Formação

O Cristão e a Evangelização da Cultura

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1. A Cultura Pós-Moderna

O cristão de hoje enfrenta desafios gigantescos nas mais diversas áreas pessoais e sociais. Isto faz com que lhe seja necessário analisar a realidade que o cerca com olhos críticos e à luz do Evangelho e do Magistério da Igreja. Há uma tão grande descristianização no mundo, que o cristão não pode mais simplesmente seguir o senso comum, a mentalidade e a cultura que o cerca.

Durante a Idade Média a sociedade era profundamente teocêntrica. Na mentalidade do homem medieval tudo vinha de Deus e para Ele convergia. A Igreja tinha um lugar preponderante na vida religiosa, civil e política. Os valores a serem seguidos eram claros, embora muitas vezes desobedecidos.

A Idade Moderna veio implantar o humanismo. Não é mais Deus o centro de tudo. Os valores agora são profundamente antropocêntricos. O homem é a medida. A filosofia e as artes reinterpretam valores da cultura clássica pagã e a corrente do renascimento cultural, de mãos dadas com o racionalismo, convergem para a exaltação do papel da razão e valorização do homem.

Nossa idade contemporânea centra-se no "eu". Passamos do antropocentrismo para o egocentrismo, que desemboca, inevitavelmente, no individualismo. Esta centralização no "eu", "na pessoa", como diriam alguns, tem levado ao estabelecimento de uma verdadeira cultura pós-cristã, cujos valores altamente relativisados perdem sua objetividade e seu referencial no Evangelho para enraizar-se no "eu", que se toma o parâmetro do bem e da verdade.

"As conquistas científicas, tecnológicas e informáticas têm satisfeito muitas das necessidades do homem, ao mesmo tempo que têm buscado autonomia em relação à natureza, a qual domina; em relação à história, cuja construção ele assume; e inclusive relação a Deus, do qual se desinteressa ou relega à consciência pessoal, privilegiando exclusivamente a ordem temporal" (Sto Domingo,252).

2. A Cultura Pós-Cristã

Esta cultura pós-moderna caracteriza-se, entre centenas de outras facetas, por uma forte e aberta contestação aos valores cristãos. Há quarenta anos eram absolutamente inquestionáveis valores que diziam respeito à vida, por exemplo. O aborto, a contracepção irresponsável, a eutanásia, a pena de morte, eram assuntos condenados de per si. Não se chegava nem mesmo a cogitar a possibilidade de tais atos serem morais. Sua imoralidade era evidente e este conceito fazia parte da cultura da época, norteada pelos valores evangélicos e suficientemente humilde para reconhecer Deus como autor e Senhor da vida.

Hoje, o homem que busca autonomia em relação à natureza e a domina, coloca-se em arrogante posição de "senhor" da vida e da morte e não raro toma a si decidir sobre a concessão ou não da vida de crianças ainda no ventre das mães; sobre o destino de milhões de fetos congelados in vitro, resultantes das fecundações artificiais; o "direito" de desligar aparelhos que ele mesmo construiu e que mantêm uma pessoa viva.

Hoje em dia, o fenômeno do secularismo propaga o indiferentismo religioso e provoca várias formas de ateísmo. O homem, imerso em suas conquistas técnico-científicas, crê poder prescindir de Deus: "Muitos bens, que antes o homem esperava alcançar sobretudo das forças superiores, hoje os consegue por si mesmo" (Gaudium et Spes n.33a). Toma a si próprio como referencial do bem, proclama-se "livre" para fazer as suas escolhas independentemente de valores" impostos" de fora.

Assistimos, então, ao fenômeno da relativização dos valores: "É um bem aquilo que me preenche, que me traz felicidade, que me estimula". O valor moral perde a sua objetividade e deixa de ter como referencial último o fim supremo, o próprio Deus, para ter o referencial relativo e reduzido do próprio homem.

A Cultura Pós-Cristã conta com a incansável colaboração dos meios de comunicação social para propagá-la e referendá-la e, em muitos casos, com a omissão do sistema de educação, cujos valores tendem a acomodar-se à mentalidade vigente.

As consciências influenciadas pelo relativismo de valores, desagregação familiar, media e educação omissa, passam, então a ser formadas dentro de critérios de valores subjetivismo, tomando-se laxas ao ponto de serem consideradas "preconceituosas" pessoas ou instituições que se firmem em valores objetivos e evangélicos.

3. A Ruptura entre Fé e Cultura

Para este homem "todo poderoso", a fé toma-se algo perfeitamente dispensável. Cabe ao homem estabelecer o certo e o errado, assim como a ele cabe construir o que, segundo seus próprios conceitos, lhe convém. É o homem que constrói a própria história e a história de nações inteiras e que cria, por conseqüência, uma civilização afastada da fé que, longe de ser fundamento, é um valor" opcional, individual e supérfluo" , acerca do qual é mesmo falta de educação se tecer comentários.

O homem" todo poderoso" rejeita tudo o que significa desconforto, dor, morte. Não entende o que significa renúncia e considera "amor" o que lhe proporciona prazer e preenche, ainda que momentaneamente, suas necessidades pessoais. A conseqüência é que a paixão, morte e pregação de Jesus passam a constituir-se para ele não mais um "escândalo e loucura", mas "uma bobagem, uma lenda, um erro de interpretação" .

Além disso, este homem, tão obviamente centrado no egoísmo, valoriza tudo o que é perfeito e despreza o "defeituoso". Assim, é aceito o que é "bonito, jovial, inteligente, culto, etc." e é desprezado o que é "defeituoso, imperfeito, velho, de inteligência ou cultura limitadas" . Tal homem não se sente necessitado da salvação nos moldes propostos por Jesus, que veio para o pecador, para o doente, para o necessitado. Este homem tende à auto-suficiência,ao ateísmo, à dessacralização, à mentalidade individualista e secularizada.

As suas necessidades pessoais são seu único interesse e tende a não ter laços afetivos com nenhuma instituição, com nada ou ninguém que o "prendam" ou limitem na sua sede de consumo, de novas emoções, de novidades fascinantes.

Diz Santo Domingo: "O homem urbano atual apresenta um tipo diverso o homem rural: confia na ciência e na tecnologia; é influenciado pelos grandes meios de comunicação social; é dinâmico e voltado para o novo; consumista, audiovisual, anônimo na massa e desarraigado" (255).

4. O Papel do Fiel Leigo

É urgente que nós, como Igreja, respondamos a esta situação que tende ao caos social e moral. Desde o Vaticano II, o leigo consciente não pode mais cruzar os braços e declarar que" isso é coisa para padre e freira". Se alguém pode ser apontado como principal responsável pela evangelização desta cultura pós-cristã esta pessoa é o leigo. É ele quem está no mundo, nas escolas, na promoção da cultura, à frente dos meios de comunicação, da família, do mundo do trabalho, da política. Cabe ao leigo comprovar com sua vida que, ao contrário do que o mundo secularizado pensa, o "mundo sacro" não se opõe ao "mundo profano", mas dá-lhe sentido, pois "o Santo faz oposição ao pecado, à ruptura com Deus"), principais fontes da escravidão do homem.

A primeira obrigação do leigo cristão é ser absolutamente fiel a Jesus em Sua Palavra e ao Magistério da Igreja. Paulo VI já comentava como o homem hoje está cansado de palavrório. Decepcionado com a incoerência entre fé e vida – principalmente dos cristãos – o homem hoje ouve mais as testemunhas do que os eloqüentes mestres.

A unidade entre fé e vida é a arma mais poderosa do fiel leigo para estabelecer a "civilização do amor" e contribuir fundamentalmente para a evangelização da cultura.

Em um felicíssimo artigo intitulado "Ruptura entre Oratório e Laboratório", D. Frei Boaventura KIoppenburg ressalta: "O erro mais difundido e funesto entre os cristãos é este: a separação entre fé e vida (. ..) ensinar uma coisa e viver outra. É o farisaísmo, a hipocrisia, o fingimento. Uma coisa é saber e ensinar; outra coisa é fazer e viver.

O problema, porém, não é só daqueles que ensinam a fé cristã. Idêntica questão surge também para os que a professam. E quem a professa? Todos que se dizem cristãos! Eis o que pode acontecer entre eles:

Professam crer em Deus e vivem como se Deus não existisse. .
Rejeitam o assassinato e praticam ou favorecem o aborto.
Reprovam o roubo e se apoderam do que não lhes pertence.
Sustentam o primado do espírito e vivem como materialistas.
Têm habitação sobrando ao lado de gente sem teto.
Aceitam a indissolubilidade do matrimônio e vivem como bígamos.
Acumulam fortunas e deixam o pobre na miséria.
Afirmam a imortalidade da alma e atuam como se nada esperassem depois da morte.
Alegram-se em banquetes quando tantos morrem de fome.
Apóiam campanhas contra a pornografia e adquirem material obsceno.
Atestam ser católicos e não cumprem suas obrigações mínimas.
Condenam a adúltera e dormem com a amante.
Condenam a mentira e enganam sem escrúpulos.
Declaram crer em Jesus, mas de seus ensinamentos só aceitam o que lhes interessa.
Exaltam o amor ao próximo e exploram seus subordinados.
Louvam a piedade e não rezam uma oração.
Possuem extensas propriedades agrícolas e permanecem insensíveis diante dos que não têm terra. " (2)

A fidelidade a Jesus e à Igreja constituem, de certa forma, o martírio do fiel leigo hoje. Talvez não o martírio em arenas repletas de leões ou caldeirões de azeite fervente, à moda dos primeiros cristãos, mas o martírio ao pé da letra, o ser testemunha de Jesus em meio ao mundo secularizado, ateísta, dessacralizado e individualista. Ser mártir hoje é testemunhar Jesus de uma forma intensamente desafiadora, que não dura alguns instantes ou meses, mas dia após dia, segundo após segundo.

Todos nós temos a experiência de, devido ao nosso desejo de sermos fiéis ao Evangelho e à Igreja, sermos incompreendidos por familiares, amigos, colegas de trabalho e até mesmo por membros da própria Igreja. E este o quinhão que Deus nos reservou: o testemunho em meio à incompreensão, como o sal, o fermento e a luz, de que Jesus falou. Mudos, estes três elementos vão conquistando o meio em que estão pelo que eles são, pois não há força comparável à força do Espírito que age em nós e nos leva a testemunhar Jesus Cristo pela fidelidade da caridade.

5. O Fiel Leigo e as Pequenas Coisas

Quando olhamos a missão grandiosa que a Igreja tem à frente e o papel do fiel leigo diante do imenso desafio da Nova Evangelização, é natural que pensemos que para isto precisamos realizar grandes coisas, de preferência todas de uma só vez. Sta. Teresinha do Menino Jesus, que "queria assumir todas as vocações em toda a terra", afirma algo que dá o que pensar: "O menor ato de puro amor é mais útil à Igreja que muitas obras reunidas".

O que Deus nos pede é f-i-d-e-l-id-a-d-e, coerência de vida e, por causa disso, martírio. Deus não nos chama a fazer o mais fácil. Ele não nos tem em tão pouca conta; sabe a que preço fomos comprados. Deus nos chama ao mais difícil: à santidade. Isto inclui, antes de mais nada, as "pequenas" coisas, a coerência de vida, o testemunho vivencial da fé, a contrapartida aos motivos de escândalo tão sabiamente citados por D. Kloppenburg.

Jesus já nos alertava em Mt 18 acerca dos que escandalizam. Nossa incoerência de vida tem escandalizado milhões de pessoas no mundo inteiro e tem afastado muitos – por vezes definitivamente – da Igreja, da fé em Jesus Cristo e, portanto, da salvação.

Para sermos fiéis nas "pequenas" coisas, devemos ser exigentes conosco mesmos, evitando a todo o custo a frouxidão e relativismo de consciência que caracterizam o homem de hoje. A moral e a fé do cristão autêntico e coerente não admitem sutilezas, concessões e meios-termos. Um cristão coerente não vai em busca de justificativas para transgredir o justo salário, atrazar o pagamento, estabelecer ligações adúlteras, abandonar os filhos, ferir a moral da Igreja no que concerne à procriação e o direito à vida.

O cristão coerente não acumula bens sobre bens, não vive na luxúria, não furta nem engana a ninguém nem ao governo, não oferece subornos ou propinas, não é conivente com a pornografia sob qualquer justificativa, não explora seus subordinados, não trai a sua fé. Prefere sofrer a pecar. Prefere ser incompreendido a trair o seu Deus. Prefere perder mordomias e confortos a ultrajar sua fé.

O cristão coerente ainda tem em grande conta o perigo que o pecado é para a sua alma e para todos os homens. Ele escolheu a Deus. Colocou Deus acima de tudo e muito acima de si mesmo. A Ele serve, a Ele obedece, não se importando com o que o mundo diga, pense, julgue, critique. Em Deus está a sua paz, como fruto de um relacionamento íntimo e límpido; sob o preço alto do esquecimento e da renúncia de si para a renovação da opção por Deus.

O cristão coerente guia sua vida pela Palavra e pelo ensinamento da Igreja. Não admite ser manipulado por ideologias, pessoas, mentalidades ou mídia. Tem em alta conta sua liberdade, conquistada pelo sangue de Jesus. Não a barateia nem põe em risco sua alma para agradar a si mesmo ou a quem quer que seja. Ele sabe que não se pertence.

O cristão coerente tem em altíssima conta o ser imortal e pertencer a Cristo e sabe que é na sua história pessoal que "se revela e realiza a vida cristã, isto é, a caridade de Jesus Cristo para a glória do Pai e o serviço dos irmãos" (3)

É com este cristão que a Igreja conta para a Nova Evangelização. Seu testemunho é sal e fermento, é luz e guia. Este tipo de homem constrói a civilização do amor porque ama a Deus e seus irmãos, pois, assim como a Nova Evangelização só se realizará com novo ardor e fervor, novos meios e métodos enraizados na coerência entre fé e vida, assim também, a "civilização do amor"’ que ela fará surgir só se dará através de homens que, individual e heróicamente, resistam ao ódio vigente e vivam para amar.

(1) Kloppenburg, D. Frei Boaventora, O.F.M. – "Para uma nova evangelização" , ed. Vozes, SP
(2) Op.cit. pp.64,65
(3) Op.cit. p. 65


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