Formação

Véspera de prova de física: Ler, para quê?

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Véspera de prova de física. Nervos à flor da pele. Tentativa desesperada de decorar aquela “fórmula mágica”. Barulho de chinela de mãe se aproximando. Beijo na testa, carinho no ombro e a infalível pergunta óbvia:

– “Tem prova amanhã, filho?”
– “É. Física.”
– “Complicado, não é?”
– “Uh-hum!”
– “Meu filho, não vejo você lendo nada que não sejam seus livros didáticos…Você não gosta de ler?”
– ” Deteeeeeeeesto! ”
– “Mas, meu bem, se você não ler vai ficar bitolado, tendo somente a informação essencial que lhe dão nas aulas”
– “Essencial, é? Vai ficar no meu lugar e ver se é só o essencial! Se você visse quanta coisa supérflua me ensinam…”
– “Por exemplo?”
– “O tipo de clima da China e a importância do Estreito de Gibraltar, só prá dar um exemplo! Prá que, pelo amor de Deus, preciso saber disso?
– “Ora, para ter cultura geral.”

O filho, com uma careta de enjôo:

– “Cultura geral? Sem essa, mãe! Hoje em dia não se pode ter mais cultura geral. Tem informação demais!
Além disso, prá que que existe enciclopédia informatizada? Prá que é que vai me servir saber destas coisas? O que é que vou ganhar com isso?”
– “Meu bem, além da cultura geral, tem a sua formação. Há tanta coisa linda na história, na filosofia, na literatura, a poesia,então…” E a mãe olha longe, se lembrando do seu tempo, tempo bom aquele em que se dava valor ao belo, às coisas que realmente tinham importância…
– “Aí não, mãe! Aí você já está é julgando. Li TODOS os livros para-didáticos deste semestre. Desta vez não fiz nenhuma prova de leitura lendo só o começo e o fim do livro. Aí não… Aí é injustiça!”

A mãe, distraída:

– “Sede assim qualquer coisa serena, isenta, fieL..”
– “Que?”
– “É um poema de Cecília Meireles. Li a antologia dela quando era jovem. Nunca esqueci esta parte. Veja que lindo: ‘Sede assim qualquer coisa serena, isenta, fiel. Flor que se cumpre sem pergunta.'”
– “Pôxa, naquela época ela já queria ficar isenta, era?”
– “Hum?”
– “É, isenta do imposto de renda. Assim, enrolando, só pode mesmo é ser fiel.”

A mãe perde a paciência:

– “Isenta, aí, mentezinha audio-visual, não significa isso! Significa ‘pura’, ‘intocada’, ‘incorrupta’…”
O filho, de si para si, trata de armar uma defesa, pensando: “Ai, ai, ai! Pelo jeito, vai acabar em lição de moral. Te cuida, cara!. ” E, abraçando a mãe para evitar o pior:
– “Eu sei, mãezinha, eu sei…”
Tarde demais. O vulcão já estava em plena erupção:
– “Não sei o que vai ser de você e de sua irmã! Da próxima vez que a Maria faixineira vier, vou mandar espanar a mente de vocês. Está cheia de teia de aranha! Como é que vão aprender a pensar se não lerem, hein? Me diga! Como é que vão ter uma visão larga do mundo se não lerem? Me diga! Me diga! Jornal só serve prá ver que filme está passando; revista informativa só serve para ler a seção de fofoca e de humor; literatura só serve para fazer prova; história só serve para passar no vestibular; filosofia é coisa de padre; teatro é coisa de homossexual… Meu Deus, o que foi que fiz para merecer ter filho bitolado!”

O filho tenta mais uma vez. Afinal, pode sobrar para ele…

– “Calma, gatinha, fique fria!”
– “Fria! Já estou há muito tempo é congelada! Congelada de horror há muito tempo! (e aqui é há com “h”, caso você não saiba!) Me dá pavor só de pensar em como vocês vão tomar decisões na vida, como vão desenvolver os critérios de juízo, como vão compreender o Evangelho, como vão fazer diferença no mundo!”
– “Ora, mãe! Até o superior do Pe. João Maria Vianney achava que ele era burro e ele é hoje o patrono dos sacerdotes… ”

A mãe atônita:

– “Meu Deus! Não acredito! Você já ouviu falar de alguém que não cai no vestibular!” E, refazendo-se para novo ataque: “É, mas não estou falando de ser inteligente ou não. Isto, graças a Deus vocês todos são. Todos puxaram à mãe neste ponto. Estou falando de ler, mergulhar em um mundo muito além do seu vestibularzinho, muito além da bitolação binária do seu computador, muito além do que a TV lhe ensina, se é que ensina alguma coisa que preste! Estou falando, filho, de alma, de horizontes largos, de um olhar sobre o passado para poder analisar o presente e viver o futuro…”
“Essa última foi demais! ‘Olhar sobre o passado para analisar o presente e viver o futuro’?!? Tenho que sair dessa rápido!”, pensa o filho, montando rapidamente uma última estratégia para acabar o papo. A mãe, inocente quanto ao ataque que se aproxima, continua:
– “Estou falando de um mundo onde você poderá partilhar da experiência de outras pessoas, desenvolver seu senso crítico, servir mais a Deus com os talentos que Ele lhe deu… ”
“Perigo! Perigo!”, soou a campainha anti-lição-de-moral-de-pai-e-mãe instalada no cérebro do rapaz. Era a hora do golpe final. Agora era tudo ou nada, e “nada” significava um monte de livros na cabeceira dele na manhã seguinte com um bilhetinho assinado aquele irresistível “Beijo, mamãe”. Atacou solene, caprichando no português:
– “É, mãe, eu sei, eu sei! Há (com “h”) tantos rapazes como eu desejando estudar e no entanto têm de trabalhar, tantos que passaram tanta fome que não têm como absorver (com “r”) o que lêem (com dois “e”), tantos à mercê…
– “‘A’ craseado!”
– “É, eu ia dizer isso mesmo: tantos à mercê do que os outros pensam ou acham, sem opiniões próprias, sem
critérios de juízo, andando pela cabeça dos outros, como insetos hemípetros da fanu1ia dos Pediculídeos…”
– “Insetos o que?”
– “Insetos hemípetros da família dos Pedulídeos: piolho, mãe, piolho! Você não leu o dicionário, não sabe que
insetos hemípetros que andam pela cabeça dos outros são piolhos?”

A mãe percebeu que tinha caído em uma armadilha, Antes que soubesse o que fazer aceita o beijo que o filho lhe sapeca na testa, vitorioso. No dia seguinte, porém, o montinho de livros estava lá com o irresistível: “Beijo, mamãe”,

*********

Na poltrona do avião, o filho rabisca, apressado, um bilhete:

“Querida Mãe,

Beijo! Como está a pressão do papai? E a sua artrite? Tenho orado para que fique voa e possa voltar a tocar piano breve. Quando tiver féria quero ouvi-la tocando o Traumerei de Shunann. Ninguém toca como você.
Faz (no singular, porque significas”há”) oito horas que estamos viajando. O avião acaba de passar dobre o Estrito de Gibraltar. Breve estaremos pousando em Milão. Passo dois dias lá com a mana, trinando nosso italiano, e depois vou para Pequim. O clima lá, graças a Deus, é excelente nesta época do ano. Isso vai facilitar nossa missão de evangelização. Quem diria que você tinha razão quando dizia que nós latino-americanos, iríamos evangelizar a China! Houve tantas mudanças no cenário político mundial nestes últimos anos, não é verdade? Graças a Deus vou poder usar o inglês e o francês até aprender a língua deles. Creio que minha medicina vai me ajudara a me aproximar deles um pouco também.

Conto com suas orações e as do papai.

À mãe (com crase) mais isenta e fiel do mundo, um beijo,

Seu filho

PS:Perdam pelaz brincadeiraz cum u purtugueis.
PPS:A Baixinha manda mil beijos.

*****************

A mãe beija o bilhete e o coloca em uma velha caixa de papelão, onde estão colecionados muitos outros, que um dia serviram como mercadores de livros:

“Filho, sei que você vai adorar estes livros. Beijos, mamãe.”

Form 2003


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