Gabriel de Santa Maria Madalena, OCD
O meu espírito, ó Deus, é um espírito contrito; um coração contrito e humilhado vós não desprezais (Sl 51, 19). “De que serve jejuar, se com isso não vos importais? E mortificar-nos, se nisso não prestais atenção?” (Is 58, 3). Assim o povo de Israel, escrupuloso observante do jejum legal, elevava a Deus sua voz, como se pudesse apresentar direitos por causa de práticas de penitência destituídas de verdadeiro espírito de piedade! E respondia a voz de Deus: “Passais vosso jejum em disputas e em altercações, ferindo com o punho… É porventura este o jejum que me agrada?” (ibidem, 4-5).
Através da palavra divina, instrui a Igreja seus filhos sobre o verdadeiro sentido da penitência quaresmal: “Inutilmente se subtrai ao corpo o alimento, se não se afasta do pecado o espírito” (S. Leão Magno, IV Sermão de Quaresma). Se a penitência não conduz ao esforço interior para eliminar o pecado e praticar a virtude, não pode ser agradável a Deus que quer ser servido com coração humilde, puro, sincero. O egoísmo e a tendência a afirmar o próprio eu levam muito freqüentemente o homem a colocar-se como que no centro do universo, pisando os direitos dos outros e descuidando, portanto, a lei fundamental do amor fraterno. Por isso, os hebreus que se abstinham de alimento deitavam-se no saco e na cinza, mas não cessavam de oprimir o próximo, eram severamente repreendidos por Deus; e suas práticas de penitência, rejeitadas. Pouco ou nada vale impor-nos privações corporais se, depois, não sabemos renunciar aos próprios interesses, para respeitar e favorecer os do próximo; nem às próprias vistas para secundar as dos outros, se não procuramos concordar com todos e suportar pacientemente as injúrias recebidas.
Assinala a Sagrada Escritura, justamente no setor da caridade, o que tornam aceitas a Deus as práticas de penitência. O jejum que agrada ao Senhor, “não consiste, porventura, em repartir teu alimento com o faminto, em dar abrigo aos infelizes sem asilo, em vestir os maltrapilhos? Então sim, tua luz irromperia como aurora, e tuas feridas não tardariam a cicatrizar-se” (Is 58, 7-8). Então, a “luz” da boa consciência resplandecerá diante de Deus e dos homens, e “a ferida” do pecado será curada pelo verdadeiro amor para com Deus e os irmãos.
Os discípulos de Batista, admirados de que os de Jesus não observavam como eles o jejum, interrogaram um dia o Mestre a este respeito. E Jesus responde: “Podem, porventura, os convidados às núpcias afligirem-se enquanto o Esposo está com eles?” (Mt 9, 15). Para os hebreus era o jejum sinal de dor, de penitência, observado especialmente nas épocas de calamidades, para implorar a misericórdia de Deus, ou para exprimir arrependimento dos pecados. Mas agora que o Filho de Deus encontra-se na terra, celebrando suas núpcias com a humanidade, parece o jejum um contra-senso: aos discípulos de Jesus destina-se a alegria em vez do pranto. O próprio Cristo veio libertá-los do pecado; por isso a salvação deles não consiste tanto em penitências corporais, como em se abrirem totalmente à palavra e à graça do Salvador. Todavia não pretendeu Jesus, de modo algum, eliminar o jejum; ao contrário, ele mesmo já havia ensinado com que pureza de intenção deveriam praticá-lo, fugindo de toda espécie de ostentação com o fim de atrair os louvores alheios. “Quando jejuares, perfuma tua cabeça e lava teu rosto; assim não parecerá aos homens que jejuas… e teu Pai, que vê o que se passa em segredo, recompensar-te-á” (Mt 6, 17-18). E depois, aos discípulos do Batista, diz o Senhor: “Dias virão em que lhes será tirado o Esposo; então jejuarão” (Mt 9, 15).
O banquete de núpcias de que falou Jesus – comparando-se ao Esposo e seus discípulos aos convidados – não durará muito tempo; a morte violenta levará o Esposo e então os convidados, de luto, jejuarão. Todavia o jejum cristão não é somente sinal de dor pelo afastamento do Senhor, mas também de fé e esperança nele que permanece invisivelmente entre seus amigos, na Igreja, nos sacramentos, na Palavra; e um dia voltará de modo visível e glorioso. Sinal é, o jejum cristão, de vigília, mas vigília gozosa “na expectativa da feliz esperança e da aparição gloriosa de nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo” (Tt 2, 13). O jejum, como qualquer outra forma de penitência corporal, tem a finalidade de alcançar desapego mais profundo das satisfações terrenas, para tornar o coração mais livre e capaz de saborear as alegrias de Deus e, portanto, a alegria da Páscoa do Senhor.
Ó Senhor, no tempo de jejum, mantende desperta minha mente e reavivai em mim a salutar recordação do que misericordiosamente fizestes para meu bem, jejuando e rezando por mim… Houve, porventura, misericórdia maior que a vossa, Criador do céu? Por ela, do céu descestes a fim de sofrerdes fome e, em vossa Pessoa, a saciedade passar sede, a força experimentar fraqueza; a saúde, enfermidade; a vida, morrer!… Que maior misericórdia do que fazer-se criatura o Criador e servo o Senhor? Ser vendido quem veio para resgatar, humilhado quem exalta, morto quem ressuscita?
Entre as esmolas a fazer, ordenais-me dar pão a quem tem fome; e para dar-vos em alimento a mim, faminto, entregastes-vos, antes, às mãos dos carrascos. Mandais-me acolher os peregrinos, e por mim viestes à vossa própria casa e os vossos não vos receberão.
Que minha alma vos louve por vos mostrardes assim tão propício a perdoar todas as minhas iniqüidades, a curar todos os meus males, a arrancar da corrupção minha vida, a saciar com vossos bens, meu coração. Fazei que, enquanto jejuo, humilhe-se minha alma, vendo como vós, Mestre de humildade, vos humilhastes, fazendo-vos obediente até à morte de cruz.
Sto. Agostinho, Sermão 207, 1-2