Escravo ou Senhor? Parece até engraçado o que vou escrever, mas é trágico: A ganância não faz sentido. Como assim? É simples. Por que eu me esforçaria por uma vida, se nunca vou usufruir com totalidade o que vou conseguir nesta terra? Não estou aqui criticando a livre Iniciativa ou o do desejo de progredir. Todos temos o desejo de uma vida melhor e o anseio por um certo conforto. Não é normal procurar o sofrimento ou lutar para ter uma vida ruim.
O problema está na ganância, o desejo descontrolado de ter cada vez mais — não por necessidade, mas pelo simples gosto de possuir — tentação que o próprio Cristo enfrentou no deserto. Para quê acumular coisas que nunca irei usar? Para quê uma fortuna se não irei usufruir dela e nem repassar para os meus herdeiros?
Quando deixamos o patrimônio que construímos para outrém, ainda há uma certa lógica, mas o ganancioso quer tudo para si. A usura, quando se apodera de um coração, torna-o um buraco negro, atraindo tudo para dentro, nunca cansando de se encher, alimentando o desejo insaciável de querer sempre mais.
A cobiça cega o homem e o faz enxergar o outro como um meio de tirar vantagem: se ele não me faz lucrar, não tem nenhuma serventia. E essa linha de pensamento que leva em consideração unicamente os bens materiais, destrói os relacionamentos conjugais, de amizade e até os laços de família de sangue. Quantas famílias se separaram por herança, por um cargo, ou por um título de honra?
Esse vício nos faz instrumentalizar qualquer pessoa, fazendo com que enxerguemos aqueles que estão ao nosso redor de acordo com seus respectivos graus de lucratividade, de acordo com as vantagens que obteremos deles. Assim, podemos machucá-los profundamente, uma vez que isso rebaixa o ser humano nível animal e exclui da sua essência aquilo que é humano: o amor, a entrega livre e gratuita unicamente em vista do bem do outro.
Vamos para um caminho mais prático
Para que bilhões na mão de uma pessoa se ela não tem tempo de vida para degustar esse prêmio? Para que uma coleção, seja lá do que for, se não uso nem metade do que possuo? A posse, o bem em si mesmo, perde toda a necessidade de existir, ou seja, se tenho algo, e essa coisa não é usada para o que ela deveria existir, ela perde o objetivo para o qual foi criada.
Vamos a um exemplo: começo a colecionar carros, com meu dinheiro começo a comprar carros, e isso vai me exigindo mais dinheiro do que só veículos, porque tenho que guardá-los, conservá-los, protegê-los, preciso de mais terreno, de galpões, de mecânicos, de seguranças… e quanto mais cresce minha paixão, mais aumenta a necessidade de recursos para manter esse meu “hobby”, e, por isso, tenho que trabalhar mais, conviver menos com minha família e amigos, curtir menos até a mim mesmo, porque a minha vida agora gira em torno de meus automóveis.
O detalhe é: não servem para nada porque nem tenho tempo de dirigir todos os veículos que tenho, e os meus amados carros passam anos e anos só pegando poeira. Aquilo que eu colecionei, de forma desapercebida, tornou-se meu patrão, ou melhor, meu dono, e eu tornei-me escravo de coisas sem vida.
Exagerei?
Quantas vezes exigi de meus pais ou de outras pessoas produtos e marcas que estavam “na moda”? Quantas vezes me endividei, prejudiquei minha saúde, deixei de estar com pessoas que me amam, para conseguir um bem ou pelo menos para parecer alguém que eu realmente não era, ou pertencer a uma classe social mais abastada que a minha?
Já deixei de comer para ter um telefone caro? Já deixei de fazer coisas certas e lícitas para mim e minha saúde porque o foco da minha vida eram os bens? Essas são simples perguntas que, em escala maior, revelam um mesmo problema: minha visão de mundo, sobre mim mesmo e sobre os outros, se reduz a títulos e valores.
Redes Sociais são especialistas nesse tipo de coisa. Ostentação é o termo que se criou para denominar esse tipo de tendência, onde, para mostrar meu valor como pessoa, preciso ter coisas caríssimas (que não quer dizer que são boas), preciso consumir coisas consideradas luxuosas, “de rico”, como popularmente se diz.
Voltemos às perguntas
Se eu mudar a marca da minha camisa, mudo meu caráter? Se meu carro não for novo, deixo de ser uma pessoa interessante? Se não mostrar fotos das minhas viagens, perfumes, compras, sou uma pessoa fracassada? Se você pensa assim, sinto em lhe dizer: você é ganancioso, embora tenha milhares ou milhões de fãs, seguidores, seja lá o que for.
É triste não se enxergar, e muito menos aos outros, como algo além de um cabide, onde se penduram marcas, que, inclusive, usam os consumidores tanto para vender mais, como para influenciar novos compradores… tanto que basta ter um pouquinho a mais de seguidores, que as ofertas começam a aparecer, não é?
O poder que as coisas têm sobre você
Vamos devagar, não sou defensor de pobreza para todos ou produtos sem qualidade, ninguém é. O problema não é o que você usa sobre si, mas o poder que as coisas têm sobre você. Elas definem o seu humor? Definem sua personalidade? Definem se outra pessoa é interessante ou não? O valor da conta bancária define se outra pessoa tem valor? Isso coisifica aquilo que é sagrado, único e irrepetível, a dignidade da vida de cada ser humano.
A ganância nos torna dependentes daquilo que nós mesmos procuramos. Normalmente, quando encontramos o que desejamos, toda a busca cessa imediatamente e começamos a nos deliciar com nossa conquista, já o ganancioso não tem essa lógica, é só ter para si, juntar riquezas incansavelmente, nunca dividir nada com ninguém.
Tudo isso para quê? Acho que a maioria deles nem sabe o porquê de tanto sacrifício e acúmulo. Como falei acima, não há fruição dos bens nesta vida, e por não partilhar, não haverá também na outra, que o diga Lázaro (Cf. Lc 16, 19-31), e tudo que acumula, não serve para nada se não é usado, ou vai ficar para os herdeiros, mas para o cobiçoso não fica.
Sem nada você vem, sem nada você volta
Nossos vícios são como uma lente diante dos nossos olhos, enxergo a vida e as pessoas através deles, ou seja, se sou mentiroso, ninguém fala a verdade para mim; se sou uma pessoa maliciosa, todos têm segundas intenções para comigo, e por aí vai. Agora, imagine a cabeça de um ganancioso: todo mundo quer o dinheiro dele, o cônjuge sempre gasta demais, os filhos são esbanjadores, amigos não existem pois só estão com ele porque ele é rico, não dorme em paz nunca porque tem medo que alguém roube suas riquezas.
Não sei nem como arranjou esposa porque, aos seus olhos, ela era interesseira. Isso é um pesadelo, viver sem confiar em ninguém, não se sentir amado por ser quem é, mas só pelos bens que possui… é uma tortura, para si e para quem está ao redor, por mais rico e luxuoso que seja o lugar.
Sem nada você vem, sem nada você volta; e nesse intervalo que se chama vida, usei meu tempo para quê? Ajudei ou explorei? Estendi a mão ou a fechei? Socorri ou deixei morrer à míngua? Mesmo que a eternidade não existisse, seria esse o legado que quereríamos deixar para a humanidade?
Tom Jobim já dizia: “é impossível ser feliz sozinho”. Nessa ótica entre a usura e a partilha, não dá para entender como alguém sentiria felicidade enquanto os outros, próximos a ele, carecem até mesmo do básico: eu aparentemente estou bem, numa vida confortável, mas tantos passam fome ao meu redor, outros não têm onde morar ou assistência médica…
E nós, fazemos o quê? Viramos o rosto para não ver, e a consciência não pesar? Cada um deve cuidar da sua vida, só isso? Se sim, realmente estamos desumanizados, envenenados por um materialismo perverso que nos isola e divide, e nossa riqueza e conforto são nosso deus.
Por Uerlley Soares