No que diz respeito à Literatura, uma das tarefas mais constrangedoras seja talvez a de tentar resumir ou apresentar uma obra, principalmente quando se tem tal obra como clássica. Acerca de um livro como a Ilíada, essa tarefa torna-se ainda mais complicada, pois não apenas se trata de uma obra apreciada pelos principais escritores da história da Literatura, mas principalmente por se tratar mesmo de um dos fundamentos da arte literária Ocidental.
A narrativa
Fruto da tradição oral e popular da Grécia Antiga e, bem mais tarde, passada à escrita, trabalho esse atribuído a Homero por volta do século VIII a.C., a Ilíada reúne, através da sua estrutura poética, as características fundamentais do povo grego, sobretudo, o modo como essa cultura concebia o Homem.
A Ilíada é um poema épico, ou seja, uma narrativa em forma de verso que tematiza, de um modo geral, os grandes feitos de um povo. Dividida em vinte e quatro cantos (ou capítulos), o poema de Homero relata as lendas ou os mitos sobre a Guerra de Troia, possivelmente ocorrida entre 1300 e 1200 antes de Cristo. Com seus personagens inesquecíveis, como o herói Aquiles, a bela Helena, o astuto Ulisses, o guerreiro Heitor e seu irmão Páris, o velho rei troiano Príamo e os reis gregos Menelau e Agamêmnon, o conflito entre gregos (também chamados aqueus) e troianos (também chamados teucros) durou por volta de dez anos e teve início com o inusitado rapto da mulher da Menelau, a princesa grega Helena, pelo príncipe troiano Páris, e teve como fim o episódio também inusitado em que um imenso cavalo de madeira, dado como um “presente” de reconciliação dos gregos e aceito inocentemente pelos troianos, adentrou as muralhas de Troia, contendo em seu interior e, portanto, escondidos, centenas de soldados gregos dispostos a destruir a cidade de Príamo, Heitor e Páris.
O último ano da Guerra de Troia
Além disso, a Ilíada, não apenas envolve personagens humanos, mas, como veremos, muitos deuses, como Apolo, Atena, Afrodite, Poseidon, Hefesto, que também tomam partido, uns em favor de Troia, como Apolo e Afrodite, outros em favor dos gregos, como Atena, Hefesto, Poseidon. Zeus e Hades permanecem numa postura neutra.
A Ilíada não trata de toda a Guerra de Troia, mas tematiza seu último ano, ou seja, há quase dez anos do rapto da princesa grega Helena pelo príncipe troiano Páris, filho do rei Príamo e irmão de Heitor. Inicia-se com o desentendimento entre os gregos, mais precisamente entre Agamêmnon, rei e chefe do exército, e Aquiles, grande guerreiro e também chefe militar, que reuniu seus homens (mais conhecidos como mirmidões) para auxiliar os gregos. O desentendimento se dá quando, em plena guerra, Agamêmnon reivindica para si a concubina de Aquiles, Briseida. Aquiles, que é filho da deusa marinha Tétis e do mortal Peleu, diz, enraivecido, ao rei grego:
Não vim bater os valorosos Teucros (os troianos) Por queixa pessoal; (…) Viemos (Aquiles e os seus homens) para em Troia a Menelau e a ti lavar a nódoa. Alardeias, ingrato, e nos desprezas. A Ftia (terra de Aquiles) me recolho e os meus navios, Já que aviltas a mão que de tesouros a fome te fartava: eu te abandono.[1]
Aquiles, como vimos, pretende retirar seu exército da batalha. Algo muito interessante em Aquiles, personagem principal da Ilíada, é o motivo da sua entrada na guerra. Foi-lhe revelada, por meio de uma profecia, a sua morte no final do conflito. Mesmo assim, ante o conhecimento da própria morte, ele se dispõe a entrar na batalha: para ele mais vale, ainda que se tenha uma vida breve, a própria glória advinda da luta na guerra e perpetuada pelas futuras gerações que uma vida prolongada e desconhecida.
Um dos principais fatos da Ilíada é a luta direta entre Menelau, esposo de Helena, e Páris, quem a raptou e seu amante. Antes de começar o duelo, Páris impelia o exército troiano ao combate, enquanto Menelau vai ao seu encontro. Aquele, amedrontado, esconde-se entre os troianos, provocando a ira de seu irmão mais velho Heitor, que o encoraja a lutar contra Menelau. Quem vencer ficará com Helena e sairá vencedor da guerra. O duelo tem início:
A sua (espada) arroja Páris; Rasga o broquel do Atrida (Menelau) sem rompê-lo, Na brônzea rigidez se amolga a ponta. (…) A lança aqui desfere, que no instante ao Priâmeo (Páris) entra aguda o reforçado Fúlgido (brilhante) escudo, rasga-lhe a excelente Loriga (vestimenta) e malha, a túnica penetra no quadril: curva-se ele e a morte esquiva.[2]
Menelau está prestes a vencer a luta para desespero dos troianos. No entanto, a deusa Afrodite resgata Páris, retira-o do duelo e o conduz aos braços de Helena, causando muita revolta entre os gregos, que prepararão, mais adiante, uma nova investida contra os troianos.
Os gregos se encontram em dificuldade ante a habilidade dos guerreiros troianos, que lutam em sua própria terra. Além disso, não podem contar com a força de Aquiles, pois este ainda se encontra magoado com relação ao rei Agamêmnon, que se apossou de sua companheira. Um dos episódios mais significativos é o duelo entre Pátroclo, grande amigo de Aquiles, e Heitor, filho do rei Príamo, irmão de Páris, herdeiro do trono de Troia e principal guerreiro do seu exército.
Pátroclo, na sua sede juvenil pelo enfrentamento, desobedece as recomendações de Aquiles, e avança aos muros de Troia. Inicia-se a luta entre o jovem e Heitor:
Os dois, Pátroclo e Heitor, da pugna (luta) mestres, Cortam-se almejando a sevo bronze, (…); Teucros (troianos) e Argeus (gregos) frenéticos se abarbam. (…) Três vezes rui, três vezes mata a nove; Mas ah! da quarta, ó campeão divino (Pátroclo), Luziu o teu fim! Terrível sai Apolo; (…) Heitor, ao magnânimo ferido (Pátroclo), vem por entre as alas, No vazio lhe ensopa o aéneo gume (parte afiada da espada): Tomba o herói com o fracasso, e os Gregos gemem.[3]
Heitor, auxiliado pelo deus Apolo, mata Pátroclo, e causa mais uma derrota aos gregos. Vemos aí algo muito importante: no momento do embate, onde os sentimentos e as paixões estão mais aflorados, existe também a intervenção divina. Os deuses não apenas se posicionam, mas, de fato, interferem no andamento da luta, neste caso, Apolo atrapalha Pátroclo e favorece seu protegido Heitor.
De volta ao conflito
A morte de Pátroclo não apenas trouxe uma grande derrota entre gregos, mas, paradoxalmente, trouxe Aquiles de volta ao conflito. Este, muito abalado com a morte de seu grande amigo, não vê outra alternativa a não ser vingá-lo. Enraivecido, Aquiles volta ao embate, tendo um adversário em mente: Heitor.
Avança Aquiles de elmo a nutar e à destra o lenho ingente. O arnês (armadura) brilha em seu peito à semelhança de vivo ardente fogo. Heitor, ao vê-lo, as portas larga, Deita a correr; em pés fiado Aquiles, No encalço voa. (…) Precipita-se Aquiles, e o Priâmeo (Heitor) Em susto move rápido os joelhos.[4]
Apesar de serem dois guerreiros muito habilidosos, Aquiles vence o duelo e mata Heitor, para desespero do seu pai, o rei troiano Príamo. Este último, junto da mulher de Heitor, Andrômaca, veem o corpo do grande guerreiro troiano ser arrastado por Aquiles até o acampamento dos gregos.
Aquiles, apesar de ter vingado seu amigo com a morte de Heitor, volta para o acampamento muito abatido. No entanto, alguns dias após o duelo, o herói grego tem uma grande surpresa: Príamo, rei de Troia e pai de Heitor, escondido, chega até a tenda de Aquiles, suplicando o cadáver de seu filho para que este seja velado dignamente na sua terra, próximo de sua família. Assim, Príamo diz a Aquiles:
Lembre-te, ó Pelides (Aquiles), O idoso pai, como eu posto à soleira Da pesada velhice. (…). Por teu bom pai, de um velho te apiedes: mais infeliz do que ele, estou fazendo O que nunca mortal fez sobre a terra: Esta mão beijo que matou meu filho.[5]
Príamo, na intenção de restituir o corpo do seu filho Heitor, beija a mão do seu assassino Aquiles, que também estava muito abalado, pois o próprio filho de Príamo, Heitor, havia, anteriormente, matado seu amigo Pátroclo. Esta última cena, carregada de profundos sentimentos, encerra praticamente o livro e é, de fato, um dos principais momentos da Guerra de Troia.
A eficácia educadora do poema
Diante de tudo isso, o quê, de fato, a Ilíada tem a nos ensinar? Qual o motivo da sua perpetuação através dos séculos? Ora, primeiramente, o seu valor universal se dá pela feliz combinação entre mito (pois é uma história permeada pelo aspecto divino), poesia (pois foi escrita dentro de um padrão métrico e ritmado) e aspecto humano (pois vemos questões muito próprias acerca do homem no seu desenvolvimento).
Por meio dessa combinação, todas as ações, especialmente as decisões dos homens que motivam as lutas entre eles, ganham uma dimensão muito alta. Fato que constatamos em Aquiles: primeiramente, mesmo sabendo antecipadamente de sua morte no conflito, ele decide entrar na guerra em busca da glória. Mais tarde, este mesmo Aquiles, tomado pela raiva, fruto do seu desentendimento com o rei grego Agamêmnon, tanto abandona a guerra, como também, mais tarde, por esta mesma raiva, volta para o conflito em busca de matar quem assassinou seu amigo. Mais adiante, é também tomado por uma grande melancolia quando, diante do rei troiano Príamo, que, humilhantemente, suplica o corpo do seu filho morto, Heitor, chora ao ver o resultado da guerra. Assim, diz-nos Werner Jaeger, especialista na Antiguidade Clássica:
A Ilíada celebra a glória da maior aristeia (valentia, em grego) da guerra de Troia, o triunfo de Aquiles sobre o poderoso Heitor, em que a tragédia da grandeza heroica votada à morte se mistura com a submissão do homem ao destino e às necessidades da sua própria ação. (…) O seu heroísmo não pertence ao tipo ingênuo e elementar daquele dos antigos heróis. Eleva-se até a escolha deliberada de uma grande façanha, ao preço antecipadamente conhecido, da própria vida. Todos os gregos (…) veem nisto a grandeza moral e eficácia educadora do poema.[6]
A valentia e a coragem, mas também a vingança e a ira de Aquiles, que são, principalmente, o que o move, elevam-se a uma dimensão sobre-humana, como um ideal a ser buscado. Mais do que isso, o que motiva o herói é o poder de uma escolha, de uma firme decisão que depreenderá consequências: no seu caso, será a morte. Dessa forma, sempre é importante recordar que, no período em que se acredita ter sido escrita a Ilíada, ainda havia culturas que concebiam predominantemente o homem como objeto da ação dos deuses. Vemos que, por meio da tematização de uma guerra, tornam-se claras uma série de ações e consequências que exigem do homem uma tomada de decisão e uma responsabilidade que somente um ser nobre é capaz de executar. Sobre o Homero e seu poema, Jaeger ainda relata:
A Ilíada tem uma intenção ética. (…). A obra de Homero é inspirada, na sua totalidade, por um pensamento “filosófico” relativo à natureza humana e às leis eternas que governam o mundo. A tendência de avaliar tudo pelas normas mais altas e a partir de premissas universais, o uso frequente de exemplos míticos (…), todos estes traços têm sua origem em Homero.[7]
Pode-se dizer que a Ilíada deu início a uma reflexão filosófica sobre Homem, que, primeiramente, os filósofos gregos aprofundarão, mas que será característica de todo o pensamento filosófico ocidental ao longo dos séculos. A dimensão artística inerente à Ilíada deve sempre nos remeter a essa dimensão educadora, própria da poesia grega, que tem como centro questionamentos muito próprios da dimensão humana. Assim, justifica-se o que se diz sobre o poeta grego: Homero foi o educador de toda a Grécia[8].
[1] HOMERO. Ilíada. Tradução de Odorico Mendes. São Paulo. Abril, 2009, pp. 7.
[2] ______. Ilíada. Tradução de Odorico Mendes. São Paulo. Abril, 2009. pp. 54.
[3] ______. Ilíada. Tradução de Odorico Mendes. São Paulo. Abril, 2009, pp. 296.
[4] ______. Ilíada. Tradução de Odorico Mendes. São Paulo. Abril, 2009, pp. 386.
[5] ______. Ilíada. Tradução de Odorico Mendes. São Paulo. Abril, 2009, pp. 434.
[6] JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur Parreira. São Paulo. Martins Fontes,1995, pp. 75.
[7] JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur Parreira. São Paulo. Martins Fontes,1995, pp. 75-77.
[8] Citação retirada da República de Platão, contida no mesmo livro de Jaeger na página 61.
Ficha
Ano: 2003
Páginas: 532
Idioma: Português
Editora: Martin Claret
Boa leitura!