As cartas que o padre Pio escreveu ao seu diretor espiritual, o padre Benedetto de San Marco in Lamis, ascético e místico, e a seu confessor, o padre Agostinho de San Marco in Lamis, abrem diante do leitor um mundo completamente novo e insuspeitado. O que mais nos confunde é que esse mundo extraordinário, que aparece nas cartas, não se reflete de modo algum em seu comportamento comum, o do homem padre Pio.
Ele é, antes de tudo, um homem. Nem o dom da profecia, nem o da ubiqüidade ou o dos perfumes, nem a fama de taumaturgo, nem os estigmas conseguem transformar sua fisionomia humana. E apenas da instituição de sua humanidade depende a compreensão de sua personalidade complexa.
O halo do sobrenatural não arranha de modo algum seu comportamento de homem comum, cuidadosamente vigiado por uma rede de virtudes morais, das quais as primeiras são a obediência e a humildade – nele, a expressão mais completa de sua humanidade.
A obediência faz que seja servo e escravo, a humildade torna-o portador vivo da advertência das Escrituras: “Pois quem é que te faz diferente? Que tens que não tenhas recebido? (1Cor 4,7). A ele podem ser aplicadas as palavras ditas a respeito de Moisés: “Moisés era homem muito humilde, mais do que qualquer pessoa sobre a terra” (Nm 12,3).
Quem é humilde é simples. No padre Pio a simplicidade assombra. Uma de suas cartas a seu confessor refere-se a uma discussão que ele teve com Jesus. O modo ressentido e birrento, por ele utilizado com o divino Mestre, em nada difere daquele que teria usado quando Jesus era marceneiro na oficina de Nazaré.
É profeta. Mas ignora os gestos vistosos e as palavras ardorosas dos profetas bíblicos. Sua profecia aflora de forma velada, quase fugaz, e por vezes sob a roupagem de um acontecimento corriqueiro.
Ele é responsável pelos segredos que Deus lhe confiou desde que era jovem, mas não assume o comportamento de um depositário ciumento e misterioso dos desígnios divinos.
Desdenha propositadamente assumir posturas que possam contribuir para formar a seu redor uma auréola de misticismo. Quando toma consciência de que, no agradecimento, depois da missa, seu rosto se transforma devido ao seu intenso colóquio com Deus, cobre-o com um xale.
Mas onde sua condição humana emerge, prepotente, é nos ímpetos coléricos, nas ásperas investidas, nas reações desproporcionadas, nos comportamentos que alguém ousou definir como “de guardador de ovelhas”.
São comportamentos que não correspondem, de fato, a seus verdadeiros sentimentos e a seus modos habituais. Mas a naturalidade com que essa doce e delicada figura demonstra um verniz e uma exterioridade que não lhe são próprios é tanta que até mesmo os que lhe são mais íntimos parecem, por vezes, seriamente perturbados.
Não que sua reação ao mal seja simulada; simulada é a exasperação dessa reação, devido, com freqüência, a uma forma muito própria de sacudir as almas e fazer que os pecadores se arrependam. Tanto é verdade que, pretendendo imitar tais métodos, alguns sacerdotes foram por ele dissuadidos de fazê-lo.
Esses ímpetos coléricos assumem, entretanto uma forma consistente no exato momento em que ele vê diante da injustiça e de formas organizadas por ela. Nisso o seu desprezo é com certeza autêntico, e ele se mostra forte e duríssimo.
Em tais circunstâncias, aqueles que tivessem uma idéia dos santos baseados nas doces representações pictóricas dos últimos séculos custariam a reconhecer nele o homem de Deus. Quando se aproxima dele um certo tipo de pecador, seduzido pelo mal até o pescoço, aparentemente vindo por acaso, mas na verdade conduzido pela divina misericórdia, ele já sabe desse encontro, aliás, está a espera. É aí que se vê diante de um confronto com a realidade de tal modo violento que é obrigado (e aqui se mostra, ainda, sua face humana) a insurgir-se com gestos e palavras por vezes perturbadores.
É na lógica de seu temperamento que esse confronto assume aspectos mais evidentes, pela separação que nele se estabelece entre a ofensa feita a Deus e o pecador a ser redimido; entre a ostentação de uma atitude de desprezo para sacudir o irmão do torpor e o ímpeto natural de apertá-lo contra o peito, entre o sentimento de administrador rígido da misericórdia de Cristo e a inclinação de ser o bom samaritano das misérias humanas. É um conflito que o dilacera. Quando é responsável pessoalmente por essa luta paralisante, sofre, mas vai adiante. Quando, ao contrário o contraste entre o querer ser a atitude oposta é devido a uma imposição divina, então as coisas se colocam num plano diferente, porque ele sofre e treme diante do fato de sua esfera humana ter sido violentada: “Eu me dou conta de ser muito infeliz, porque então, mais do que nunca, sinto que não sou livre […] as correntes que meus olhos não vêem, eu as sinto”. Isso o faz provar certo desconsolo: “Onde estou? Onde me encontro? Quem é que está perto de mim?”. Sente a “rebelião” por essa ligação que não lhe deixa “liberdade alguma para as coisas daqui debaixo”, a ponto de ver-se tentado a chamar de “cruel o Filho, tirana a Mãe”.
É a luta de Jacó com o anjo; do homem com Deus. Seu comportamento traz à lembrança a forte resistência de Moisés à missão que Deus lhe confiara: “E se eles não acreditarem em mim […]? […] Nunca tive facilidade para falar […] Por favor, manda um outro […] Senhor, por que maltratas este povo? Por que me enviaste?” (Ex 4-5).
Com a diferença que Moisés tenta resistir à responsabilidade da missão, enquanto o padre Pio opõe-se tão-somente aos grilhões que lhe tolhem a liberdade de movimento, mas não recusa seu chamado. Ele é co-redentor por sua vocação inicial: disso dão testemunho os sinais vivos que traz no corpo. Chamado desde menino, não usa como desculpa sua juventude, como fez Jeremias; conhecida a qualidade das dificuldades que deverá encontrar, não foge como Jonas.
Mas uma coisa é viver a vida mística, outra é renunciar à própria independência. Ela não impõe condições à amplitude das provações que é chamado a enfrentar, mas pretende permanecer sendo aquilo que é. Quer continuar a ser ele mesmo.
O que é certo é que jamais dá a impressão de ser o beneficiário dos dons celestes dos quais é dotado, parecendo mais um servidor que sustenta nos braços as riquezas do amo.
A esfera do divino jamais conseguiu nele sobrepor-se à esfera humana. Numa única coisa o extraordinário se manifesta nele: em conseguir permanecer sempre, e de modo constante, extraordinariamente humano.
Luigi Peroni