À luz destas ideias, vemos que é preciso distinguir dois tipos de moralidade primitiva, imperfeita: uma, a do homem nos primórdios da história; é compatível com elevada santidade, desde que o indivíduo em nada contradiga a sua consciência. Outra é a moralidade imperfeita do homem que teve conhecimento do Evangelho: para este indivíduo, repetir o que era praticado pelos justos do Antigo Testamento seria ilícito, já que a consciência iluminada por Cristo tem muito mais clara intuição do bem e do mal, é mais exigente.
Ao passo que outrora a imperfeição da moralidade provinha do Estado infantil da consciência humana, ela hoje proviria de decrepitude ou Degenerescência culpável. Há, numa palavra, o primitivo ascendente (certos atos praticados no Antigo Testamento) e o primitivo decadente (os mesmos atos, caso sejam reproduzidos por quem de algum modo conheceu Cristo). Não há dúvida, o que hoje é pecado contra a lei natural sempre foi hediondo aos olhos de Deus (o mal não depende de mera convenção humana), mas não sempre foi percebido como tal pelos homens, já que a sua consciência moral só aos poucos, através de séculos, atingiu o pleno desenvolvimento.
Em conclusão: Deus ouve por bem fazer do homem seu filho, chamando-o ao consórcio íntimo da vida e da felicidade divinas, em vez de o deixar na qualidade de servo; em lugar da lei e do espírito de temor, que precederam a vinda de Cristo, quis dar-lhe o espírito de amor. Ora está claro, que um pai tem, em relação ao filho, exigências muito mais íntimas e delicadas que as do patrão em relação ao servo. Noblesse exige, o que quer dizer: o homem se aperfeiçoou, foi dignificado; por conseguinte, a consciência lhe pede mais do que pedia outrora, a fim de que se mantenha a altura do seu destino sobrenatural. Feliz todo aquele que se sujeita a tais imperativos, pois "servir a Deus, servir à lei de Cristo, é reinar" ! 14
O significado destas considerações se patenteará ainda melhor no capítulo seguinte, que analisará alguns pontos particulares da moralidade do Antigo Testamento.
Haja vista apenas o caso de Abraão, que, dada a esterilidade de sua esposa Sara, se une tranqüilamente à escrava Agar, afim de Ter prole. É, aliás, Sara quem estimula Abraão a tal feito (cf. Gn 16,2s). O filho
Assim gerado, Ismael, satisfaz o Patriarca; Deus mesmo promete que a Ismael dará uma posteridade inumerável, sinal de benção (cf. Gn 16, 10; 17, 20).
A respeito deste episódio, veja-se a pág. 112.
Como exemplo, vem o caso de Davi, que, após duplo crime Repreendido pelo profeta Natã, reconheceu a culpa (cf. 2Sm 12, 11-14).
Também Saul se penitenciou quando objurgado por Samuel (cf. 1Sm 15, 24s.). Algo de semelhante fez o sacerdote Heli (cf. 1Sm 3,18).
O incesto de Amnon com sua irmã Tamar é nitidamente relatado como ato pecaminoso (cf. 2Sm 13, 1-22). O mesmo se diga da inveja de Saul contra Davi (cf. 1Sm 19, 25-30).
Ao Narrar o proceder fraudulento de Jacó, que usurpou a benção Reservada a seu irmão Esaú, o autor sagrado dá mais de uma vez a entender que se trata de um feito condenável:
Rebeca e Jacó reconhecem que se o artifício for descoberta prematuramente, atrairá maldição, e não benção (cf. Gn 27,12s.).
Isaque, ao perceber a fraude, censura Jacó (cf. 27, 35);
Rebeca é punida, pois deve mandar partir o filho predileto para a Mesopotânia (cf. 27, 42-45);
Jacó também é castigado, porque tem de passar longos anos no exílio, após os quais teme a vingança de seu irmão Esaú (cf. 29, 28-30;32, 10-13);
Além disto, o próprio Jacó é, por sua vez, enganado por seu tio Labã (cf. 29, 25 ) e por seus filhos, que dele conseguem separar o filho bem-amado José (cf. 37, 25-36).
Executa-se apenas a Bem-aventurada Virgem Maria.
S. Ambrósio (+ 397) notava a respeito da penitência de Davi
(2Sm 12, 11-14):
"Davi pecou – coisa que costumavam fazer os reis; mas submeteu-se à penitência, chorou, gemeu – coisa que não costumavam fazer os reis.
Confessou a culpa, pediu indulgência, prostrado por terra deplorou a desgraça, jejuou, orou… Aquilo que os simples cidadãos se envergonham de fazer, o rei não hesitou em realizá-lo abertamente… Que tenha caído em falta, é obra da natureza; que a tenha apagado (pela penitência), é obra da virtude (sobrenatural)" (Apologia David ad Theodosium Augustum, 2, 6).
S. Paulo fala da philanthropia de Deus, em Tt 3, 4.
7. Note-se a oração do Missal Romano no 26º Domingo do Tempo Comum:
"Ó Deus, Manifestais a vossa onipotência, antes de tudo, compadecendo-Vos e perdoando (…)".
É, de fato, perdoando um sem-número de vezes ao pecador sinceramente arrependido que Deus Manifesta sua inesgotável ou infinita Bondade. A bondade e o amor das criaturas, por mais intensos que sejam, tendem a arrefecer e se extinguir, quando não encontram correspondência.
8. Assim Abraão, ao emigrar para o Egito, diz tranqüilamente que sua esposa Sara é sua irmã, afim de que o Faraó, cobiçando a bela Sara, não venha a matar o marido Abraão (cf. Gn 12, 10-20).
O mesmo Patriarca se une à sua serva Agar, numa espécie de adultério (cf.Gn 16, 1-3). Tem concubinas até o fim da vida. E, apesar de tudo, diz o Gênesis que "morreu em feliz velhice"! (Gn 25, 8)
Davi foi um guerreiro não raro cruel; teve igualmente seu harém. Não obstante, Deus desde cedo o abençoou, prometeu tornar inabalável o Seu trono até que de sua linhagem nascesse o Messias; cf. 2Sm 7, 8-16.
9. É essa relatividade da Moral que professa a moderna "Ética da situação" ou o "Existencialismo ético".
10. O Criador se poderia comparar a um agricultor que costuma lançar sementes na terra, e não plantar árvores adultas, carregadas de frutos.
As idéias desenvolvidas neste item 3 se devem, quanto ao fundo, à Obra de Maritain, Histoire d’Abraham (Paris, 1947).o israelita como era; permitiu, pois, que o povo vivesse, em parte, À semelhança dos demais povos orientais; às práticas antigas não politeístas, o Mestre divino apenas quis insuflar novo espírito, comunicando nobres idéias e aspirações aos israelitas mediante as instituições herdadas dos antenatos caldeus. Assim, fazia com que o povo se fosse elevando espiritualmente, até um dia poder ouvir a mensagem do Evangelho: "Este é o meu preceito: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei" (Jo 15, 12)".
11. A seguinte comparação, proposta por um autor moderno, vem oportunamente ilustrar a doutrina:
"Quando um professor quer influenciar a mente do seu discípulo, esforça-se por descobrir as idéias estranhas e tolas que este possui. Tendo-as percebido, serve-se delas para insinuar aspectos da verdade (…) Ora na Bíblia o Espírito Santo é tal mestre, tal pregador (…) Deus serviu-se das concepções de Israel como de um ponto de partida, embora fossem pouco exatas. Começou (o seu ensinamento) utilizando os conceitos que Israel possuía; aperfeiçoou-os gradativamente a fim de levar o povo a poder receber a Revelação cristã, que significa a plenitude ou a consumação do processo".
O autor prossegue, observando que o Pedagogo Divino não quis apagar o cabedal de idéias religiosas que Israel possuía por ocasião da aliança no Sinai. Não quis romper os laços do povo com o seu passado. Sem intervir por meio de milagres, Deus permitiu que a Teologia e a Moral do Antigo Testamento se desenvolvessem aos poucos, se desembaraçassem lentamente de tradições pouco exatas, crescessem por
Ação da Providência Divina e de revelações especiais.
Cf. J. P. Weisengoff. "Inerrancy of the Old Testament in religious Matters" em The Catholic Biblical Quarterly, 17 (1955), 34s.
12. Tal é, entre outros, o caso de Davi, mencionado à pág. 133. Tal é também o de Moisés e Aarão: embora por seu zelo religioso muito tenham agradado a Deus, foram certa vez incrédulos (cf. Nm 21, 7-12); não obstante, morreram em santa paz com o Senhor.
13. Note-se o caso de Abraão, que não hesitou em deixar sua terra e sua parentela para ir à região desconhecida, à qual Deus o chamava (cf. Gn 12, 1-4). Também não vacilou, quando o Senhor lhe pediu que oferecesse seu filho em sacrifício (cf. Gn 22, 1-18).
14. Cf. Missal Romano, "Oração da Missa pela Paz";