devem considerar como duas entidades, mas como uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino.”[6] A Igreja não pode ser compreendida fora do mistério da Encarnação e da Redenção, pois Cristo, o Verbo Encarnado, Redentor do homem é o seu fundamento e fonte da sua missão. O Concílio Vaticano II nos ensina ainda que “assim como a natureza assumida pelo Verbo divino lhe serve de órgão vivo de salvação, a Ele indissoluvelmente unido, de modo semelhante a estrutura social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que a vivifica, para fazer produzir o seu corpo místico”[7].
A imagem da Igreja como corpo de Cristo tem sua origem nas cartas paulinas e há como fundamento a imagem da união esponsal, onde por meio do matrimônio, homem e mulher formam um só corpo, ou seja, “a Igreja é o corpo de Cristo porque é esposa de Cristo.”[8] Definir a Igreja a partir do seu fundamento que é Cristo, e ainda a partir do modo como era compreendida nos primeiros séculos do cristianismo, nos permite constatar que ela é uma realidade essencialmente espiritual e tudo aquilo que na Igreja é instituição deve ser sinal e instrumento que revelam Cristo ao homem e conduz os homens a Cristo.
Num tempo marcado pelo materialismo, por tantos progressos tecnológicos e científicos, inseridos em um advento ainda maior da institucionalização de tantos setores da sociedade, nos deparamos com um homem cada vez mais distanciado daquilo que é essencial. Nesta sociedade definida por alguns estudiosos com “sociedade líquida”, talvez todos esses fatores nos ajudem a entender a dificuldade do homem contemporâneo de compreender e acolher a Igreja para além da instituição. Por isso, para afirmamos com clareza e segurança que a Igreja é uma uma continuação do mistério da Encarnação, e que Cristo se faz presente na vida de seus membros, faz-se necessário voltar o nosso olhar para a situação do homem no mundo atual, e trilharmos juntos um caminho de retorno para Cristo, contemplando mais uma vez o mistério da sua Encarnação e Redenção “no qual o problema do homem se acha inscrito com uma especial força de verdade e de amor.”[9] Aproximando-se de Cristo o homem compreende-se a si mesmo profundamente, “não apenas segundo imediatos, parciais, não raro superficiais e até mesmo só aparentes critérios e medidas do próprio ser, com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e com a sua morte.”[10]
Cristo é a via principal da Igreja e uma vez que Ele assumiu a condição humana, cada homem, Nele é via da Igreja. Há uma profunda relação entre Cristo, o homem e a Igreja e, diante do mistério da Encarnação e da Redenção, eles não podem ser compreendidos separadamente. “De fato, precisamente porque Cristo no seu mistério de Redenção se uniu à Igreja, ela deve estar fortemente unida com cada um dos homens.”[11]
Se Cristo, o homem e a Igreja são realidades inseparáveis, como participamos realmente do corpo de Cristo que é a Igreja? “A realização do homem no Corpo da Igreja ocorre principalmente através dos sacramentos do batismo e da Eucaristia.”[12] Pelo batismo, somos inseridos na vida de Cristo e nos tornamos Nele, filhos de Deus. O batismo, como nos afirma o Papa Francisco, “é a ponte que Deus construiu entre Ele e nós, o caminho através do qual Ele se torna acessível, é porta de entrada à vida em comunhão com a Igreja de Cristo.”[13] A Eucaristia, por sua vez nos une a Cristo, uma “fusão das existências”[14], a do homem e a de Cristo. “A Eucaristia permite que a carne incorruptível e dadora de vida do Verbo Encarnado se torne também a carne do homem”[15], por meio da Eucaristia nos tornamos a corpo de Cristo, ou seja, a Igreja, “eu realizo em mim a Igreja, sou um ser eclesial[16].
Como já afirmado anteriormente, o homem só compreende-se a si mesmo em profundidade em Cristo, portanto no encontro pessoal com Jesus, na experiência do homem com o Seu amor, o homem também descobre-se um ser eclesial, torna-se Igreja. A experiência com Cristo e a adesão a Ele nos faz entrar e pertencer a Igreja de modo existencial. “Somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada e da autorreferencialidade”[17] e nós percebemos pertencentes ao corpo de Cristo.
De fato a Igreja é a continuação do mistério da encarnação de Cristo por meio da vida de seus membros, mas não podemos esquecer que Jesus encarnou-se e veio trazer a salvação ao homem de modo integral, ou seja, a salvação “abrange o homem todo e todos os homens”[18]. A salvação em Cristo não significa “que ela se destina apenas àqueles que, de maneira explícita, creem em Cristo e entraram na Igreja, mas “é destinada a todos os homens e deve ser posta concretamente à disposição de todos.”[19] Por isso “a tarefa fundamental da Igreja de todos os tempos e, de modo particular, do nosso, é a de dirigir o olhar do homem e de endereçar a consciência e experiência de toda a humanidade para o mistério de Cristo, de ajudar todos os homens a ter familiaridade com a profundidade da Redenção que se verifica em Cristo Jesus.”[20] O concílio Vaticano II nos ensina que a Igreja como “povo messiânico estabelecido por Cristo como uma comunhão de vida, amor e verdade, serve também, nas mãos d’Ele, de instrumento da redenção universal.”[21]
Jonas de Souza Oliveira
Missionário da Comunidade Católica Shalom /
Missão Lugano
[1] Jo 1, 14.
[2] João Paulo II, Carta Enc. Redemptor hominis, 1. 1979.
[3] Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 7. 1965.
[4] Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 1. 1965.
[5] Ibidem, 8
[6] Ibidem
[7] Ibidem, 7
[8] https://pt.zenit.org/articles/uma-releitura-cristologica-da-lumen-gentium/
[9] Ibidem
[10] João Paulo II, Carta Enc. Redemptor hominis, 10. 1979.
[11] Ibidem
[12] https://pt.zenit.org/articles/uma-releitura-cristologica-da-lumen-gentium/
[13] Papa Francisco, Catequese sobre o Batismo (Roma, 11 de abril de 2018)
[14] J. Ratzinger, Origine e natura della Chiesa, cit.
[15] https://pt.zenit.org/articles/uma-releitura-cristologica-da-lumen-gentium/
[16] https://pt.zenit.org/articles/uma-releitura-cristologica-da-lumen-gentium/
[17] Francisco, Exortação Apostólica Evangelii gaudium, n. 8.
[18] João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990), 10.
[19] Ibidem
[20] João Paulo II, Carta Enc. Redemptor hominis, 18. 1979.
[21] Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 9.
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