Formação

Missão de Jesus

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“Deus não reina quando se fala, mas só quando se atua” (1Cor 4,20)

Introdução

Conheci um pai de família que era muito bom. Tinha cinco filhos ainda pequenos, trabalhava muito e fazia um trabalho na comunidade. Preocupou-se também com questões sociais e políticas, não só de sua comunidade, mas foi se estendendo cada vez mais, abrangendo o Estado e o País. Os finais de semanas eram para ocupar-se com reuniões, assembléias e viagens. Não foi promovido no trabalho, sendo mantido precariamente na firma. Os filhos foram crescendo sem a atenção e o acompanhamento do pai. Os cuidados e a intervenção materna não substituíram a ausência do pai. Diante de tantas necessidades pelas quais passaram durante a infância, quando grandes, passaram a odiar a atuação social do pai, fechando-se no individualismo.

Situações semelhantes repetem-se freqüentemente nos mais diversos âmbitos da vida. A sabedoria, que é a arte de saber viver, longe está, muitas vezes, na forma de construirmos nossas relações, harmonizando a nossa vida pessoal, o trabalho e a extensão de nossa ação na sociedade, como ser religioso, social e político.

Missão é Ação pela Identificação

A Igreja de Jesus Cristo é católica, isto é, universal, porque é chamada a construir a comunidade do povo de Deus em todos os lugares, exercendo ações concretas, participando ativamente, com as “mãos na massa”, na realização do Reino do Pai de todos. Uma comunidade que continue o jeito de ser e de se relacionar do Mestre, portanto uma comunidade solidária e fraterna onde tudo se partilha. A adesão ao Modelo é tamanha que as pessoas que dela estão imbuídas, sentem a necessidade de estender a rede, alcançar sempre mais espaços, chegando aos “confins do mundo”(At 1,8). Foi o que Paulo fez logo após a sua conversão. “Saulo esteve alguns dias com os discípulos em Damasco, e imediatamente, nas sinagogas, começa a proclamar Jesus, afirmando que ele é o Filho de Deus” (At 9,20).

A Missão no local onde se encontra significa agir concretamente, participar ativamente, ajudar transformar a realidade concreta de pessoas, de grupos, de sociedades, anunciando a Boa Nova, antes de tudo pelo testemunho.

Se fizermos um extrato do epistolário paulino, podemos dizer que ele trabalhou as questões humanas muito de perto. Batendo a tecla do comportamento pautado segundo o Espírito, não deixando-se levar pela carne, Paulo enfatiza a caridade como dom maior, onde o dom da profecia, da ciência, da fé e do martírio não seriam nada sem o amor (1Cor 13). “Deus é amor”(1Jo 4,16) e, viver segundo o Espírito é entrar no mistério do Amor que é o próprio Deus. É entrar no ritmo de Deus, adentrar no seu espaço misterioso, porque os seus critérios, os seus julgamentos não são os dos homens. É sabedoria infinita, é eternidade. Não existem limites e nem tempo, é diálogo que não se interrompe. Viver segundo o Espírito de Jesus é viver já, na morada estabelecida por Jesus e o Pai (cf Jo 14, 21). É a Ssma Trindade que monta a sua “tenda” em nós mesmos. É comunhão na Trindade, é simbiose como conseqüência de uma relação mística profunda, possibilitando instaurar uma relação nova pautada pelo amor, em vista da construção de uma sociedade de amigos, de irmãos.

É maravilhoso perceber esta simbiose de Paulo com Jesus Cristo ao ponto de se identificar com o próprio Cristo, quando ele, superando a teologia da justificação só pela Lei, convertendo-se radicalmente para entrar numa relação de gratuidade de Deus, alcança a verdadeira liberdade dos filhos de Deus, e exclama: ” Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20). Imerso no mistério de relação de gratuidade, a transformação se revela na convicção profunda que ganha força e ardor que nada mais poderá detê-lo. Tem a certeza de que sua ação é a mesma de Cristo, convence-se de que a missão do Pai confiada a Cristo é doravante a sua missão. No seu ardor e zelo não se importa se é reconhecido e recompensado ou não pelo trabalho. Cumprir a missão recebida é um compromisso que ultrapassa todas as formalidades legais de reconhecimento, de remuneração, de direitos. A relação que se instaura é incompreensível para a lógica humana. O importante é emprestar a voz para continuar anunciando o evangelho, emprestar os pés para continuar devorando quilômetros e atingir maior número de pessoas, doar a própria vida para estar totalmente a serviço da evangelização. “Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; é, antes, uma necessidade que se me impõe. Ai de mim se eu não anunciar o evangelho!” (1Cor 9,16). Um Evangelho não pregado nas cátedras, nos púlpitos, por um mestre que expõe seu conhecimento e sabedoria, mas sim de missionário que se faz trabalhador junto dos trabalhadores, que se incultura pela identificação com o povo. “Trabalhamos de noite e de dia, para não sermos pesados a nenhum de vós. Foi assim que pregamos o evangelho de Deus” (1 Ts 2,9).

Missão como conseqüência de um ENCONTRO

Missão é ação generosa, gratuita, que parte de uma motivação interior e, por isso, o missionário e missionária são movidos, são conduzidos por uma força que nada poderá contê-los, nem os desafios, resistências, perseguições ou mesmo ameaças.

Missão é resgatar as sementes do Verbo em cada cultura, em cada época, revelado na cultura de solidariedade em vista da utopia de um novo céu e uma nova terra. É o anseio por estabelecer uma nova ordem sempre presente em cada cultura, cada época; é “o sonho de todos viverem a vida em paz, sem posse e, por isso, sem ganância ou fome. Nada pelo qual matar ou morrer. Uma irmandade de homens, dividindo todo o mundo” ( J. Lenon- Imagine).

A missão de Jesus recebida do Pai esteve sempre presente nos anseios mais recônditos de cada ser humano, apesar de, na maioria das vezes, ser abafada pela cultura de consumo e de morte. Como Jesus que veio realizar a missão recebida do Pai de anunciar a Boa Nova aos pobres, proclamar a remissão aos presos e aos cegos, a recuperação da vista, para restituir a liberdade dos oprimidos (cf. Lc 4, 18-19), pregar e expulsar os demônios (Mc 3,15); assim o missionário, a missionária, hoje, assumem a luta que Jesus iniciou, contra os poderes do mal que empobrecem a vida do povo.

A razão pela qual Jesus veio ao mundo deve estar sempre presente na vida do missionário, da missionária, como realizadores do projeto do Pai: “Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Por isso, como conseqüência lógica, o seu lugar social é sempre onde a vida está ameaçada, por causa do sistema econômico injusto que exclui e marginaliza, empobrecendo o povo cada vez mais, e onde o sistema religioso já não revela o rosto do Pai, onde o Templo é reduzido a um supermercado, a um lugar de show gratuito, de manifestações de emoção superficial e que anestesia o ser humano, deixando de ser lugar de oração, de anúncio da Palavra, de alimento da comunhão fraterna, “memória” de Jesus.

Missão é “esvaziar-se”

Identificando-se com Jesus, o missionário é convidado a ser pobre (Lc 14,33). Sonhar com status, poder, prosperidade, salários, carro último ano, conforto e bem-estar que a religião do consumo prega, choca profundamente com a insistência de Jesus para um trabalho gratuito, despojado, apoiado na providência de Deus (Lc 9,1-5). Se olharmos um pouco a questão da proveniência de uma maioria de nós chamados à vida consagrada e presbiteral, não nos esquecendo de nossas raízes, deveríamos manter uma postura popular e simples, sem encontrar dificuldade na nossa inserção à realidade do povo, encarnando-nos na cultura nossa, que é a cultura deles (cf 1Cor 1,26-31). O esvaziar-se como Jesus, que assumiu a nossa condição humana (Fil 2,7), é o processo pelo qual todo missionário deve passar. Fazendo-se pobre, ele é enviado aos empobrecidos. Somente fazendo a experiência de pobreza junto aos pobres, é que o missionário vai sentir a dureza da pobreza, fruto da injustiça, podendo receber a iluminação e a força necessária para uma caminhada libertadora (cf Ex 3, 7-10).

O missionário, a missionária, é alguém, portanto, que se converteu como Zaqueu (Lc 19,1-10). Zaqueu vê Jesus e se converte, muda de vida, aderindo às suas exigências. É como a Samaritana (Jo 4,5-52) que, no diálogo com Jesus pede a água viva, e é introduzida no mistério da missão do Mestre e, envolvida pelo Espírito de Jesus, sai correndo, deixa os seus cântaros e vai anunciar o Messias que ela acabou de encontrar. É ainda, como Maria Madalena (Jo 20,17) que viu Jesus, e sai correndo para anunciar aos discípulos a ressurreição do Senhor.

O missionário, a missionária, é como um São Francisco Xavier, um São Francisco de Assis, Teresa d´Ávila, João da Cruz, Madre Teresa de Calcutá, o bispo Oscar Romero, Santo Dias e tantos outros que doaram e continuam a consumir a vida no meio do povo, atuando na realidade, ensinando a fazer o mesmo que fez Jesus, na realidade convocada pela universalidade da missão.

Missão é revelar o rosto do PAI

A missão é universal porque a mensagem de Jesus é universal. Ele revela a todos o rosto do Pai: “Quem vê a mim vê o Pai” (Jo 14,9). Jesus, a revelação do Pai, veio trazer a salvação a todos. E esta salvação deve ser levada, anunciada a todos, até os confins do mundo, para que todos sejam a expressão viva do Pai: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48). O missionário, portanto, deve viver e trabalhar de tal modo, que se torne realidade, o traço do rosto do Pai escondido dentro de cada um de nós e, aparecendo para fora se torne uma Boa Nova para todos. Convertido e transformado pelo toque do Espírito, o missionário é movido pelo fogo que arde interiormente, inquietude que o impulsiona a operar o querer de Deus. Ele prega a justiça e o direito. Anuncia paz pregando a fraternidade, a solidariedade, o amor e o perdão.

O Brasil, considerado um dos países mais ricos, com maior potencial em riquezas naturais, extensão de terra, volume de água doce, riquezas minerais, biodiversidade, é um país onde quase 40 milhões de pessoas passam fome, onde a criminalidade armada, o narcotráfico, a prostituição, o desemprego, o analfabetismo apresentam, um índice gritante. É um país em que o capitalismo selvagem, pela concentração de terras, de riquezas nas mãos de poucos, onde muitos corruptos se dizem cristãos, escandaliza a todos. É um país em que as fraudes, as corrupções e a impunidade enfraquecem o sistema de segurança, desautorizando a sua ação.

É preciso o sal e a luz do Evangelho na vida de muitos para que se transformem em Boa Notícia, revelando os traços do rosto do Pai na cidadania como um direito de todos.

Missão é coerência, é testemunho, é vida que se faz Vida. Missão não é só poesia, não é ilusão, não é fantasia, não é somente sonho. Missão é se envolver nas rudezas da realidade que anseia pelo dia da libertação. Missão é ato redentor! Missão é preferir sujar as botas, percorrendo as ruas poeirentas ou lamacentas para estar com o povo, como Sérgio Vieira de Melo porque, segundo ele, “ser um homem do sistema não significa ser um burocrata que passa a vida sentado num gabinete”.

A partir do Vaticano II, a Igreja no Brasil, diante dos desafios pastorais, em vista da revitalização das comunidades, tem proposto sempre Projetos de Evangelização em âmbito nacional, sem contar os projetos que cada Igreja Particular elabora e convoca o Povo de Deus para a sua participação. Podemos trazer à memória o Projeto que apenas encerramos em preparação à celebração do Jubileu dos 2000 anos de cristianismo, o Projeto SINM, Ser Igreja no Novo Milênio. Um Projeto de Evangelização sério, orgânico, sistemático, fundamentado nas quatro exigências inspiradas no jeito de evangelizar de Jesus, no SERVIÇO, DIÁLOGO, ANÚNCIO e TESTEMUNHO DE COMUNHÃO, com um conteúdo que, se trabalhado, poderia ter enriquecido os nossos católicos e, revigorado a fé de todos com uma verdadeira Catequese. Onde o Projeto foi assumido, a avaliação foi muito positiva com o crescimento da comunidade, que utilizou este sólido instrumento na missão evangelizadora. Por outro lado, considerável número de comunidades nem chegaram a tomar conhecimento do projeto. Existem também várias iniciativas pastorais e sociais em defesa da vida, porém, tanto nas comunidades paroquiais, como nas organizações, faltam parceiros na missão para nadar contra a corrente de uma sociedade, cujo sistema privilegia alguns e exclue a maioria.

Jamais a humanidade pôde sentir-se tão próxima. Trinta anos atrás ouvíamos falar que o mundo se tornaria uma aldeia global. Hoje, é uma realidade. Jamais foi possível sintonizar simultaneamente com os quatro cantos do mundo e nos sentirmos tão próximos. Tudo o que acontece, ou se faz, torna-se notícia num segundo, visualizado em todos os continentes. O mundo dos sons, das imagens, aperfeiçoando a sua tecnologia, se multiplicou e as distâncias se encurtaram, ultrapassando quaisquer fronteiras; as possibilidades se multiplicaram para fazer as pessoas saírem do isolamento e obterem todas as informações possíveis e imagináveis, num segundo. Ao mesmo tempo, o desafio da distância entre os privilegiados que são poucos e os excluídos que são a maioria continua aumentando cada vez mais.

Vivemos a era planetária. A universalidade não é mais um problema. Vivemos dentro dela. As fronteiras que nos separavam pelo subdesenvolvimento foram vencidas pela tecnologia. O modelo tradicional foi superado e a metodologia de um trabalho corpo a corpo vem substituído pelo sistema imperceptível, que não ocupa espaço e nem tempo. É transmissão direta, simultânea de sons, imagens e mensagens. A matéria ministrada pelo professor universitário do sul é assistida pelos alunos do norte, simultaneamente, pela TV.

Na era planetária, no mundo universalizado, mas também excludente, perguntaríamos qual seria o discurso de Jesus, hoje, na era da cibernética.

Conclusão

A história inicial se relaciona muitas vezes à preocupação excessiva dos missionários e missionárias sonharem sempre com outro mundo a ser evangelizado, quando a evasão de nossos católicos para outras seitas ou igrejas, a falta de engajamento e participação de uma maioria dos católicos de consumo de sacramentos, fazem deduzir a ausência de um trabalho de primeira evangelização. Sentimos a falta de engajamento de um número maior de evangelizadores e evangelizadoras, já que se constata que grande parte dos católicos não são evangelizados, se mantêm na Igreja por alguma devoção, por hábito ou tradição, sem raízes profundas na sua fé para o embate de um vento mais forte. As atuais Diretrizes da Ação Evangelizadora fazem menção à postura da Igreja no diálogo com estas pessoas, que devem sentir-se sempre acolhidas. Todas as oportunidades devem ser aproveitadas para uma reaproximação, e posterior trabalho de participação e engajamento na comunidade.

O missionário contemplado com os benefícios que Deus colocou como dom para ser revelado e entregue ao povo, é o enviado de Deus. A convicção de ser enviado inflamará o missionário e a missionária de ardor e generosidade. Reconhecendo a sua pobreza e limites, confiará no poder de Deus, para ser o reflexo do Deus de Jesus Cristo, Deus Pai e Mãe, oferecendo a própria vida na construção de um povo de irmãos e irmãs.

Ir. Cecília Tada, CMST

Fonte: CNBB


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