Ao refletirmos sobre a essência do homem inevitavelmente nos deparamos com a conclusão de que o homem é plenamente homem quando vive em comunhão com Deus, do qual é imagem e semelhança. Entretanto, saltam aos nossos olhos os contundentes exemplos de nossa imperfeição e tal imagem pode parecer algo inatingível. Cabe, portanto, nossa reflexão sobre o mistério de desfiguração do homem pelo pecado.
Orígenes, falando sobre o tema do homem imagem de Deus, a partir do episódio da conhecida resposta de Jesus sobre o dever de pagar impostos[1], explica o drama que vive a humanidade após o pecado:
Existem duas imagens no homem: uma que recebeu de Deus na criação, como diz o Gêneses: ‘à imagem de Deus e à sua semelhança o criou’ (Gn1,27). A outra, a imagem do homem ‘terrestre’ (I Co15,49), que recebeu por causa de sua desobediência e de seu pecado, quando foi expulso do paraíso, seduzido e atraído pelo ‘príncipe deste mundo’ (Jo 12,31). Jesus ordena assim de dar essa imagem que não nos pertence, arrancá-la de nosso rosto para acolher aquela segundo a qual, no início, fomos criados à semelhança de Deus. Assim damos a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.[2]
O pecado desumaniza o homem
O pecado desfigurou o homem, e viver no pecado significa destruir a si mesmo. O pecado desumaniza o homem, ele torna-se cada vez menos homem ao se entregar a uma vida de distanciamento de Seu Criador. Essa vida é fechada em si mesma, determinada por suas feridas e absolutiza as próprias experiências elevando-as ao ranking de realidade per si. Mesmo o especialista que não acredite em pecado, por não viver na esfera religiosa, é capaz de reconhecer as desordens causadas pelo pecado e pode identificar realidades que são nocivas à pessoa humana como à toda sociedade. A própria psicologia, em algumas de suas escolas, reconhece que o homem não pode ser determinado pelo princípio mais instintivo de sua natureza. A Igreja, ‘expert em humanidade’, nos diz em Gaudium et Spes:
O que a Revelação divina nos dá a conhecer, concorda com os dados da experiência. Quando o homem olha para dentro do seu próprio coração, descobre-se inclinado também para o mal, e imerso em muitos males, que não podem provir do seu Criador, que é bom. Muitas vezes, recusando reconhecer Deus como seu princípio, o homem perturbou, por isso mesmo, a sua ordenação para o fim último e, ao mesmo tempo, toda a harmonia consigo próprio, com os outros homens e com toda a criação[3]
Consequências do pecado
O mundo marcado pelo distanciamento de Deus acaba sofrendo as consequências desta opção dramática. Assim escreve Moysés Azevedo, fundador da Comunidade Católica Shalom:
Ē aí que se manifesta o desígnio de Deus para a nossa vocação. Em um mundo marcado pelo pecado, que errou bastante acerca do conhecimento de Deus, onde reinam tantos males, o ocultismo, a não conservação da pureza nem na vida, nem no matrimônio, a impureza, o adultério, sangue, perseguição dos bons, esquecimento da gratidão, impureza das almas, inversão sexual, desordens no casamento, despudor e etc, e ainda se diz ‘em paz’ (Sb14,22-26) ; o Senhor nos chama a ser anunciadores da Sua Paz (Is 52), a viver e proclamar a Sua Paz. [4]
Nesta citação, vemos uma relação direta entre pecado e ausência de paz. A paz significa “a felicidade perfeita, a salvação que o Messias viria dar, a plenitude da paz. A verdadeira paz (…) não vem dos homens, mas de Deus.”[5] O pecado gera desordem, desarmonia e um estilo de vida caótico, pois o homem passa a ser governado pelo que foi ferido em sua natureza. A cura da natureza humana que começa pela experiência com o Ressuscitado que passou pela Cruz, Cristo, e que continua por toda uma vida vivida na Graça de Deus, em união com Cristo, é o caminho para a harmonia no homem, que gera a verdadeira paz.
Reconciliado com Deus
O homem recriado em Cristo, novo Adão[6] (isto é, novo homem!) é o homem salvo, reconciliado com Deus e com todo o cosmos, pacificado. A Paz é uma expressão da natureza humana que foi resgatada de suas feridas e desordens. A Paz revela a plenitude da natureza humana. O homem criado à imagem e semelhança de Deus, salvo em Cristo, feito filho no Filho e por isso sendo elevado à uma nova dignidade, chamado a viver a vida divina, segundo a dinâmica da Trindade, no Espírito Santo, é um homem novo, que não mais deve ser arrastado por paixões desordenadas. São Paulo explica essa nova realidade vivida pela humanidade em Cristo em Romanos:
“Ou ignorais que todos os que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na sua morte pelo batismo para que, como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória do Pai, assim nós também vivamos uma vida nova. Se fomos feitos o mesmo ser com ele por uma morte semelhante à sua, sê-lo-emos igualmente por uma comum ressurreição.” [7]
Concluímos, portanto, que a atmosfera na qual se desenvolve uma humanidade nova é a Graça. O homem desfigurado pelo pecado pode, então, retornar ao estado de comunhão com Deus, não por meio de esforços que o descaracterizam – como defenderiam correntes hedonistas – mas pela livre abertura à ação da graça de Deus.
Por Daniel Ramos
Consagrado da Comunidade de Vida Shalom
Referências
[1] “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”- Mt 22,21
[2] ORIGENES, In Lucam homiliae, XXIX,5-6 SC 87, pp.454-457 ; PG 13,col.1900 A-B
[3] Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes, 13,§1
[4] L. AZEVEDO FILHO, Moysés, Escritos, Comunidade Católica Shalom, Ed. Shalom, Aquiraz, Brasil, 2012, 6a edição, p. 64-65
[5] L. AZEVEDO FILHO, Moysés, Escritos, Comunidade Católica Shalom, Ed. Shalom, Aquiraz, Brasil, 2012, 6a edição, p. 63
[6] Cf. Rm 5
[7] Rm 6,3-5 versão online : https://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/romanos/6/
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