Contextualização histórica
Se percorrermos um pouco a história dos povos antigos, descobriremos que entre alguns povos existiam práticas análogas à eutanásia e práticas de sacrifícios humanos[1]. A difusão dessa prática derivava da exaltação da força, da juventude e do vigor físico e, consequentemente, de uma verdadeira repugnância pela velhice e pela doença.
Todos conhecemos a sorte reservada em Esparta aos recém-nascidos com deformações e sabemos que Aristóteles (Política, VII, 1335b) aprova sua prática por razões de utilidade política. Platão amplia esta legitimação aos adultos gravemente enfermos, que são suprimidos com a colaboração dos médicos (República, 460b)[2].
Com o advento do cristianismo percebe-se uma mudança radical na vida e no pensamento ocidental; foi somente com o nazismo que a eutanásia foi reintroduzida na história de forma organizada: segundo alguns dados tirados do Processo de Nuremberg, entre 1939 e 1941 foram eliminadas mais de 70.000 vidas consideradas “sem valor”. Além desses fatos históricos dramáticos, assistimos no hoje da história um aumento contínuo de movimentos pró-eutanásia que buscam incansavelmente o seu reconhecimento legal.
Definição
Convém, portanto, precisarmos alguns termos antes de tratarmos dos diversos problemas ligados à eutanásia.
Eutanásia – Etimologicamente, a palavra “eutanásia” derivada do grego “eu”, que significa “bom” e de “thanatos” que significa “morte”. Ou seja, “boa morte”, morte aprazível, sem sofrimentos atrozes. Hoje, porém, o significado original foi abandonado e entende-se por eutanásia, a intervenção (na maioria das vezes, feita pelo médico) que suprime, de forma indolor, a vida de doentes incuráveis ou que sofrem dores insuportáveis e que já estão próximos à morte, e de pessoas definidas como “irremediavelmente ineficientes”, com a intenção de não fazê-las sofrer.
A eutanásia pode ser ativa, uma ação deliberada que provoca a morte, ou passiva, omissão deliberada de cuidados necessários, como alimentação e hidratação, que prolongariam a vida do paciente até o seu termo natural.
“Por eutanásia, entendemos uma ação ou omissão que, por sua natureza ou nas intenções, provoca a morte a fim de eliminar toda dor. A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível dos métodos empregados”.[3]
Distanásia – ou, como seria mais correto denominá-la obstinação terapêutica – é, etimologicamente, o contrário da eutanásia. Consiste em atrasar o mais possível o momento da morte usando todos os meios, proporcionais ou não, ainda que não haja esperança alguma de cura, e ainda que isso signifique infligir ao enfermo sofrimentos adicionais.
Ortotanásia – Etimologicamente significa morte correta. Não devemos, contudo, confundi-la com a eutanásia passiva, porque se trata da “interrupção de tratamentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados esperados”[4], e que como podemos perceber, não é um ato imoral, visto que respeita os princípios da dignidade da pessoa humana. “É a rejeição da obstinação terapêutica. Não que assim se pretenda dar a morte; simplesmente se aceita o fato de não poder impedi-la[5]. A este favor, o artigo 16 do código de deontologia médica emanado em 2006, convida o médico a abster-se da obstinação em tratamentos diagnósticos e terapêuticos, dos quais não se possa esperar um benefício para a saúde do doente e/ou uma melhora da qualidade de vida.
Em 1980 a Congregação para a Doutrina da Fé emanou a declaração Iura et Bona sobre a eutanásia e, na quarta parte do documento, afrontou o tema da proporcionalidade dos meios terapêuticos. Afirmou o direito-dever de cada paciente de tratar-se e de fazer-se tratar sem a obrigação de usar meios extraordinários.
Deve-se sempre avaliar a validade da aplicação terapêutica ou diagnóstica em proporção à facilidade de aquisição do medicamento, ao grau de esforço e de dor, aos custos econômicos e ao impacto emotivo que provoca no paciente. Devem ser considerados desproporcionais e nunca obrigatórios, os meios que possam provocar o mínimo benefício e que são agravados por muitos efeitos colaterais nocivos ou contém respostas terapêuticas insignificantes para a qualidade e a duração da vida do paciente.
Morrer com dignidade
Na Encíclica Evangelium Vitae, lemos:
Na sequência dos progressos da medicina e num contexto cultural frequentemente fechado à transcendência, a experiência do morrer apresenta-se com características novas. Com efeito, quando prevalece a tendência para apreciar a vida só na medida em que proporciona prazer e bem-estar, o sofrimento aparece como um contratempo insuportável, de que é preciso libertar-se a todo o custo. A morte, considerada “absurda” quando interrompe inesperadamente uma vida ainda aberta para um futuro rico de possíveis experiências interessantes, torna-se, pelo contrário, uma “libertação reivindicada”, quando a existência é considerada como já desprovida de sentido porque mergulhada na dor e inexoravelmente votada a um sofrimento sempre mais intenso[6].
A Igreja reconhece como um bem os contínuos progressos da medicina, mas alerta para a tentação, que nesse contexto é cada dia mais forte, de apoderar-se da vida e da morte. Se o homem se esquece daquela sua relação fundamental e essencial com seu Criador, passa a ser o único critério para si e para os outros.
São várias as causas e os estímulos que favorecem e alimentam a mentalidade anti-vida da atual sociedade, e podemos constatar em nós mesmos pequenas sementes desse tipo de mentalidade, quando, por exemplo, olhamos alguém com desprezo; quando classificamos algumas pessoas “inferiores” a nós segundo nossos próprios critérios ou quando damos mais valor ao bem-estar físico e material que à própria vida.
Habituado às grandes descobertas técnico-científicas, o homem sente-se impotente diante da morte e, não podendo vencê-la, procura manipulá-la. A eutanásia e o suicídio assistido se tornam, então, uma “solução”, o último ato “livre e autônomo” que o homem cumpre com “dignidade”. Aparece assim reproposta a tentação do Éden: tornar-se como Deus “conhecendo o bem e o mal” (Gn 3,5). Mas, Deus é o único que tem o poder de fazer morrer e de fazer viver: “Só Eu é que dou a vida e dou a morte” (Cf. Dt 32,39; 2Rs 5,7; 1Sm 2,6). Ele exerce o seu poder sempre e apenas segundo um desígnio de sabedoria e amor. Quando o homem usurpa tal poder, subjugado por uma lógica insensata e egoísta, usa-o inevitavelmente para a injustiça e a morte. Assim, a vida do mais fraco é abandonada às mãos do mais forte; na sociedade, perde-se o sentido da justiça e fica minada pela raiz a confiança mútua, fundamento de qualquer relação autêntica entre as pessoas[7].
Se diminuir a fé no Crucificado e na vida eterna, o homem não consegue perceber o caráter imoral da eutanásia.
É importante esclarecer que a Igreja não é a favor do sofrimento, mas da vida e do verdadeiro bem do homem. Por meio de diversos documentos ela nos ajuda a descobrir qual deve ser a postura do cristão diante do desafio da dor e da morte, que não é a do conformismo ou da “solução mais fácil”, mas do abandono confiante nas mãos do Pai, que é Senhor e Deus, e o seu senhorio pode ser somente “senhorio de amor”, porque somente por amor Ele criou o homem e somente por amor o homem encontrará o seu verdadeiro valor.
Quem recorre à eutanásia não consegue colher na doença, no sofrimento ou na morte dolorosa um chamado de Deus a unir-se a Cristo no mistério da sua Cruz. “Operando a redenção por meio do sofrimento, Cristo elevou juntamente com o sofrimento humano a nível de redenção. Por isso mesmo, a cada dia, no seu sofrimento, pode participar do sofrimento redentor de Cristo”[8]. Com isso, podemos afirmar que unido à Paixão de Cristo cada sofrimento humano encontra-se numa situação nova.
Cuidar do doente terminal significa ajudá-lo a dar sentido a esse momento particular da sua vida e a morrer com dignidade humana e cristã, “mas esse cuidado, por sua vez, deve ser humano”[9].
Através dos ensinamentos de João Paulo II, por meio de documentos e da sua própria vida, compreendemos o porquê não podemos aceitar a obstinação terapêutica, a eutanásia e todos os outros métodos que o progresso científico continuamente insiste em apresentar como caminho mais fácil para fugir do sofrimento ou como modo mais eficaz para exercer a autonomia humana sobre a própria vida.
Josefa Alves, doutoranda em Teologia e coordenadora científica do Instituto Parresia.
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Referências bibliográficas
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Iura et bona, 1981.
JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Salvifici Doloris, 1984.
______. Carta Encíclica Evangelium Vitae, 1995.
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética I. São Paulo: Loyola 1997.
TETTAMANZI, Dionigi. Nuova Bioetica Cristiana. Milano: Piemme 2000.
[1] Thomas L. V., no seu livro Antropologia della morte (1976) descreve algumas dessas práticas, presentes entre os battaki de Sumatra, entre os Aracan na Índia, entre os wendi em regiões europeias, entre os incas na América Latina, dentre outros.
[2] SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. São Paulo: Loyola 1997, p.589.
[3] CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Iura et bona, 2.
[4] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (CIC), 2278.
[5] Ibidem.
[6] JOÃO PAULO II, Evangelium Vitae, 64.
[7] Cf. EV 66.
[8] JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Salvifici Doloris, 26.
[9] TETTAMANZI, Dionigi. Nuova Bioetica Cristiana. Milano: Piemme 2000, p.51.
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