Trata-se de um momento oportuno para que os pastores da Igreja Católica, na América Latina e no Caribe, levem até Maria “as alegrias e esperanças, tristezas e angústias” dos povos deste continente. Se lermos o Evangelho de Lucas, o evangelista da infância de Jesus, nos daremos conta que, por duas vezes, ele insiste no fato de “Maria guardar e meditar no coração todas essas coisas” (Lc 2, 19; 2, 51).
Os dois verbos utilizados adquirem neste caso um significado todo especial. Guardar e meditar significam “fazer memória dos acontecimentos”. É dar-se conta que, por trás das aparências, às vezes banais, os fatos carregam um sentido profundo e quase sempre oculto. Mais do que o olhar sociológico, é o olhar da fé que predomina. Maria percebe no desenvolvimento daquele Menino, que “crescia em sabedoria, estatura e graça”, o desígnio da vontade de Deus (Lc 2, 52). Saber ler a história humana numa perspectiva de fé é distinguir nela as digitais da ação divina.
Maria guardava e meditava em seu coração. É o mesmo que dizer que ela digeria e reinterpretava os acontecimentos cotidianos à luz da Palavra de Deus. O coração de Maria, aberto à ação do Espírito, vai além do olhar. Contempla aquilo que a vista não é capaz de alcançar. E por isso mesmo se abre também às novidades da história, particularmente à Boa Nova do Reino de Deus. Maria, mulher e mãe – duplamente atenta! Atenta ao Filho de Deus que vem armar sua tenda entre nós e atenta à agitação febril da sociedade de ontem e de hoje.
Uma rápida olhada às aparições de Maria ao longo da tradição cristã bastará para mostrar sua sensibilidade maternal para com os filhos mais marginalizados e necessitados. Tomemos três exemplos bem conhecidos: em Portugal, Nossa Senhora de Fátima se revela a três pastorzinhos, filhos de pobres camponeses, então vítimas de uma exploração secular; no México, Nossa Senhora de Guadalupe aparece a um pobre indígena chamado Diego, também ele representante de todo um povo historicamente saqueado; no Brasil, a imagem de Nossa Senhora Aparecida, encontrada por três pescadores pobres, é de cor negra, um silencioso protesto contra a condição dos escravos africanos.
Nos três casos – e a lista poderia estender-se – Maria volta-se preferencialmente para aqueles que a sociedade despreza e exclui. É o coração da mãe, que ama a todos os seus filhos e filhas, mas dedica especial atenção àqueles que têm sua vida mais ameaçada. Cabe aqui uma outra observação sobre maio e Maria. Aos 13 dias desse mês, data da assinatura da Lei Áurea, comemora-se no Brasil o Dia Nacional de Luta contra o Racismo. Apesar da lei, o estigma da escravidão continua abrindo feridas no corpo e na alma do povo negro.
Caminho, Verdade e Vida
Estas dores, ao lado de tantas outras, devem bater às portas da V Conferência dos Bispos da América Latina e Caribe. Aos pés de Maria, no Santuário de Aparecida, os pastores da Igreja se prostram para refletir, rezar e celebrar. De um lado, os bispos têm a tarefa de avaliar os passos que vêm sendo dados pelo conjunto da Igreja nos diversos países deste continente, países marcados pela pobreza, a violência e o sofrimento, mas, ao mesmo tempo, pela resistência, solidariedade e esperança. De outro lado, a missão dos bispos é atualizar uma leitura da realidade latino-americana e caribenha, detectar seus principais desafios e encontrar novas luzes para a caminhada pastoral de toda a Igreja. O grande farol a iluminar a V Conferência é a frase do próprio Jesus: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida!” (Jo 14, 6).
Convém a esta altura fazer memória das conferências anteriores, ainda que em termos muito genéricos: no Rio de Janeiro, Brasil, em 1955, tratava-se antes de tudo de consolidar a própria unidade e colegialidade dos bispos de todo o continente. Em Medellín, Colômbia, no ano de 1968, a Igreja se dispõe a ouvir “o grito que clama aos céus” e assume a “opção preferencial pelos pobres”, ao mesmo tempo em que abre novos espaços para a atuação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Na cidade de Puebla, México, em 1979, os pastores se ocupam da evangelização no presente e no futuro da América Latina e Caribe, reconhecendo nos pobres da região os vários “rostos sofredores de Cristo que nos questiona e interpela”. Finalmente em Santo Domingo, República Dominicana, no ano de 1992, predomina a preocupação por uma nova evangelização, “com novos métodos e novos conteúdos” – como dizia o papa João Paulo II, que leve em conta a cultura de nossos povos, bem como sua promoção humana.
Expectativas
E agora? Quais as expectativas em torno da V Conferência, em Aparecida? Primeiro que a Igreja, a exemplo de Maria, saiba preservar seu coração materno, disposto a ouvir e solidarizar-se com os clamores dos povos deste continente, apoiando seus movimentos e lutas pela vida.
Depois, que dê continuidade ao tom profético das conferências passadas, que foram verdadeiras caixas de ressonância das causas populares. Por fim, que possa abrir espaços cada vez mais amplos para as mulheres e os jovens, os leigos em geral, num engajamento crescente na pastoral, na ação social e política e na defesa dos direitos humanos.
A esse respeito, vale a pena recorrer uma vez mais ao testemunho de Maria. De um ponto de vista vocacional, ela é a Maria do sim! Basta ter em mente sua aceitação ao Plano de Deus, sua presença silenciosa ao pé da cruz de seu Filho e sua caminhada com as comunidades cristãs da Igreja nascente. Mas ela é também a Maria do não! No poema do Magnificat, ela se insurge energicamente contra todo tipo de exploração e de humilhação. O acento unicamente sobre a Maria do sim pode servir para justificar a submissão da mulher em nossa sociedade fortemente machista, e inclusive na Igreja. Daí a importância de resgatar a Maria do não, mulher forte e destemida que não hesita em “derrubar os poderosos de seus tronos e elevar os humildes” (Lc 1, 52).
Aí está uma luz para os bispos da V Conferência. No espírito do Concílio Ecumênico Vaticano II e na tradição de Medellín, o sim ao projeto de Deus na América Latina e Caribe inclui um corajoso não ao modelo econômico neoliberal, cujos efeitos vêm penalizando setores cada vez mais amplos de nossas populações. As ditaduras militares em nosso continente foram substituídas pela ditadura do mercado global. Esta última, tanto quanto as outras, exige uma atitude evangelizadora firme e vigorosa. O anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo não pode ser desvinculado da denúncia de condições infra-humanas em que hoje vivem milhões de povos indígenas e negros desterrados, imigrantes clandestinos, camponeses “desplazados”, mulheres, jovens e crianças vítimas do tráfico e da exploração sexual, desempregados, subempregados ou submetidos a trabalho escravo e degradante, sem-terra e sem-teto, enfim, toda a multidão dos “sem” que dos porões da América Latina e Caribe clama aos céus.
Alfredo J. Gonçalves é sacerdote carlista e pároco da Parroquia Personal de los Migrantes, Ciudad del Este, Paraguai.
Fonte: Catolicanet.com