Em 19 de março (que este ano, excepcionalmente, será celebrado liturgicamente no dia 18), celebra-se, no Rito Romano, a Solenidade de São José, Patrono da Igreja[1]. Assim como sua festa precede a primavera no Hemisfério Norte, São Mateus introduz a alegria evangélica do nascimento de Jesus com a genealogia de seu pai nutrício.
Em tal genealogia, José de Nazaré, é filho de Jacó, homônimo do pai de José do Egito. O primeiro título atribuído ao carpinteiro é o de “Esposo de Maria”, já o seu segundo título é o de “Justo”. Necessitamos destrinchar um pouco os simbolismos presentes nestes fatos.
1) A origem do nome
Inicialmente, a importância da origem etimológica do nome. O nome “José” aparece pela primeira vez na bíblia no livro do Gênesis. Jacó, casado com suas primas, as irmãs Lia e Raquel, possuía um total de 11 filhos, porém de Raquel, única com quem casara por amor, não tinha nenhum.
Só após conceder grande fecundidade a Lia (a qual gerara 7 filhos, número da perfeição) e ainda outros quatro filhos das servas Bala e Zelfa, Deus, então, concede a Raquel o seu primeiro filho: José. Diz o livro do Gênesis: “Então Deus se lembrou de Raquel: ele a ouviu e a tornou fecunda. Ela concebeu e deu à luz um filho; e disse: ‘Deus retirou minha vergonha;’ e ela o chamou José, dizendo: ‘Acrescente-me o Senhor um outro filho!’” (Gn 30, 22-24).
No original em hebraico, há aí um duplo jogo de palavras, pois o verbo que foi traduzido para o português como “retirou”, em hebraico é o verbo “Asaf” (=אסףA.S.F) que, neste contexto, se contrapõe ao verbo “acrescentar”, cuja a raíz hebraica é “Y.S.F” (י.ס.ף). Ou seja, Deus retira a dor e acrescenta a alegria de um filho varão[2]. No versículo que diz:“E chamou o seu nome ‘José’, dizendo: ‘Acrescente-me o Senhor um outro filho’”, em hebraico se lê: “Vê tikrá et shemô Yoosef, lemor: ‘Yosef Adonay li ben akher’”[3]. Ficando muito clara a conexão que o autor bíblico faz entre o nome José e o verbo acrescentar. Assim sendo, José, segundo essa versão, significaria: “Deus acrescentará”, estando a palavra “Deus” subentendida no nome em si.[4]
A relação do significado do nome “José” com o carpinteiro de Nazaré e portador de mesmo nome é muito clara quando lemos as palavras de Jesus em Mt 6,33: “Buscai, em primeiro lugar, seu Reino e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas”. José, “Deus acrescentará”, possui, em seu nome, o seu estilo de vida e traduz nele o conselho evangélico da pobreza. Conselho este que por sua vez significa um total abandono nas mãos de Deus[5]. A prova de seu abandono e, portanto, de sua pobreza, está no fato de, sem questionar nenhuma vez as ordens divinas, sempre seguiu a indicação do Arcanjo Gabriel a lhe guiar os passos (c.f. Mt 1 e 2).
José, um homem que buscou com sinceridade o Reino de Deus e a Sua Justiça, viu tudo lhe ser acrescentado[6], pois não apenas constituiu uma família qualquer, mas se tornou o pai adotivo do Filho de Deus, esposo da Mãe de Deus e, posteriormente, Patrono para toda a Igreja e seus filhos. Ele viveu a grande bem-aventurança do Sermão da Montanha [“Felizes os pobres no espírito, porque deles é o Reino dos Céus”. (c.f. Mt 5,3)] e como sabemos, o assim chamado sermão é o resumo e o coração de todo o evangelho, quem o vive, já vive todo a Boa Nova e a Nova Lei.
2) Semelhança entre os Josés
Existe grande semelhança entre José do Egito e José de Nazaré. A primeira comparação que se pode fazer é a relação dos sonhos na vida do egípcio e dos sonhos na vida do nazareno. Um decifrava a voz de Deus para os outros por meio dos sonhos, outro ouvia e cumpria a vontade de Deus em sua própria vida.
José do Egito era para sua mãe um motivo de alegria, além de ser o seu primogênito, pode ser considerado o mais justo dentre seus irmãos. Rubem, seu irmão mais velho violou o leito de seu pai, dormindo com uma de suas concubinas (cf. Gn 35, 21-22). Simeão e Levi assassinaram à traição o marido de sua irmã Dina, em desobediência ao que seu pai Jacó havia determinado (cf. Gn 34, 25-31). Judá recusou-se a dar seu filho mais novo a Tamar, como estava obrigado a fazê-lo conforme a Lei do Levirato (cf. Gn 38). Todos os demais irmãos, embora não se saiba mais detalhes sobre eles, queriam matar José e acabaram vendendo-lo como escravo por sugestão de Judá (cf. Gn 37, 12-36). Este fato em si, por si só, já é suficiente para demonstrar a injustiça de seus irmãos.
José do Egito é o que se pode considerar o primeiro patriarca virtuoso, no qual não há nenhum pecado descrito na Bíblia[7]. Abraão mentiu por duas vezes (cf. Gn 12, 10-20; Gn 20) e Isaac (cf. Gn 26, 1-14), assim como seu pai, também mentiu por uma falta de confiança na providência de Deus. Se esses dois primeiros patriacas tiveram lá os seus erros, como todo ser humano, o que dizer de Jacó?
Jacó honrava o nome que tinha! Nascido com a mão no calcanhar (A’qev em hebraico: עֲקֵב) do seu irmão, Jacó=Ya’qov (יַעֲקֹב) seu nome significa, literalmente, “agarrado ao calcanhar”, mas pode significar aquele que suplanta tudo, aquele que coloca tudo aos seus pés, como também pode significar o embusteiro, o trapaceiro. Jacó (a) chantageia seu irmão, fazendo com que este lhe ceda o direito da primogenitura; (b) engana seu pai, recebendo deste todas as bençãos merecidas ao filho; (c) trapeceia seu sogro, tornando-se um homem rico (cf. Gn 30, 25 – 43).
Do embusteiro, nasceu José, o virtuoso. Pode-se alegar que, a princípio, o jovem pudesse ter sido um pouco orgulhoso, sabendo-se o filho favorito e prevendo através de um sonho que o sol, a lua e as estrelas curvar-se-iam diante dele, no entanto, logo aprendeu a humildade como escravo (cf. Gn 37).
Vendido, não odiou os irmãos e mesmo utilizou-se do “perdão inteligente”[8] em uma trama bem arquitetada para levar seus irmãos ao arrependimento e assim perdoá-los. Assediado, não cedeu a sedução da mulher de Putifar. Caluniado, nunca perdeu a confiança em Deus. Buscou, de fato, o Reino de Deus e sua Justiça e tudo lhe foi dado por acréscimo.
Quanto a José de Nazaré, este abandonou seus próprios planos, deixando até mesmo o possível sonho de uma descendência própria para cumprir o plano de Deus na sua vida e na história da humanidade.
José do Egito tornou-se o despenseiro-mor do Faraó, o vice-rei do Egito, ou seja estava abaixo apenas de um “deus egípcio”. Do mesmo modo, José, o carpinteiro, colocava sempre sua vontade abaixo da vontade de Deus e era virtuoso ao ponto de merecer a alcunha de “justo”. Como se verá adiante, era um homem caridoso, esperançoso e fiel (no sentido de ter fé), logo posuia as três virtudes teologais. Também possuia as quatro virtudes cardeais, dentre elas, a justiça. José de Nazaré tornou-se o despenseiro de Deus, pois o Ser Divino confiou a ele os seus dois maiores tesouros: Seu Divino Filho e Sua Santíssima Mãe. Ele, então, não estava apenas abaixo de “um deus egípcio”, mas abaixo somente do próprio Deus e de Sua Divina Mãe.[9]
José do Egito alimentou seu povo e foi instrumento da Providência Divina na vida de seus irmãos. José de Nazaré alimentou a Deus, o qual por sua vez alimentou o povo em duas multiplicações de pães e peixes e até hoje nos alimenta com a Eucaristia e na Sua Providência.
José do Egito, embora primogênito de sua mãe, foi o último filho de seu pai a nascer na pobreza. O nascimento deste filho foi o prelúdio da abundância na vida de Jacó e na vida do povo (José: Deus acrescentará) (cf. Gn 31). Assim também José de Nazaré. Embora seu nascimento não tenha sido descrito nos evangelhos canônicos, nem mesmo nos apócrifos, ele foi o primeiro a nascer dentre os membros da Sagrada Família e seu papel era fundamental para o cumprimento da profecia messiânica. Era necessária a adoção de Jesus por José, para que Aquele tivesse direitos como descendente de Davi pelo lado paterno. José precisava dizer sim e por isso mesmo o anjo Gabriel apareceu-lhe em sonho. Por isso, pode-se dizer que o nascimento de José de Nazaré foi o prelúdio do Ano da Graça do Senhor (Lc 4, 19), da abundância dos bens espirituais na vida do povo.
O nascimento de José do Egito recorda-nos a profecia de Isaías:“Entoa alegre canto, ó estéril, que não deste à luz; ergue gritos de alegria, exulta, tu que não sentiste as dores de parto, porque mais numerosos são os filhos da abandonada do que os filhos da esposa, diz o Senhor” (Is 54,1). Raquel, a estéril, tornou-se mãe. Esterilidade esta que pode estar relacionada a fatores genéticos, já que Rebeca, sua tia paterna e mãe de Jacó, também tivera dificuldades de engravidar, como também Sara, sua parente distante.
De outro lado, outra razão para sua infertilidade pode ter sido a idade na qual veio a se casar.
Conta-nos o texto sagrado que Esaú, ao completar 40 anos tomou mulheres hetéias e ismalecitas do seu entorno e as desposou (cf. Gn 26, 34). Essa ação desagradou a sua mãe e a seu pai o qual enviou, então, Jacó a Aram, à casa dos seus parentes para que escolhesse, dentre sua parentela, uma mulher adequada. Jacó, por ser irmão gêmeo de Esaú, portanto, já teria 40 anos também. É possível questionar a exatidão da idade dos personagens bíblicos, mas em todo caso, o número 40 pode significar aqui, como em outros lugares, o tempo necessário para atingir a idade núbil, ou a maturidade. Jacó apaixona-se por Raquel e trabalha por ela 14 anos, 7 anos para desposar Lia, e outros 7 anos por Raquel. Aqui temos duas possibilidades distintas: (1) supondo que Raquel tivesse em torno de 15 anos quando conheceu Jacó, teria ela se casado com ele já com 32 anos; (2) de outro lado, se levarmos em conta a idade bíblica de Jacó (40 anos), há de se supor que Raquel ao conhecê-lo, ao invés de ter 15, devesse ter, ao menos 30 anos e teria casado-se com 44, o que por si já demonstra o quanto seria difícil para ela ter filhos.
No entanto, devido a incerteza dos dados sobre a idade real que tais personagens teriam, o mais importante aqui não são os anos em si, mas a mensagem espiritual que se pretende captar:
Jacó, quando lhe chegou o tempo oportuno, foi buscar dentro de sua grei, uma mulher que lhe fosse adequada, assim como Adão. Precisou trabalhar muito para consegui-la, 14 anos (duas vezes 7), ou seja, um duplo esforço de plenitude. Após Lia ter 7 filhos, o total máximo de sua fecundidade, Deus deu a Raquel um filho. Raquel que já teria passado do tempo necessário (mais de quarenta anos), assim como o povo de Deus passou 40 anos no deserto, experimentou a secura e a esterilidade.[10] Assim, na vida de sua mãe, o nascimento de José do Egito simboliza a abundância, após longo período de deserto.
Do mesmo modo, José de Nazaré é este sinal de abundância no deserto da fé, de um homem justo em meio as injustiças[11]. Na época em que José nasceu já não havia profetas em Israel há centenas de anos, o povo era maltratado pelos romanos e um rei injusto, Herodes, reinava com tirania implacável. Assim, o nascimento de José demonstra a abundância da virtude no deserto da fé e isto é muito bem simbolizado na data escolhida para a sua festa.
3) A data da festa
Não é por acaso que a Solenidade de São José é celebrada no dia 19 de março, quando se celebravam rituais e festivais agrícolas dentre os povos europeus pré-cristãos. Essa época do ano era o tempo propício para dirigirem-se súplicas aos deuses em favor da abundância. Também hoje, no sertão do Nordeste brasileiro, chover no dia de São José, é sinal de fartura na colheita. São José é também o padroeiro do Ceará, um dos estados mais secos do Brasil.
Como já foi dito acima, sua festa está localizada dois dias antes do equinócio de primavera no Hemisfério Norte (21 de março) e festividades primaveris, na antiguidade, eram muito comuns. A própria Páscoa judaica pode ter relação direta com tais festas.
Em sua dimensão litúrgica, a Solenidade de São José sempre vai ocorrer durante a Quaresma, sendo uma grande festa em meio a um período de deserto (Quaresma = Deserto = Penitência). O início da Quaresma coincide sempre com o último mês de inverno no Hemisfério Norte (fevereiro-março) e termina alguns dias depois da primavera, ou, no máximo, duas semanas após o seu início. Assim, a Solenidade de São José é um convite a olhar a vida nova vindoura, a Ressurreição do novo jardim da primavera, do novo jardim do Éden.
Já na primavera, no dia 25 de março, celebra-se a Anunciação, a qual simboliza a Salvação que se aproxima, a abundância já presente, pois o “Verbo se fez carne e habitou entre nós” (c.f. Jo 1, 14) a vida nova de Cristo que brevemente nascerá, pois, como dizem as profecias: “as nuvens jorrão o justo, a justiça”, (cf. Is 45, 8) e “a palavra de Deus não voltará sem germinar a terra” (cf. Is 55, 10-11). Já a festa de São José ocorre ainda no inverno, como prelúdio de tempo novo ainda não presente. Aqui recordamos a semelhança com José do Egito, pois assim como São José ainda está no tempo do inverno, José do Egito é o último filho de Jacó nascido na penúria, antes da abundância, portanto.
3.1. A Relação entre deserto, Quaresma e São José
Como fora dito acima, a Solenidade de São José ocorre no período da Quaresma e este tempo litúrgico é um período de deserto. A palavra “deserto” em hebraico, chama-se:“midbar” (מִדבָּר) , como também é nomeado o livro dos Números na tradição judaica (BaMidbar). Curiosamente, a palavra “deserto” em hebraico vem da raíz da palavra “palavra” (דָבָר) (D.B.R) e sua morfologia dá a entender que o deserto é o “lugar onde se fala”. “Atrai-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração” (c.f. Os 2, 16), disse Deus na profecia de Oséias. O deserto, portanto, não é só um lugar seco, mas significa o lugar de encontro, no qual Deus fala. Neste deserto da fé, Deus falou ao povo, Deus falou a José revelando a chegada da chuva, da abundância, da Salvação.
Um detalhe interessante sobre o deserto em Israel é que, no inverno, ele é verde e fecundo pelas chuvas. Assim sendo, quando na Quaresma somos convidados a acompanhar Jesus no deserto, este convite é para nos encontrarmos com Ele no deserto transformado por sua divina presença, pela presença da chuva da Salvação. Deus nos chama ao deserto para tornar nossa vida fecunda!
O inverno em Israel não é sinal de morte como na Europa, mas é a principal estação do ano na qual há chuva. Pode-se dizer que a Primavera é resultado do inverno, o jardim é resultado do deserto. O jardim e o deserto tornam-se, no invervo e durante a Quaresma, uma só coisa. Do mesmo modo como no Getsemani, no Monte das Oliveiras (último reduto verde de Jerusalém de costas para o deserto da Judéia) em que a suprema agonia de Jesus se transforma no conforto dado pelos anjos. Assim como o Jardim do Gólgota que, sendo lugar da morte, se transforma no lugar da vida e da vitória.
O deserto “midbar” é o lugar onde a palavra de Deus fecunda nossa secura e nos prepara para ressurreição no amor. Por isso, a Quaresma é tempo de esperança. Nas noites escuras e frias do deserto, Deus se comunicava com o povo pela coluna de fogo na época de Moisés, ou por sonho como ocorre com São José.
3.2. Deserto: lugar de purificação, lugar no qual Deus nos faz justos
Há ainda outra curiosidade linguística sobre o deserto. O deserto rochoso assim como é o da Judéia, diferentemente do arenoso como o Sahara (صحراء) , é chamado em árabe de “baryie” (برّية) , que vem da raíz “B.R.”, assim como a palavra “justo”(Baar) (بار) . “Baryie” em árabe tem a conotação de um lugar ermo, selvagem, assim como o termo “bari”(بري) , selvagem. Assim, Deus nos chama ao deserto rochoso da Judeia (em árabe: “baryie”) para nos purificar (em árabe: “ibarerna” يبررنا), não para nos tornar selvagens no sentido negativo, mas para nos tornar justos (em árabe: Abraar ابرار). A mesma raíz em hebraico “Bar”(בר) também tem essa mesma conotação.
3.3. Conclusão
São José é comemorado neste deserto (no inverno da Quaresma), lugar onde Deus fala, lugar de amizade com Deus que purifica e faz justo. No deserto, “midbar”, a palavra )“davar”( de Deus é tão concreta quese torna algo palpável[12], Deus diz a justiça, revela-nos seus mandamentos e nos ordena o amor. O fato de Deus “dizer”, ou “falar” no deserto, nos remonta diretamente ao conceito de “justo” no grego.
Dito isto, resta-nos tratar agora do título de José, o justo, no evangelho de São Mateus.
4) José, o Justo, na tradição grega
Tendo sido o evangelho escrito em grego, é preciso analisá-lo em sua língua original. Em língua helênica, o termo justo é “dikaios” (δικαιος) e foi aplicado por São Mateus a São José. Este termo é originado da palavra “Diké” (δίκη), ou justiça[13]. A palavra “Diké”, no grego “é cognata do verbo latino dico, dicere (=dizer)”[14]. “Dizer a justiça” era uma atribuição do rei que se valia de fórmulas pré-concebidas segundo as quais ele precisaria decidir uma questão. O rei humano, aos moldes do rei dos deuses (Zeus), era então auxíliado por duas deusas, ambas esposas de Zeus: a deusa Themis e a sua irmã, a deusa Mnemosine. Themis, filha do Céu e da Terra, seria a guardiã da lei e dos juramentos e suas filhas com Zeus são justamente Eunômia (boa lei = Disciplina), Dike (Justiça) e Irene (Paz). Já Mnemosine era a deusa da memória e como nos primórdios não havia leis escritas, o rei precisava do auxílio da memória para poder ter um julgamento justo, lembrando-se das fórmulas.
Esta capacidade de “persuadir com brandas palavras”, tanto quanto a conveniência geral da sentença dada no julgamento, é que asseguravam aos reis o gozo da boa reputação e popularidade. Além disso, a administração da justiça não era de modo algum um ato meramente cívico, mas também de caráter religioso e até mágico, – na medida em que a ordem social não se distinguia ainda, para a mentalidade mítica e arcaica, da ordem natural e até da ordem temporal (i.e., cronológica). A injustiça social acarretaria distúrbios nas forças produtivas e na ordem da natureza: peste e esterilidade nos rebanhos, escassez nas colheitas e, portanto, penúria e fome, e ainda filhos que não se assemelham aos pais ou que já nascem encanecidos (cf. Trabalhos, vv. 180-200 e 214-247). (…). Encontrar a fórmula correta, pronunciá-la com autoridade e incutir a aceitação dela no ânimo dos contendentes é praticar a reta justiça, e assegurar a pacificação social e a ordem da natureza (pela mutualidade desta com a justiça). E essa atividade se funda no uso eficiente das Palavras, tanto quanto a do Cantor. Por outro lado, este poder de pronunciar a fórmula justa e eficiente é um dom com que as Musas — como fadas madrinhas—dotam os reis a cujo nascimento elas assistem e aos quais elas honram,—o que implica uma vocação que acompanha o indivíduo ao longo da vida e para a qual ele deve ter-se preparado desde idade precoce.[15]
Curiosamente, a palavra “dikaios”, “aquele que diz a justiça”, “o justo”, foi aplicada no evangelho de Mateus a um homem que não disse sequer uma palavra! Em que consiste, então, a justiça de José? Sua justiça consiste em “recordar” as três possibilidades existentes para decidir o que faria em relação a Maria, quando esta se encontrava grávida por obra do Espírito Santo: (a) denunciá-la por adultério, cuja consequência seria o seu apedrejamento até a morte; (b) repudiá-la publicamente, cuja a consequência seria dar a conhecer a todos de modo indireto que Maria não esperava um filho seu, maculando assim a reputação da mesma; (c) abandoná-la em segredo, fazendo recair sobre si a culpa, pois aos olhos da sociedade nazarena, José pareceria um homem sem responsabilidade, deixando a esposa com um filho sem lhe oferecer sustento. José decide-se pela última alternativa. Entre macular a reputação de Maria e a sua, decide-se por prejudicar o seu próprio “bom nome”, ao contrário de Adão, que questionado por Deus, imeditamente, jogou a culpa sobre sua mulher. José é justo, porque recordando as possiblidades escritas na lei, não julga conforme as aparências, mas, acreditando nas palavras de Maria, a protege.
5) José, o Justo, na tradição semítica
Como foi dito, anteriormente, na mitologia grega, a “deusa” da memória seria responsável por recordar o rei as possibilidades previstas na lei para que ele assim a aplicasse. Já no judaísmo, a memória também está ligada a fé.
José faz uso da memória e não só relembra a lei, mas relembra os grandes feitos do passado. Ele recorda (do latim: “traz ao coração”) e conhece a lei, os profetas e o poder de Deus. Ele conhece Maria e sabe que o Deus de seus pais tem poder para realizar os fatos narrados por ela. A fé está ligada a memória do Deus que faz e fará como já fizera antes. A fé para o povo judeu está diretamente ligada a memória da presença de Deus e da sua fidelidade[16].
5.1.) Significado bíblico da palavra Fidelidade
O termo “Fidelidade” é derivado da palavra “fé” nas língua latinas. O termo “fiel” tem duplo significado: aquele que é digno de fé ou aquele que acredita. Nos dois sentidos, um ser digno de fé, seria considerado justo, assim como uma pessoa que tem fé também seria considereda justa.
“O justo viverá por sua fidelidade” (cf. Hab 2,4)[17], nos diz o profeta Habacuc, ou ainda “O justo viverá pela fé” (Rm 1, 17; Gl 3,11), como afirma São Paulo em suas cartas aos Gálatas e aos Romanos. Na verdade, tanto “justo” como “fiel” têm um sentido parecido, pois o termo “justo” em hebraico é “Tsdiiq” (צדיק), derivado da palavra “Tsdeq” (justiça = צדק). “Tsdiiq” transliterado para o árabe, língua-irmã do hebraico, torna-se “Sidiiq” (صِديق), cujo significado também é “justo” e que muito se assemelha com a palavra“Sadiiq” (صَديق), ou seja, “amigo”. “Sadiiq” e “Sidiiq” em árabe vêm da raíz S.D.Q (ص.د.ق) da qual derivam, dentre outros, os termos: amizade (صداقة) , amigo(صديق), mas também o verbo crer(صدق) . Logo, “amigo”(“Sadiiq” em árabe) e “justo” (“Sidiiq”, também em árabe), seriam “aquele ser digno de fé”, aquele em que se pode acreditar e contar os segredos, aquele que seria “Amin”. E esse uso associa a palavra “amigo” e “justo” em árabe a outra raíz que deu origem no português a palavra “Amém”, qual seja a raíz “A.M.N”(أمن) .
“A.M.N” (אמן) no hebraico originou, dentre outros, os seguintes substantivos derivados: fé (אמונה), fiel (נאמן), treinador(מאמן) e arte(אומנות) . Todos esses nomes tem relação com a fidelidade e a verdade. Qual a relação destas palavras com a palavra “fé”? A resposta é muito simples. É preciso confiar no treinador (מאמן) para fazer o que ele lhe diz; o artista (אמן) precisa ser fiel (נאמן) na sua representação da realidade…
A mesma raíz em árabe, deu origem aos seguintes nomes (lista não exaustiva): seguro(تأمين) , segurança(أمان) , fiel (أمين) , fidelidade (أمانة). Também aqui se vê o mesmo sentido já analisado dessa raíz em hebraico. O verbo “acreditar”, nas duas línguas estudadas aqui, vem da mesma origem. Assim, é possível enxergar uma relação intrinseca entre o “Justo” (צדיק) e a “fé” ou a “fidelidade” (אמונה). Justo é aquele que acredita, ou em quem se pode acreditar!
5.2.) Sentido comercial da palavra “fé”
O verbo “crer” em habraico (להאמין) tinha ainda uma aplicação comercial a princípio, assim como os seus correspondentes no grego “Pístis” (πίστης) e no latim “Fides”. Sua influência pode ser sentida também a nossa língua portuguesa, pois o verbo “crer” e a palavra “fé” deram origem a diversos termos comerciais como, por exemplo: “fiador”, “fiduciário”, “fiado”, “financeiro”, “títulos creditórios”, “credor”, “crediário”, “crédito” etc. Então, “o ser digno de crédito”, “digno de fé”, “o fiel” era aquele que cumpria sua palavra e pagava suas dívidas contratuais.
Essa noção contratual da fé também está expressa nas diversas alianças de Deus com o seu povo, mas de forma especial no pacto de Deus com Abraão, realizado aos modos contratuais orientais (c.f. Gn 15). Deus é fiel, e o justo é aquele o qual reconhece a fidelidade de Deus e os seus feitos, pois a primeira definição de justiça é “dar a cada um segundo lhe é devido”[18]. “O justo viverá pela fé”, e ter fé em Deus é justo diante da sua fidelidade. José assim, é justo por ter fé em Deus e ter fé nas palavras de Maria. O justo tanto é aquele que acredita em quem deve acreditar, como também é aquele que é digno de fé por ter fidelidade. Assim, os dois significados da palavra fiel são, na verdade, dois lados da mesma moeda.
5.3.) José é justo, pois é amigo e filho de Deus
José de Nazaré é justo, pois é amigo de Deus. O filho de Jacó, o trapaceiro, símbolo de uma geração incrédula (Mt 17,17), torna-se por seus atos, filho de Deus.
O que significa ser filho? Para os antigos, o filho é a manifestação da natureza paterna, assim como era o pai, será o filho. O filho esclarece a natureza paterna e a define, como no caso dos deuses gregos. Por exemplo, o filho da Aurora é o Sol; a filha da Astúcia (Metis) é a deusa da inteligência (Atena); a filha da Themis (deusa das leis domésticas) é a Justiça (Diké)[19]. Assim também na linguagem semita, os “filhos do Trovão”, como Jesus apelida Tiago e João, denota a semelhança desses dois apóstolos com um trovão impetuoso e barulhento. Logo, José, o Justo, que nasce do embusteiro e torna-se filho de Deus, é um sinal da conversão a qual Deus nos chama.
José nasce no deserto, filho de uma geração incrédula (Mt 17,17) e, portanto, injusta, mas torna-se justo por sua fé. Não por acaso, José de Nazaré é filho de Jacó, na genealogia de Mateus, mas na genealogia de Lucas, ele é filho de Eli(עלי) , que significa Altíssimo (c.f. Lc 3, 23). José é filho do Altíssimo, não como os filhos do sacerdote Eli (c.f. 1Sm 2 e 3), mas como Samuel que escutou a voz de Deus e lhe foi fiel.
6) José, o Justo, na tradução árabe
Já tendo destrinchado o termo “justo” em hebraico, é preciso estudá-lo agora em sua perspectiva árabe. Em árabe, além do termo “Sidiiq”, “justo” também pode ser tradzido por“baar”(بار), da raíz “B.R.”, da palavra “ber” (بِر), que quer dizer justiça, inocência, pureza. Essa concepção do árabe ajuda-nos ainda a entender melhor o que é ser “justo” na concepção judaica. Ser justo para os judeus é cumprir toda lei, é ter as mãos limpas, o coração puro (cf. Sl 15). Logo, se alguém comete uma falta, já não é mais justo.
O problema é que, em muitos casos, como Davi, Abraão, Jacó e outros, o ponto principal estava centrado na fidelidade a Deus, a obediência a Deus, mesmo que se cometessem outros deslizes de ordem moral. A própria afirmação de Paulo na qual a justificação vem pela fé e não pelas obras da lei acabou por ser mal interpretada. A justiça e o ser justo não conduz a um moralismo hipócrita ou a uma exterioridade. A justiça não tem apenas um vértice divino, mas tem um conteúdo interior humano e social, relacional. “O justo viverá pela fé” não é só a fé em Deus, mas significa também dar aos demais aquilo que lhe é direito.
“Maldito o homem que confia em outro homem”, alerta-nos Jeremias (c.f. Jr 17,5), no sentido de não depositarmos nossa esperança em um projeto de salvação humana, ou buscando a perfeição no homem. No entanto, quando Tomé recusa-se a crer nos outros apóstolos e é repreendido por Jesus (c.f. Jo 20, 30), é muito interessante a tradução em árabe que diz: “lan usadeq” (لن أَصَدِق) (“Não acreditarei! Não darei crédito ao que vocês me dizem!”). Tomé não só descrer na ressurreição de Cristo em si, ele não acredita em seus amigos. José, ao contrário, é justo, pois acredita não só no poder de Deus, mas em Maria. José é justo porque sua fé é traduzida em obras. Cumprindo não só os mandamentos relacionados a Deus como também os mandamentos relacionados ao próximo, os quais foram resumidos por Jesus no “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”.
7) José, Esposo de Maria
José é justo por sua ação com Maria e, por seu matrimônio com ela, torna-se participante de suas graças. A comunhão espiritual de José e Maria é uma prefiguração também de Cristo e a Igreja. Enquanto Cristo é quem nos comunica seus dons e sua perfeição, pelo matrimônio, José participa da plenitude de graça derramada em Maria.
8) Conclusão
Deus nos chama à conversão. Esta é resultado do fazer memória dos grandes feitos do Senhor e do reconhecimento da ação de Deus na vida dos irmãos. Converter-se é o primeiro passo para a justificação, que se dá no deserto, em meio a luta contra a tentação, lugar onde a palavra de Deus nos fecunda e transforma nosso deserto em jardim, assim como fez com o cajado de São José donde o lírio floriu. Mesmo que não consigamos nos tornar justos como São José, plenos de todas as virtudes, àquilo que faltar, Deus completará com seu amor, qual Esposo ao nos comunicar seus dons. Basta ter fé em Deus e amar o irmão. O resumo de tudo isso é oração, penitência e caridade, também vividos por São José.
Thiago Victor Rodrigues Freire
Comuidade Católica Shalom
[1] Patrono, uma das palavras derivadas da palavra “Pater”, significa aquele que se assemelha ao pai, responsável por angariar fundos, patrocinar e defender alguém. A exemplo de Santa Teresa de Ávila, a qual outorgou ao santo o patrocínio do Carmelo, o Papa Pio IX conferiu a São José o título de Patrono da Igreja, em 08 de dezembro de 1870.
[2] Vale lembrar aqui o que disse o Papa Emérito Bento XVI, ao afirmar que “Deus não tira nada, ele dá tudo”. HOMILIA DE SUA SANTIDADE BENTO XV. Praça de São Pedro. Domingo, 24 de abril de 2005. Disponível em: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/homilies/2005/documents/hf_ben-xvi_hom_20050424_inizio-pontificato.html
[3] No original:” וַתִּקְרָא אֶת-שְׁמוֹ יוֹסֵף, לֵאמֹר: יֹסֵף יְהוָה לִי, בֵּן אַחֵר”.
[4] De fato, Raquel terá outro filho, o qual será chamado Benjamin.
[5] Nas palavras de Moysés Louro Azevedo Filho, fundador da Comunidade Católica Shalom: “Ser pobre é está abandonado nas mãos de Deus”. (Escritos da Comunidade Católica Shalom, Escrito Pobreza, nº 6)
[6] “Cem vezes mais nesta vida e na outra, a vida eterna”. (Mt 19,29).
[7] Não por acaso, ele é assemelhado a Jesus no Ofício do Esposo, celebrado pelas Igrejas Orientais durante a Semana Santa. Não se quer negar com isso a obra de santificação de Deus na vida nos patriarcas que, de fato, morreram em estado de grande perfeição.
[8] Esta terminologia foi utilizada pelo Pe. Antônio Furtado, em uma de suas pregações à Comunidade Católica Shalom. Baseando-se em Mt 5, 38-42, o sentido do “perdão inteligente” seria um ato da vítima pelo qual o agressor entenderia o abuso contido em suas ações e, caindo em si, se arrependeria de seus maus atos.
[9] “Abaixo” em ordem de santidade, no sentido que José seria “menos” santo do que os demais. No entanto, durante suas vidas terrenas, Maria e até o próprio Deus-Menino foram submissos a José.
[10] O nome Raquel quer dizer ovelha, mas que também tem conexões com a palavra “passagem”. Em árabe, outra língua semítica, a mesma raíz de Raquel (R.H.L) (رحيل), dá origem a palavra viagem (Rehleرحلة-) e a palavra “Qves” (כבש) em hebraico, carneiro, deu também origem a palavra “Qvish” (כביש) que quer dizer caminho, rodovia. A origem provavél da associação entre a palavra “ovelha” ou “carneiro” com a palavra “caminho” deve-se ao fato de as línguas semíticas terem nascido em meio a povos pastoris e pelo fato dos rebanhos deixarem seus rastros, formando sendas e caminhos por onde pastavam/ passavam.
[11] Este aspecto será mais desenvolvido mais adiante.
[12] Em hebraico, “palavra” (דבר) e “coisa”(דבר) são escritas da mesma maneira. O verbo “dizer” em hebraico A.M.R (אמר), em árabe, dá origem ao verbo “mandar”(أمر) , “ordenar” e ao substântivo “coisa” (أمر). Nas duas línguas os mandamentos de Deus não são teóricos, mas sim algo real e concreto.
[13] TORRANO, Jaa. O Mundo como Função das Musas. In: Hesíodo. Teogonia: A origem dos Deuses. Estudo e tradução Jaa Torrano, 3ª ed. São Paulo: Editora Iluminuras, 1995. p.28.
[14] Idem. p. 28.
[15] TORRANO, Ob. Cit., p.29.
[16] No judaísmo, por exemplo, as duas velas acessas na vigília de sábado (Kabalat Shabbat) recordam justamente os dois verbos usados por Deus em relação ao preceito de sábado: lembrai-vos e guardai o dia de descanso. Já a Páscoa que é em si, é também um memorial da libertação do Egito.
[17] Como é comum ocorrer nas línguas faladas, o significado de algumas palavras pode ser alterado através do tempo. Embora no hebraico moderno a palavra “Emona” (אמונה), signifique “fé”, tal como faz uso do termo o Apóstolo Paulo, no tempo do profeta Habacuc o mesmo termo era usado no sentido de “fidelidade”, daí a existência das duas versões para a mesma frase.
[18] Simônides, poeta grego citado por Platão em “A República”. PLATÃO. A República. Tradução: Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. Belém: EDUFPA, 2000. p. 55.
[19] TORRANO, Ob. Cit., p.29.