O Papa Francisco participou na manhã desta sexta-feira, na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano, da terceira pregação de Advento, a cargo do Pregador da Casa Pontifícia Frei Raniero Cantalamessa, intitulada “A sóbria embriaguez do espírito”.
1. Dois tipos de embriaguez
Na segunda-feira depois de Pentecostes de 1975, no encerramento do Primeiro Congresso Mundial da Renovação Carismática Católica, o Beato Paulo VI dirigiu, aos dez mil participantes reunidos na Basílica de São Pedro, umas palavras, na quais definiu a Renovação Carismática como “uma oportunidade para a Igreja”. Após ter lido o seu discurso oficial, o Papa acrescentou, improvisando, estas palavras:
“No hino que lemos esta manhã no breviário e que remonta a Santo Ambrosio, no século IV, há esta frase difícil de traduzir, embora muito simples: Laeti, que significa com alegria; bibamus, que significa bebamos; sobriam, que significa bem definida e moderada; profusionem Spiritus, ou seja a abundância do Espírito. ‘Laeti bibamus sobriam profusionem Spiritus’. Poderia ser o lema impresso em seu movimento: um programa e um reconhecimento do próprio movimento”.
O mais importante, que deve ser notado de imediato, é que essas palavras do hino certamente não foram escritas originalmente para a Renovação Carismática. Elas sempre fizeram parte, sempre, da Liturgia das Horas da Igreja universal; são, portanto, uma exortação dirigida a todos os cristãos e, como tal, eu gostaria de apresentá-las de novo, nestas meditações dedicadas à presença do Espírito Santo na vida da Igreja.
De fato, no texto original de Santo Ambrósio, no lugar de “profusionem Spiritus”, abundância do Espírito, há “ebrietatem Spiritus, ou seja, a embriaguez do Espírito[1]. A tradição, mais tarde, tinha considerado esta última expressão demasiado ousada e a havia substituído por uma mais branda e aceitável. No entanto, desta forma, perdia-se o sentido de uma metáfora tão antiga quanto o próprio cristianismo. Precisamente por isso, na tradução italiana do Breviário, retomou-se o texto original do verso Ambrosiano. Uma estrofe do hino das Laudes da Quarta Semana do saltério, em língua italiana, de fato, diz:
Seja Cristo o nosso alimento,
seja Cristo a água viva:
nele provamos sóbrios
a embriaguez do Espírito.
O que levou os padres a retomar o tema da “sóbria embriaguez”, já desenvolvido por Filon de Alexandria[2], foi o texto no qual o Apóstolo exorta os cristãos de Éfeso, dizendo:
“E não vos embriagueis com vinho, que é porta para a devassidão, mas buscai a plenitude do Espírito. Falai uns aos outros com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor em vosso coração” (Ef 5,18-19).
A partir de Orígenes, são incontáveis os textos dos Padres que ilustram este tema, ora utilizando a analogia, ora o contraste entre embriaguez material e embriaguez espiritual. A analogia consiste no fato de que os dois tipos de embriaguez infundem alegria, fazem esquecer as preocupações e fazem sair de si mesmos. O contraste consiste no fato de que enquanto a embriaguez material (de álcool, de drogas, de sexo, de sucesso) causa instabilidade e insegurança, aquela espiritual causa estabilidade no bem; a primeira faz sair de si mesmos para viver além do próprio nível racional, a segunda faz sair de si mesmos, mas para viver além da própria razão. Para ambas usa-se a palavra “êxtase” (o nome dado recentemente a uma droga mortal!), Mas um é um êxtase para baixo, o outro um êxtase para o alto.
Aqueles que pensaram no dia de Pentecostes que os Apóstolos estavam embriagados tinham razão, escreve São Cirilo de Jerusalém; o único erro deles foi atribuir a causa da embriaguez ao vinho ordinário, enquanto que nesse caso se tratava do “vinho novo”, espremido da “videira verdadeira” que é Cristo; os apóstolos estavam, sim, embriagados, mas daquela embriaguez que mata o pecado e dá vida ao coração[3].
Aproveitando a deixa do episódio da água que jorrou da rocha no deserto (Ex 17, 1-7), e do comentário sobre isso que faz São Paulo na sua Carta aos Coríntios (“Todos beberam da mesma bebida espiritual… Todos nós bebemos de um só Espírito”) (1 Cor 10,4; 12,13), o próprio Santo Ambrósio escrevia:
“O Senhor Jesus fez derramar água da rocha e todos beberam dela. Aqueles que dessa água beberam na figura, foram saciados; aqueles que beberam dela na verdade, ficaram até mesmo embriagados. Boa é a embriaguez que infunde alegria. Boa é a embriaguez que fortalece os passos da mente sóbria… Beba Cristo que é a videira; beba Cristo que é a rocha da qual jorrou a água; beba Cristo para beber o seu discurso… A Escritura divina se bebe, a Escritura divina se devora quando o suco da palavra eterna desce para as veias da mente e para a energia da alma[4]”.
2. Da embriaguez à sobriedade
Como fazer para retomar aquele ideal da sóbria embriaguez e encarná-lo na presente situação histórica e eclesial? Onde está escrito, de fato, que um modo tão “forte” de experimentar o Espírito era uma prerrogativa exclusiva dos Padres e dos primeiros tempos da Igreja, mas que não o é mais para nós? O dom de Cristo não se limita a uma época específica, mas oferece-se para todas as épocas. Há o suficiente para todos, no tesouro da sua redenção. É precisamente papel do Espírito tornar universal a redenção de Cristo, disponível para cada pessoa, em cada ponto do tempo e do espaço.
No passado, a ordem que se inculcava era, no geral, a que vai da sobriedade à embriaguez. Em outras palavras, o caminho para alcançar a embriaguez espiritual, ou o fervor, pensava-se, era a sobriedade, ou seja, a abstinência das coisas, da carne, o jejum do mundo e de si mesmos, em uma palavra, a mortificação. Neste sentido o conceito de sobriedade foi aprofundado especialmente pela espiritualidade monástica ortodoxa, ligada à assim chamada “oração de Jesus”. Nessa, a sobriedade indica “um método espiritual” feito de “vigilante atenção” para libertar-se de pensamentos passionais e das palavras más, retirando da mente toda satisfação carnal e deixando nela, como única atividade, a contrição pelo pecado e a oração[5].
Com nomes diferentes (despojamento, purificação, mortificação), é a mesma doutrina ascética que se encontra nos santos e nos mestres latinos. São João da Cruz fala de um “despojar-se e despir-se, para o Senhor, de tudo aquilo que não é o Senhor[6]”. Estamos na fase da vida espiritual chamada de purgativa e iluminativa. Nessa, a alma se liberta laboriosamente dos seus hábitos naturais, para preparar-se à união com Deus e às suas comunicações de graça. Estas coisas caracterizam o terceiro estágio, a “via unitiva” que os autores gregos chamam “divinização”.
Nós somos os herdeiros de uma espiritualidade que concebia o caminho de perfeição de acordo com esta sequência: primeiro devemos habitar por muito tempo na etapa purgativa, antes de entrar na unitiva; é necessário exercitar por muito tempo a sobriedade, antes de poder experimentar a embriaguez. Todo fervor que se manifestasse antes daquele momento deveria ser considerado suspeito. A embriaguez espiritual, com tudo o que ela significa, se destina, no final, aos “perfeitos”. Os outros, “os “proficientes”, devem buscar especialmente a mortificação, sem pretender, enquanto lutam ainda com os seus próprios defeitos, de fazer já uma experiência forte e direta de Deus e do seu Espírito.
Existe uma grande sabedoria e experiência na base de tudo, e ai daquele que considerar essas coisas como ultrapassadas. É necessário, porém, dizer que um esquema tão rígido assim denota também uma lenta e progressiva mudança de acento, da graça ao esforço do homem, da fé às obras, até beirar o pelagianismo. De acordo com o Novo Testamento há uma circularidade e uma simultaneidade entre as duas coisas: a sobriedade é necessária para atingir a embriaguez do Espírito, e a embriaguez do Espírito é necessária para chegar a praticar a sobriedade.
Um ascetismo realizado sem um forte impulso do Espírito seria esforço morto, e não produziria mais do que “o orgulho da carne”. Para São Paulo, é “com a ajuda do Espírito” que devemos “morrer às obras da carne” (cfr. Rom 8,13).
O Espírito nos é dado, portanto, para sermos capazes de mortificar-nos, antes mesmo que como prêmio por ter-nos mortificado.
Uma vida cristã cheia de esforços ascéticos e de mortificações, mas sem o toque vivificante do Espírito, assemelhar-se-ia – dizia um antigo Padre – a uma Missa na qual se lessem muitas leituras, se realizassem todos os ritos e se levassem muitas ofertas, mas na qual não ocorresse a consagragação das espécies por parte do sacerdote. Tudo permaneceria o que era antes, pão e vinho.
“Assim – concluia o Padre – é também para o cristão. Se também ele realizou perfeitamente o jejum e a vigília, a salmodia e toda a ascese e cada virtude, mas não realizou, pela graça de Deus, no altar do seu coração, a mística obra do Espírito, todo esse processo ascético é inacabado e quase vão, porque ele não tem a exultação do Espírito misticamente obrando no coração[7]”.
Este segundo caminho – aquele que vai da embriaguez à sobriedade – foi o caminho que Jesus fez com que os seus apóstolos percorressem. Apesar de terem tido como mestre e diretor espiritual o próprio Jesus, antes de Pentecotes eles não foram capazes de colocar em prática quase nenhum dos preceitos evangélicos. Mas quando, em Pentecostes, foram batizados com o Espírito Santo, então os vemos transformados, capacitados para suportar por Cristo dificuldades de todo tipo e, por fim, o próprio martírio. O Espírito Santo foi a causa do fervor deles, muito mais que o efeito dele.
Há uma outra razão que nos leva a redescobrir este caminho que vai da embriaguez à sobriedade. A vida cristã não é apenas uma questão de crescimento pessoal em santidade; é também ministério, serviço, anúncio, e para cumprir essas tarefas precisamos do “poder do alto”, dos carismas; em uma palavra, de uma experiência forte, pentecostal, do Espírito Santo.
Precisamos da sóbria embriaguez do Espírito, ainda mais do que tinham os Padres. O mundo tornou-se tão indiferente ao Evangelho, tão seguro de si que somente o “vinho forte” do Espírito pode ter dar razão à sua incredulidade e puxá-lo para fora da sua sobriedade toda humana e racionalista que se acha “objetividade científica”. Só as armas espirituais, diz o Apóstolo, “têm o poder de Deus de destruir fortalezas, destruir os argumentos e toda arrogância que se levanta contra o conhecimento de Deus, e de submeter toda inteligência à obediência de Cristo” (2 Cor 10, 4-5).
3. O batismo no Espírito
Quais são os “lugares” onde o Espírito atua hoje desta maneira Pentecostal? Vamos ouvir mais uma vez a voz de Santo Ambrósio, que foi o cantor por excelência, entre os Padres latinos, da sóbria embriaguez do Espírito. Depois de ter recordado os dois “lugares” clássicos onde beber o Espírito – a Eucaristia e as Escrituras -, ele menciona uma terceira possibilidade. Diz:
“Há também uma outra embriaguez que ocorre por meio da penetrante chuva do Espírito Santo. Foi assim que, nos Atos dos Apóstolos, aqueles que falavam em línguas diferentes apareceram aos ouvintes como se estivessem cheios de vinho[8]”.
Depois de recordar os meios “ordinários”, Santo Ambrósio, com estas palavras, aponta para um meio diferente, “extraordinário”, no sentido de que não é fixado antecipadamente, não é algo estabelecido. Consiste no reviver a experiência que os apóstolos fizeram no dia de Pentecostes. Ambrósio não pretendia certamente apontar para esta terceira possibilidade, para dizer aos ouvintes que esta estava restrita para eles, estando reservada somente para os apóstolos e para a primeira geração de cristãos. Pelo contrário, ele pretende levar os seus fieis a fazer a experiência daquela “chuva penetrante do Espírito” que ocorreu em Pentecostes.
Portanto, está aberto também para nós a possibilidade de alcançar o Espírito por este novo caminho, pessoal, dependente unicamente da soberana e livre iniciativa de Deus. Não devemos cair no erro dos fariseus e dos escribas que diziam a Jesus: “Existem seis dias para trabalhar; por que, então, fazer estes milagres no dia de sábado?” (Lc 13, 14). Podemos ser tentados a dizer a Deus, ou pensar em nossos corações: “Existem sete sacramentos para santificar e dar o Espírito, por que agir fora deles, com este modo novo e incomum?”
O teólogo Yves Congar, em suas palavras no Congresso Internacional de Pneumatologia, realizado no Vaticano em 1981, por ocasião do XVI centenário do Concílio Ecumênico de Constantinopla, falando dos sinais do renascimento do Espírito Santo em nosso tempo, disse:
“Como não situar aqui a corrente carismática, mais conhecida como Renovação no Espírito? Ela se espalhou como fogo no mato. É muito mais do que uma moda passageira … Por um aspecto, especialmente, ela se assemelha a um movimento de despertar: pelo seu caráter público e verificável da sua ação que muda a vida das pessoas… É como uma juventude, um frescor e novas possibilidades dentro da antiga Igreja, nossa mãe. Exceto, por muito raras excepções, a renovação se coloca na Igreja e, longe de pôr em causa as instituições tradicionais, as reanima[9]”.
É verdade que esta, como outras análogas realidades novas da Igreja de hoje, apresenta por vezes lados problemáticos, excessos, divisões, pecados. Isso foi, também para mim, no começo pedra de escândalo. Mas isso acontece com todos os dons de Deus, assim que caem nas mãos dos homens. Será que a autoridade sempre foi exercida na Igreja conforme o Evangelho, sem manchas de autoritarismo e busca humana pelo poder? No entanto, ninguém sonha com eliminar esse carisma na vida da Igreja. Não foram isentos de desordens e defeitos nem mesmo nas primeiras comunidades carismáticas cristãs, como aquela de Corinto. O Espírito não faz todos e de uma vez santos. Age em diferentes graus e de acordo com a correspondência que encontra.
O principal instrumento através do qual a Renovação no Espírito “muda a vida das pessoas” é o batismo no Espírito. E falo disso nessa sede sem nenhuma intenção de proselitismo, mas só porque penso que seja correto dar a conhecer no coração da Igreja uma realidade que envolve milhões de católicos.
A expressão “Batismo no Espírito” vem do próprio Jesus. Referindo-se ao iminente Pentecostes, antes de subir ao céu, ele disse aos seus apóstolos: “João batizou com água, mas vós, em poucos dias, sereis batizados no Espírito Santo” (Atos 1,5). Trata-se de um ritual que não tem nada de esotérico, mas é feito pelo contrário com gestos de grande simplicidade, calma e alegria, acompanhados por atitudes de humildade, de arrependimento, de disponibilidade a tornar-se criança, que é a condição para entrar no Reino.
É uma renovação e uma atualização não só do batismo e da crisma, mas de toda a vida cristã: para os casados, do sacramento do matrimônio, para os sacerdotes, da sua ordenação, para os consagrados, da sua profissão religiosa. O interessado se prepara, além de uma boa confissão, participando de encontros de catequeses nos quais é recolocado em um contato vivo e alegre com as principais verdades e realidades da fé: o amor de Deus, o pecado, a salvação, a vida nova, a transformação em Cristo, os carismas, os frutos do Espírito. O fruto mais frequente e mais importante é a descoberta do que significa ter “um relacionamento pessoal” com Jesus ressuscitado e vivo.
Uma década após o surgimento da Renovação Carismática na Igreja Católica, Karl Rahner escrevia:
“Não podemos negar que o homem pode fazer aqui em baixo experiências da graça, as quais lhe dão uma sensação de libertação, abrem-lhe horizontes totalmente novos, marcam-no profundamente, transformam-no, plasmando, também por longo tempo, a sua atitude cristã mais íntima. Nada proíbe de chamar tais experiências batismo do Espírito[10]”.
É justo esperar que todos passem por esta experiência? Essa é a única maneira possível de experimentar a graça de Pentecostes? Se por batismo no Espírito queremos dizer um determinado rito, em um determinado contexto, devemos dizer não; não é a única maneira de fazer uma experiência forte do Espírito. Houve e há inúmeros cristãos que fizeram uma experiência semelhante, sem nada saber do batismo no Espírito, recebendo uma efusão espontânea do Espírito, depois de um retiro, um encontro, uma leitura, um toque da graça.
Deve ser dito, porém, que o “batismo no Espírito” provou ser uma maneira simples e poderosa de renovar a vida de milhões de crentes em quase todas as igrejas cristãs.
Até mesmo um curso de exercícios espirituais pode muito bem acabar com uma invocação especial do Espírito Santo, se o guia fez essa experiência e os participantes a desejarem. Fiz essa experiência no ano passado. O bispo de uma diocese ao sul de Londres lançou, de sua própria iniciativa, um retiro carismático aberto ao clero de outras dioceses. Havia uma centena de sacerdotes e diáconos permanentes e, no final todo mundo pediu e recebeu a efusão do Espírito, com o apoio de um grupo de leigos da Renovação vindos para a ocasião. Se os frutos do Espírito são “amor, alegria e paz” (Gal 5, 19), no final era possível tocar com a mão entre os presentes.
Não se trata de aderir a um ou outro movimento na Igreja. Não se trata nem mesmo, propriamente falando, de um movimento, mas de uma “corrente de graça” aberta a todos, destinada a se perder na Igreja como uma descarga elétrica que se dissipa na massa, para depois desaparecer, uma vez cumprida esta tarefa. São João XXIII falou de um “novo Pentecostes”, o Beato Paulo VI foi ainda mais longe falando de um “perene Pentecostes”. Em uma audiência geral de 1972, disse literalmente estas palavras:
“A Igreja precisa do seu perene Pentecostes; precisa de fogo no coração, de palavra nos lábios, de profecia no olhar… Tem necessidade, a Igreja, de reconquistar a ânsia, o gosto, a certeza da sua verdade… E depois tem a necessidade, a Igreja, de sentir o refluir da onda de amor por todas as suas humanas faculdades, daquele amor que se chama caridade, e que precisamente está difundido nos nossos corações precisamente pelo Espírito Santo que nos foi dado[11]”.
Concluímos com as palavras do hino litúrgico recordado no começo:
Seja Cristo o nosso alimento,
seja Cristo a água viva:
nele provamos sóbrios
a embriaguez do Espírito.