Formação

Mulher, amiga de Deus e santa

 O cenário histórico da aventura teresiana, sua terra natal, é um importante detalhe que nos ajuda a compreender melhor algumas características bem marcantes na experiência de Teresa de Jesus.

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Deus não cria nada apressadamente se isso significar não ter atenção aos menores e melhores detalhes, como quem age sem interesse por aquilo que faz. Deus cria atentamente, tecendo com pressa a história se ela precisar de pressa, mas com paciência e lentidão se esse for o detalhe salvífico. Deus demora e se apressa, não importa. Sempre salva infalivelmente.

Deus pensou na história quando gerou para ela Teresa de Jesus e pensou em Teresa quando cuidou detalhadamente da história que a precedia e isso é especialmente notável quando olhamos para o contorno vital dessa reciprocidade. A Espanha que receberia Teresa deveria mesmo ser providencialmente o século de Ouro e Teresa deveria mesmo ser o ouro da espiritualidade para uma Espanha tão fascinada com a própria glória, com o ouro tolo das suas conquistas passageiras. O tempo mostrou a fumaça que o ouro se tornou, honra espanhola no século VXI, mas emudeceu diante do tesouro indescritível da espiritualidade teresiana, que resiste e atravessa os séculos respaldada pela sua origem: o Senhor, Aquele que não passa jamais, Aquele que basta para sempre.

Entramos nos mistério e nos descalçamos porque o que foi gerado pela divina pedagogia toca-se pela contemplação e não pode ser capturado pela mera curiosidade. A pedagogia divina nunca se torna refém da nossa especulação, por isso enxergar alguém no seu contorno vital exige essa submissão à lente do Mistério. Teresa de Jesus foi lentamente gerada pela paciência de Deus e apressadamente gerada para a edificação da história, não apenas no raio da sua contemporaneidade, mas na continuidade da história humana após sua missão cumprida entre quedas e vaidades, superações e recomeços.A história se envaidecia de rotas pelo além-mar, descobrindo e tomando posse de terras desconhecidas, dominando-as, tornando-as propriedades que confirmavam a bravura e a honra daquela nação. Teresa, por sua vez, descobre e valoriza outras rotas, as interiores, aquelas que não se vai anão se pela oração, onde a bravura é enfrentar-se a si mesmo e a honra é sera baixado. Terras também desconhecidas, mas não clandestinas ao coração do homem, antes, destinadas à ele.

 Na ante-sala da sua geração, uma história universal preparada por sofrimentos, desencontros da Divindade, desvios e conflitos de toda ordem. À seu nascimento, um terreno pronto pra sofrer o impacto da intimidade com um Deus insuperável em valor. Como apresentar a Beleza incomparável num ambiente onde o fascínio com a beleza finita ousava competir com a Eterna? Teresa se permite gerar e educar, deixando Deus usar os acidentes humanos, alcançando glória para Si e para Seus amigos.

 O cenário histórico da aventura teresiana, sua terra natal, é um importante detalhe que nos ajuda a compreender melhor algumas características bem marcantes na experiência de Teresa de Jesus. Ela, como uma boa filha do seu tempo, nos traduziu fina e fidelíssima mente sua tão venerada pátria, a Espanha, transparecendo na sua vivência riquíssimos detalhes da sua cultura e religiosidade, tal qual elas se expressavam ali no século VXI. Isso é importante para compreendermos que, inseridos no tempo e aterrissados na história universal, Deus quer nos tornar instrumentos de salvação para ela.

As primeiras pedras do quebra-cabeça que Teresa dispõe em forma de narrativa da sua história pessoal, estão no Livro da Vida. Nele, e em todo as obra maiores não vamos encontrar uma autobiografia no sentido estrito da palavra e, de fato, já o prólogo nos indicará sua intenção de dar mais notícias das graças que o Senhor tem feito, do que pôr-se a si mesma em evidência. Embora vá tratar do seu modo de oração, não é de si mesma a apresentação, senão Daquele que a tornou orante.

Por exemplo, na obra mencionada (Livro da Vida) é também conhecido como o “evangelho” de Teresa, ou seja, a história do conhecimento e experiência pessoal com Jesus, sua passagem pela vida real de Teresa. Esta, com seus conflitos e potencialidades. É a narrativa da história de Jesus e Teresa, seu drama, seu desenrolar, suas fases, os milagres diários da caridade do Amigo suportando amorosamente as fragilidades daquele coração disperso, mas destinado à intimidade.

Teresa parte de si para apontar todo um caminho de salvação e o seu Autor. Faz uma leitura teológica da sua vida,faz teologia no sentido mais literal e sadio da expressão: parte do conhecimento de Deus para interpretar todo o restante, especialmente sua história pessoal. Do leito da experiência com Deus, lê sua vida sob o prisma da oração e lhe interessa antes de tudo falar de Deus, fruto inevitável de uma intimidade já autenticada pela prova.

Nos apresenta o argumento da obediência para justificar sua ousadia de escrever, uma ação absolutamente incomum no seu tempo onde mulheres não liam, não escreviam, não se davam à atividades que às equiparassem aos labores próprios dos homens. Diz-se que em tempos medievais as mulheres só saíam de casa apenas 3 vezes: “para batizar-se, casar-se e para enterrar-se”, tal era o rigor em relação às manifestações ou a participação das mulheres em coisas mais públicas ou de destaque profissional. O fato é que Teresa alcança em tempos difíceis oportunidades incomuns, tal era a pressa e a intervenção de Deus em relação à sua missão pessoal de devolver à Ele multidões. De fato, há 4 séculos, com o rastro de Teresa d´Ávila, a humanidade tomou novo rumo na experiência com o divino Amigo.

Obedecer aos confessores que amandaram escrever é o argumento mais conhecido para a essa desafiante tarefa,no entanto, não é o mais importante, nem mais imediato, nem o mais fundamental.A obediência de escrever tem sua raiz na inquietante exigência que sempre tem o orante de comunicar sua feliz experiência da pertença. Com efeito, Teresa quis submeter sua experiência ao discernimento da Igreja na pessoa dos confessores que se alternavam em pareceres diversos entre si, até o consenso de“experiência do demônio” sobre o que era mais uma nova e altíssima oportunidade que o Amigo incansável dava à humanidade de conhecer Sua espera e Sua lealdade…

A intenção pastoral dos seus escritos,também como sinal da autentica oração que sempre gera transbordamento, fica em evidência ao longo de todas as obras maiores, poesias, epistolário, etc. Teresa que começa apresentando sua vida e seu modo de oração a fim de esclarecer e discernir sua experiência, passa a escrever como mestra, ensinando, dando pistas, já indicando como seguro o modo como foi pessoalmente educada pelo Senhor na oração, na prova, na intimidade, na correção, nas quedas, nas superações. Enfim, no amor.

Espontaneamente vai mudando a dinâmica do livro de autobiografia para uma redação teológica, não no sentido acadêmico,mas existencial. No fundo, sua autobiografia não é um relato historiográfico,mas teológico, onde Deus protagoniza a decidida aventura de relacionar-se com o homem, o que vai resultar na história real de uma profunda pertença mútua, no irrevogável “para sempre” do Amigo tão marcante nos anseios de Teresa.

Teresa comunica-se apressadamente.Tem pressa por ser filha de um tempo onde o Senhor não era negado, mas era temido por supostas condições em aceitar o homem ainda imperfeito. Não era essa a experiência pessoal de Teresa que experimenta um Deus íntimo, protagonista,livre e incansável, que não temia ou desprezava o homem ainda em tempos de sua imperfeição. Passa do Deus que tem que se temer para o Deus que se pode e deve amar, passa do Antigo Testamento para a experiência neo-testamentária: “Que se descubra já Senhor a vossa glória,não para que vos temamos, mas para que Vos amemos”, já afirmava um outro contemporâneo seu, São João de Ávila. Descobriam assim, na encarnação do Filho de Deus, o alívio de que “no amor não há temor.Antes, o perfeito amor lança fora o temor, porque o temor envolve castigo, equem teme não é perfeito no amor”

No lado de dentro

Descobrimos de imediato que a Teresa não lhe importa tanto seu tempo histórico quanto seu mundo interior, não como um intimismo infundado e estéril como costuma ser uma oração fantasiosa, mas a atenção ao lado de dentro, onde habita o Senhor. Essa atenção ao interior não detém a entrega de vida, antes a irrompe, a induz, a qualifica. O contrário, indica a falta de autenticidade na experiência da oração e compromete passos importantes como o auto-conhecimento.

Na sua experiência, Teresa não só é atenta si, mas indica incisivamente o lado de dentro como um privilegiado lugar da experiência com o Senhor, consciente e amparada pela verdade de sermos sua morada: “por que motivo permitistes que se sujasse tanto a pousada onde com tanta freqüência havíeis de habitar”. Na sua viagem introspectiva, convoca os leitores a visitarem também a sua história pessoal e descobrir aí o Senhor, mergulhando na própria história não para ser o centro,mas para que Deus O seja. Não quer indicar a si mesma como referência, deseja que o orante descubra o Senhor, experimentando que Ele faz história pessoal com todos.

Em cada um dos seus escritos, assim como em toda a vida de Teresa, a oração será o tema central porque Deus é a meta. Apresenta-O como eixo e fio condutor de toda sua história, em cada providência e permissão. Descobre um Deus atento aos detalhes da sua vida ainda quando ela mesma não suspeitava tamanha gratuidade. Chama à interioridade porque o interior é o autentico ambiente do relato da história pessoal,convencida de que não apenas fatos externos compõem uma história real.

Encontramos nesse bloco os primeiros anos da sua existência, desde seu nascimento, passando pela infância,adolescência, juventude, primeiros passos e momentos vocacionais, com suas lutas, enfermidades até o grande marco da sua conversão diante do “Cristo muito chagado”. Aqui, Teresa se mostra bastante consciente da Providência de Deus nos detalhes do seu contexto familiar, nos seus pais, irmãos, condição social, mas sobretudo da insistência da graça que a cercou de intervenções em cada fase.

Ao ler sua história, vendo a ação dessa força redentora presente na sua vida chamando, esperando, perdoando e confirmando-a, reconhece não ter estado toda inteira nos bons desejos nos quais começou na infância, de ter-se desviado nos devaneios da juventude dos quais a livrou o próprio Senhor até que, sem profundas motivações de amor, mas de temor, dá o passo à vida religiosa.

Passa os primeiros anos da vida religiosa em meio a fervores. Após essa primeira fase, Teresa cai novamente numa espécie de frieza espiritual, situação bastante agravada pelo contato como mundo. Isso tornará muito conflitivo sua dedicação à oração, vai dificultara entrega do seu coração, gastará suas poucas forças, a curto prazo minará suas disposições e a luta se tornará cada vez mais dramática, com resistências comparáveis aos frontões bélicos da sua amada Espanha contra a invasão árabe, aponto de afirmar que não encontrava consolo sequer nos santos convertidos: “Vejo que depois de chamados pelo Senhor, não voltam a ofendê-lo. Eu, pelo contrário, piorava cada vez mais. Parecia estudar o modo de resistir às graças de Sua Majestade, como que temendo sentir-me obrigada a servi-lo com maior perfeição.”

Teresa tem um profundo realismo sobre a fragilidade das suas motivações, confessa com profunda verdade a força do seu conflito, reconhecendo as instabilidades da sua vontade e a grande atração que exercia sobre si as vaidades do mundo. Estamos diante de um drama que se arrasta durante quase vinte anos de sua vida, tempo no qual Teresa chega a abandonar a vida de oração convencida de que não poderia estar com Deus aquela que merecia estar com os demônios. Mais tarde, tendo passado pela perigosa experiência de ter abandonado a vida de intimidade com Deus vai afirmar que “todos os males nos vem de abandonarmos a oração”.

Assim, Deus responde ao conflito de Teresa suportando suas inconstâncias, esperando sua lentidão, tolerando suas quedas repetidas, reagindo aos seus “nãos” com confirmação, sem nunca revogar a eleição, provando que Sua pedagogia não depende da perfeição do homem, antes, é para ele sinal da liberdade do Seu amor como Deus. São anos de uma exaustiva guerra onde a percepção de um Deus Salvador desde os primeiros momentos favoreceu a experiência de conquista e rendição. A conquista foi um passo do Amigo desde o princípio, mas a rendição de Teresa foi um capítulo bem tardio,como veremos depois.

A graça triunfa em Teresa que,bastante decepcionada consigo mesma, rende-se ao domínio da caridade de Deus,reconhecendo o fracasso de confiar mais em si mesma do que em Deus: “Estava já muito desconfiada de mim ecoloquei toda a minha confiança no Senhor” .A constatação de que sua pouca força não era a palavra final à sua conversão, tampouco à sua eleição,gera uma nova esperança, uma nova postura e saber-se muito amada e esperada torna-se agora sua grande força interior. O centro de gravidade não é mais Teresa e sua imperfeição, mas o Senhor e sua gratuidade. Esse novo foco deslocado centro aquela que é apenas o alvo da graça e devolve o protagonismo Aquele único capaz de erguer o homem fragilizado e inacabado. Deus alcança num segundo o que ela, por si mesma, não o pudera em tantos anos…

Nas primeiras paginas do seu primeiro escrito já fica claro que Teresa não quer apenas nos dar uma chave autobiográfica, mas indicar a pedagogia de Deus que passa obrigatoriamente pelo auto-conhecimento onde, enquanto revela o homem a si mesmo, sua dignidade e fragilidade, Deus também se revela em toda a sua gratuidade.

Teresa prova pessoalmente que apesar da sua fraqueza Deus segue sustentando com Sua mão o que ela por sua obstinação punha a perder a cada instante. O gozo da fé na infância fora perdendo-se pelas escolhas que se seguiram na adolescência e nos primeiros passos dentro da vida religiosa, mas Deus com absoluta lealdade guia a porto seguro esse coração desviado e, incansável como um Esposo, vai tratando as enfermidades de sua eleita, suas resistências, incoerências, instabilidades e carências. Essa luta dramática entre a graça incansável e o coração resistente é uma das imagens mais importantes que na intenção pastoral de Teresa quer ficar em evidencia:Deus é absoluto em protagonismo e esse amor incomparável reconquista o coraçãodo homem que, apesar de desviado, fora destinado à perfeita felicidade da pertença e posse eterna de Deus. Teresa experimenta que Deus jamais desiste de atender o orante que, embora perdido, anseia: “dai-me a vida como é vossa decisão!”

Para além das suas debilidades,Teresa possui um coração eleito e vê esse espaço preservado por pura decisão divina. O Divino Amigo não se cansa, apesar da real ingratidão de Teresa ainda nos tempos da sua divisão entre Deus e o mundo e ela percebe que já não pode unir esses dois contrários por natureza. Teria que optar. Sua debilidade, ainda mais forte, arrasta-a para onde ela mesma o não desejava por consciência da vontade de Deus, mas não tinha o coração suficientemente conquistado para renuncias mais constantes e profundas. O Senhor, por sua vez, permanecia espreitando o melhor momento para dar as provas necessárias do Seu amor poderoso, estável e irrevogável, características irresistíveis ao coração de sua Teresa. Essas provas provocarão luta e conflito, mas serão a prova irrefutável de que o Amor que se mistura com as debilidades, sem preconceito,livre e leal.

Com certeza, se Teresa tivesse disfarçado sua verdade e debilidades não teria entrado na crise que tornou desconfortável sua vida durante tantos anos, mas também não teria comprovado por experiência que Deus é incapaz de abandonar, nem no Egito, nem no deserto,e que triunfa em cada uma dessas fases. A conversão e a santidade de Teresa é uma profunda derrota pessoal no campo do seu protagonismo, mas é uma impressionante demonstração do poder de Deus contra sua obstinação de querer viver facilmente, tendo para ela uma vocação e uma missão pessoal.


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