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Um pouco de história recente
Que é a Igreja? Donde provém? Será expressão da vontade deJesus Cristo?
Para elucidar tais perguntas, há tantas teorias entre osexegetas e teólogos que parece impossível dar uma resposta segura a taisindagações. Deveremos, então, desistir da pesquisa? … e passar simplesmentepara a vivência do Evangelho segundo os critérios individuais de cada cristão?– Tal atitude seria grave infidelidade a Cristo. Ao estudioso cristão não élícito fechar-se no ceticismo.
Como então proceder para chegar a uma elucidação dosquesitos propostos?
O melhor ponto de partida há de ser a procura de uma visãode conjunto das teorias existentes. Uma vista aérea panorâmica das mesmaspermitirá descobrir caminhos que levem a uma solução do aparente impasse.
Ora podem-se distinguir três camadas de teorias sobre Jesuse a Igreja propostas pelos teólogos dos últimos anos:
1) A exegese dita “liberal” concebia Jesus como um pregadorliberal, que reduzia a Religião à ética cristã. Opunha-se às instituiçõesexistentes em sua época; por conseguinte, não terá fundado alguma instituiçãoou Igreja, mas haverá despertado nos homens o desejo de experiência de deusmeramente pessoal ou subjetiva.
2) Tais concepções perderam sua voga após a primeira guerramundial (1914-18). Os povos perceberam que o cientificismo e muitos esteios deuma falsa auto-afirmação do homem haviam fracassado; a guerra incitou os homensa reconhecer sua fragilidade. Isto os levou a procurar estimar de novo osvalores sagrados. Tomaram consciência de que Jesus era avesso ao culto de Deuse à Liturgia, como fora dito pelas gerações anteriores. Conseqüentemente oprotestantismo na Alemanha, na Inglaterra, na Escandinávia restaurou com novointeresse a prática da oração e os ritos sagrados. Entre os católicos a Eucaristiafoi mais reconhecida como centro da vida cristã; o movimento litúrgico tomouvulto e reavivou a piedade. Nesta fase tiveram certa influência os teólogosortodoxos russos exilados em Paris, que contribuíram notavelmente para aelaboração de uma Eclesiologia eucarística mais densa e profunda. Tornou-seforte a consciência de que o Messias deixou as linhas fundamentais daconstituição de um povo santo ou messiânico.
3) Sobreveio a segunda guerra mundial, que por sua vezdeslocou o foco de atenção dos estudiosos. Uma das mais notáveis conseqüênciasdo conflito foi a abertura de um fosso crescente entre povos ricos (liberais) epovos pobres; no Ocidente os povos do bem-estar restauraram a antiga filosofiaLiberal, que por sua vez ressuscitou a teologia liberal, segundo a qual Jesusfoi tão somente um moralista, desligado de instituições. Alguns teólogosapelaram para a distinção, existente no Antigo Testamento, entre sacerdotes eprofetas; aqueles teriam representado a Lei e as instituições de Israel, ao passoque estes significavam o carisma e a oposição às instituições; ora Jesus seterá alinhado do lado dos Profetas, contra os sacerdotes; por conseguinte, nãoterá fundado Igreja alguma. Mais, diziam tais estudiosos: Jesus julgava que omundo acabaria em breve ou com a geração do próprio Cristo, de modo que lhe eraalheia a idéia de criar uma instituição duradoura.¹
A sumária exposição das três camadas de teorias feita atéaqui manifesta que cada qual delas é o reflexo da sua época ou foi marcadapelas circunstâncias sociais, políticas e culturais da respectiva época. AEclesiologia foi formulada em consonância com esses fatores extrínsecos econtingentes, e não de acordo com a memória da Igreja, ou seja, com asconcepções constantes e tradicionais que formam o fio condutor da história e dadoutrina da Igreja. É, pois, necessário redescobrir a memória e a Tradição daIgreja.
A memória e a Tradição da Igreja
Para começar, notemos a freqüente ocorrência da expressãoReino de Deus nos escritos do Novo Testamento: aparece 122 vezes nestes, sendoque 99 vezes nos Evangelhos sinóticos e 90 vezes diretamente nos lábios deJesus. Era na base desta verificação que Loisy dizia: “Jesus pregou o Reino deDeus (= a consumação definitiva da história), mas o que veio é a Igreja”.
Eis, porém, que a oposição “Reino de Deus x Igreja” é falsa.Com efeito; os Profetas do Antigo Testamento anunciavam o Reino de Deus comorealidade última e definitiva; São João Batista também reunia os homens numa sócomunidade que aguardava o termo final da história. Ora Jesus veio justamente,como representante de Deus Pai, para reunir os homens no reino prometido. Este,porém, não é um lugar, um espaço; é Jesus mesmo; é Deus posto diante do homem.Observemos que, quando Jesus se aproximava do povo para anunciar-lhe aBoa-Nova, dizia-lhe: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo” (Mc1,15). Jesus é o Reino que se aproxima; onde Ele está, aí está o Reino; o Reinode Deus é a atuação de Deus na história dos homens. Por isto a frase de Loisydeveria ser assim corrigida: “Anunciou-se o Reino e chegou Jesus”.
Esse Jesus nunca está só. Ele ve3io reunir os homens num sópovo. Dentre as diversas imagens que designam esse povo – rebanho, cidade deDeus, templo de Deus, campo de Deus… -, a preferida é a imagem da família deDeus; nesta os homens são filhos de Deus e Jesus é o Primogênito.
Nessa família três pontos chamam-nos a atenção:
1) Os discípulos pediram ao Mestre que lhes ensinasse umaoração: a oração da comunidade. Na verdade, os grupos religiosos outroratinham, como marco constitutivo, uma oração própria. Em resposta, Jesus ensinouo Pai-Nosso. Isto quer dizer que a comunidade congregada por Jesus está ligadaà oração; a oração a distingue, caracteriza e consolida.
2) Mais: a comunidade de Jesus não é um núcleo amorfo. Jesuschamou doze seguidores; este número é tão importante que servia para designar,sem aposto, a comunidade (só após a ressurreição do Senhor foram eles chamadosApóstolos); cf. Lc 9,1; Mc 6,7; 3,14. Por isto, após a defecção de Judas, onúmero 12 foi restaurado pela escolha de Matias. – Ora o número 12 lembra osfilhos de Jacó, dos quais descendiam as doze tribos de Israel. Jesus,acompanhado pelos doze, faz as vezes de Patriarca de um novo Israel; este éconsagrado não pelos traços do sangue, mas pelos da pertença a Jesus.
Além dos doze seguidores imediatos, Jesus tinha setentadiscípulos. Ora também este número tem suas conotações valiosas. Com efeito; osantigos concebiam o mundo povoado por setenta povos (cf. Gn 10, 1-32); tambémforam, segundo se dizia, setenta os tradutores da Bíblia de Israel do hebraicoem grego – o que significava que era um livro destinado a todas as nações.
Assim acompanhado por doze apóstolos e setenta discípulos,Jesus quer chamar todos os homens para que integrem o novo povo de Deus. Ele,aliás, termina a sua missão terrestre enviando os Apóstolos a todos os povospara que os batizem e os façam discípulos de Jesus; cf. Mt 28, 18-20.
3) A oração comum dos seguidores de Jesus foi acompanhada denovo elemento cúltico. Sim; Jesus quis transformar a Páscoa de Israel em selode uma nova Aliança de Deus com os homens, … com todos os homens.Cumpriram-se assim as profecias de Isaías concernentes ao Servo de Javé (cf.Is. 52,13-53,12), vítima de expiação pelos pecados, que reuniria os homenstodos e, reconciliados, os levaria a Deus Pai. O pão e o vinho da nova Páscoaforam entregues aos Apóstolos como sendo o alimento que une os discípulos com oSenhor Deus e uns com os outros. A Aliança do Sinai foi assim ultrapassada emfavor de outra, cujo mediador e ponto central é o próprio Jesus.
A Eucaristia – nome dado à ceia instituída por Jesus – nãoé, pois, um culto semelhante aos que já existiam, É celebração de Aliança, …da nova e definitiva Aliança; ela faz dos homens o povo da Aliança mediante aparticipação no corpo e no sangue de Cristo. Desta maneira a Eucaristia é aorigem e o centro da vida da Igreja; ela faz a Igreja, e a Igreja, por sua vez,faz a Eucaristia.
Tendo assim percorrido as grandes linhas do ministério deJesus, examinemos a face de
A Igreja dos Apóstolos
Os livros do Antigo Testamento designavam Israel como o povode Deus. No Novo Testamento o povo constituído pela Eucaristia é chamadoEkklesía = Igreja. Por que isto?
– A palavra qahal, no Antigo Testamento, significaassembléia, … assembléia de caráter cúltico, político, jurídico. Compreendianão só homens (como as assembléias políticas e jurídicas da Grécia), mas tambémmulheres e crianças… Ora, após o exílio de Israel na Babilônia (587-538 a.C.), os judeus ficaram esparsos por diversas regiões do Oriente Médio, do Egitoe do Ocidente; essa dispersão quebrava brutalmente a unidade do povo (aliás, jáviolada pelo cisma das dez tribos em 930 após a morte de Salomão; cf. 1Rs 12,1-33). Por isto os judeus pediam a Javé que congregasse o povo disperso,restaurando o qahal ou o povo reunido; nutriam ardentes anseios neste sentido,especialmente nos tempos próximos à vinda de Cristo.
Ora Jesus veio realizar estes anseios. Por isto os cristãosdas primeiras gerações, assumindo o nome grego Ekklesía (= convocação,chamamento dos que estavam longe), queriam declarar que neles se realizava anova qahal almejada pelos judeus. A Lei (Torá) da qahal antiga se transformavaem Lei do amor (cf. Jo 13, 34): “Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameisuns aos outros, como eu vos amei”. Jesus, entregando a vida por seus discípulosnum gesto de amor, podia promulgar a nova aliança sobre esse amor, fazendo delea grande diretriz de vida dos seus seguidores.
A noção de Igreja assim entendida é explicitada no livro dosAtos dos Apóstolos, escrito por São Lucas. Tem-se aí uma Eclesiologianarrativa, isto é, descrita através da narração de fatos históricos. Todo esselivro sagrado se prestaria a fecundo estudo da concepção eclesiológica dosApóstolos e das primeiras comunidades cristãs. Neste contexto seja suficienterealçar três quadros apresentados no início de tal obra:
1) At 1, 12-26: temos aqui a primeira reunião dos seguidoresde Jesus. Estavam no Cenáculo Pedro e os dez (Judas apostatara e Matias aindahavia de ser eleito), Maria SS. e alguns discípulos (homens e mulheres) fiéis.Todos os pormenores deste quadro são importantes na sua própria singeleza: asala de reunião era o Cenáculo ou a sala da instituição da Eucaristia na últimaCeia; os onze Apóstolos são apresentados um por um. Perseveravam unânimes naoração ou numa atitude de abertura para a graça e a vontade de Deus; o seunúmero total era de cento e vinte – o que lembra o número 12 sagrado eprofético, pois indica a totalidade; era o número das tribos de Israel e dosApóstolos de Jesus.
São Pedro se fez porta-voz do desígnio de Deus: era precisoescolher o substituto do 12.º Apóstolo ou do traidor. A escolha se fez medianteum sinal de Deus, que indicava Matias à comunidade orante; a decisão veio doAlto, pois o quadro não era o de um Parlamento, que decide por critérioshumanos, mas era o de uma autêntica qahal-ekklesía, ou de um povo convocadopela graça de Deus, unido, em santa Aliança, ao Senhor e regido por critériostranscendentais; era ele o espelho do novo povo de Deus, no qual Pedro exerceuma função primacial, fortalecendo e confirmando seus irmãos, levando-os aidentificar-se com o plano de Deus.
2) At 2, 42-47: Quatro características assinalam a Igrejanascente: a fidelidade ao ensinamento dos Apóstolos, a comunhão fraterna, afração do pão e a oração. Isto quer dizer:
– a Palavra de Deus e o pão sacramental fundamentam a Igrejade Deus;
– esta é algo de institucional; é preciso obedecer aosensinamentos dos Apóstolos; o Cristianismo não é algo que se possa viverisoladamente, na base de intuições particulares. O Cristão deve sentir-semembro de uma comunidade, selada pela fração e a partilha do pão (eucarístico);
– a fidelidade dos cristãos a Cristo implica o respeito a umtestemunho vivo (a Palavra viva dos Apóstolos, a vida e o agir da comunidade)mais do que a um livro. Os livros sagrados (Evangelhos, epístolas) sãoposteriores a essa fase da Igreja nascente; esta encontrava na Palavraproferida e vivida o seu liame e a sua luz ou o roteiro de sua fidelidade aCristo.
3) Entre At 1, 12-26 e At 2, 42-47 acha-se a cena doprimeiro Pentecostes cristão (At 2, 1-14). Esta significa que a Igreja (ekklesía= convocação) não é obra criada ou fundada pelos homens, mas pelo EspíritoSanto; é este quem comunica aos Apóstolos o dom das línguas, mediante as quaispuderam chamar à nova qahal judeus e não judeus ou pagãos. As línguasmultiplicadas em Pentecostes significam as muitas culturas humanas convocadas ase entrelaçarem sob a orientação de uma só fé e um só amor. É interessante queSão Lucas registra como presentes ao primeiro Pentecostes judeus provenientesde doze partes do mundo (partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, daJudéia e da Capadócia, do Ponto, da Ásia, da Panfília, do Egito e das regiõesda Líbia próximas de Cirene), além dos romanos, representantes do mundo pagão.Com outras palavras: são convocados judeus e gentios, ou seja, todos os povos.Assim a Igreja, já ao nascer, é católica ou universal; depois da comunidade deJerusalém foram fundadas outras comunidades na Terra Santa e também fora daTerra Santa; mas não foram essas comunidades esparsas que deram à Igreja o seucunho de católica; ao contrário, foi a índole católica da Igreja oriunda emJerusalém que se transferiu para as outras comunidades eclesiais, tornando-ascatólicas.
Pentecostes, levando a multiplicidade dos homens e dasculturas à unidade da Ekklesía, resgata o episódio de Babel, no qual a unidadese dissolveu em multiplicidade por causa da arrogância dos homens frente aDeus. A volta è unidade se faz sem violência nem constrangimento, mas porefeito do amor derramado pelo Espírito Santo nos corações (cf. Rm 5,5).
No decorrer do livro dos Atos, São Lucas desenvolve oacontecido em Pentecostes: o caminho da Boa-Nova e da Igreja oriundas emJerusalém, berço judaico, e destinadas aos pagãos, cuja capital era Roma. Sim;o livro começa em Jerusalém no Cenáculo, apresentando a nova qahal e seuPentecostes, e termina em Roma; esta cidade, na mente de Lucas, tem valorteológico, é o ponto que sela e confirma a catolicidade da Igreja.
O livro de São Lucas, aliás, é todo ele escrito emperspectiva profundamente teológica: demonstra o mistério da Igreja, que é acontinuação da assembléia do povo do Antigo Testamento, disperso nos tempos deCristo e convocado para constituir novo povo, baseado não sobre a pertença auma raça, mas sim sobre a pertença a Jesus Cristo, que é o Reino de Deusiniciado; tal pertença implica nova Aliança firmada no sacrifício de Cristo,que pão e vinho sacramentais perpetuam sobre os altares.
Assim São Lucas, de certo modo, antecipou as questões que secolocariam posteriormente sobre a origem e a natureza da Igreja, e forneceu achave para resolver os problemas eclesiológicos de nossos tempos.
Eis a síntese da conferência do Cardeal J. Ratzinger. Aconclusão (parágrafo final) deste texto responde às indagações iniciais: quisJesus fundar a Igreja? Que é a Igreja? – Como se vê, a resposta não é deduzidade contingências da história, mas da “memória” da Igreja, ou seja, dos arquivosmais autênticos da mesma; é a história da salvação, considerada desde o AntigoTestamento, que apresenta a Igreja como o fruto de longa preparação: a Aliançado Sinai, a Ceia de Páscoa, a assembléia (qahal) de culto a Deus e de comunhãofraterna… são concepções do antigo Israel que chegam à sua plenitude naEkklesía ou na assembléia convocada, que reúne em seu bojo judeus e gentios, ouseja, todos os homens; a catolicidade da Igreja não extingue as peculiaridadesétnicas e culturais, mas fá-las convergir para constituírem um novo povoconsolidado pelo amor de Deus derramado nos corações mediante o Espírito Santo(Rm 5,5). São Lucas, nos Atos dos Apóstolos é o doutor que faz reviver osantigos episódios e mostra a Igreja fundada pelo próprio Cristo como emissáriodo Pai e Patriarca da linhagem dos filhos de Deus (em Cristo os homens sãofeitos filhos no FILHO).
Eis as palavras com que o próprio Cardeal Ratzingerexprime seu pensamento no artigo “A Memória Histórica da Igreja” publicado noJORNAL DO BRASIL, caderno “Idéias/Ensaios” de 5/8/90, pp. 7s. Tais dizeresajudam a compreender afirmações de teólogos da libertação no Brasil: “Esse novotipo de liberdade pode transformar-se, com grande facilidade, em umainterpretação de orientação marxista da Bíblia. O confronto entre sacerdotes eprofetas converte-se na chave da luta de classes como lei da História. Nessecaso, Jesus foi morto na luta contra as forças opressoras e se converte emsímbolo do proletariado que sofre e luta, símbolo do povo, como se preferedizer. O caráter escatológico da mensagem remete para o finde uma sociedadeclassista; na dialética profeta-sacerdote expressa-se a dialética da História,que culmina com a vitória dos oprimidos e o surgimento de uma sociedade semclasses. Nesta concepção pode-se encaixar o fato de que Jesus quase nunca faloude Igreja, referindo-se, constantemente, ao Reino de Deus; o Reino será, então,a sociedade sem classes, e será a meta da luta do povo oprimido; ele ocorreonde o proletariado organizado, isto é, seu partido, com o socialismo alcançouvitória. A eclesiologia volta a ter significado, neste modelo dialético, dadopelo desmembramento da Bíblia em sacerdotes e profetas, correspondente àdiferença entre instituição e povo. Segundo esse modelo dialético, à Igrejainstitucional, oficial, se opõe a Igreja do povo, aquela que, renascendoconstantemente com ele, perpetua as intenções de Jesus, sua luta contra asinstituições e seu poder opressor, a favor de uma nova sociedade livre, oreino.”