O "Magnificat" da Igreja que está a caminho
Na fase actual da sua caminhada, a Igreja procura, pois, reencontrar a união de todos os que professam a própria fé em Cristo, para manifestar a obediência ao seu Senhor que orou por esta unidade, antes do seu iminente sacrifício. Ela vai avançando na "sua peregrinação… e anunciando a paixão e a morte do Senhor até que ele venha". "Prosseguindo entre as tentações e tribulações da caminhada, a Igreja é apoiada pela força da graça de Deus, que lhe foi prometida pelo Senhor, para que não se afaste da perfeita fidelidade por causa da fraqueza humana, mas permaneça digna esposa do seu Senhor e, com o auxílio do Espírito Santo, não cesse de se renovar a si própria até que, pela Cruz, chegue á luz que não conhece ocaso".
A Virgem Maria está constantemente presente nesta caminhada de fé do Povo de Deus em direcção à luz. Demonstra-o de modo especial o cântico do "Magnificat", que, tendo jorrado da profundidade da fé de Maria na Visitação, não cessa de vibrar no coração da Igreja ao longo dos séculos. Prova-o a sua recitação quotidiana na liturgia das Vésperas e em muitos outros momentos de devoção, quer pessoal, quer comunitária.
"A minha alma glorifica o Senhor,
e o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador,
porque olhou para a humildade da sua serva.
De hoje em diante todas as gerações
hão-de me chamar bem-aventurada.
Porque fez em mim grandes coisas o Todo-poderoso. E santo é o seu nome:
a sua misericórdia estende-se de geração em geração sobre aqueles que o temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos com os desígnios
que eles conceberam;
derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes
encheu de bens os famintos
e aos ricos despediu-os de mãos vazias.
Socorreu Israel, seu servo,
recordando-se da sua misericórdia,
como tinha prometido aos nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre"
(Lc 1, 46-55).
Quando Isabel saudou a jovem parente, que acabava de chegar de Nazaré, Maria respondeu com o Magnificat. Na sua saudação, Isabel tinha chamado a Maria: primeiro, "bendita" por causa do "fruto do seu ventre"; e depois, "feliz" (bem-aventurada) por causa da sua fé (cf. Lc 1, 42. 45 ). Estas duas palavras abençoantes referiam-se directamente ao momento da Anunciação. Agora, na Visitação, quando Isabel, na sua saudação, dá um testemunho daquele momento culminante, a fé de Maria enriquece-se de uma nova consciência e de uma nova expressão. Aquilo que no momento da Anunciação permanecia escondido na profundidade da "obediência da fé" dir-se-ia que agora daí irrompe, como uma chama clara e vivificante do espírito. As palavras usadas por Maria, no limiar da casa de Isabel, constituem uma profissão inspirada desta sua fé, na qual se exprime a resposta à palavra da revelação, com a elevação religiosa e poética de todo o seu ser no sentido de Deus. Nessas palavras sublimes, que são ao mesmo tempo muito simples e totalmente inspiradas nos textos sagrados do povo de Israel, transparece a experiência pessoal de Maria, o êxtase do seu coração. Resplandece nelas um clarão do mistério de Deus, a glória da sua inefável santidade, o amor eterno que, como um dom irrevogável, entra na história do homem.
Maria é a primeira a participar nesta nova revelação de Deus e, mediante ela, nesta nova "autodoação" de Deus. Por isso proclama: "Grandes coisas fez em mim … e santo é o seu nome". As suas palavras reflectem a alegria do espírito, difícil de exprimir: "O meu espírito exulta em Deus, meu Salvador". Porque "a verdade profunda, tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos… em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação". No arroubo do seu coração, Maria confessa ter-se encontrado no próprio âmago desta plenitude de Cristo. Está consciente de que em si está a cumprir-se a promessa feita aos pais e, em primeiro lugar, em favor de "Abraão e da sua descendência para sempre": que em si, portanto, como mãe de Cristo, converge toda a economia salvífica, na qual "de geração em geração" se manifesta Aquele que, como Deus da Aliança, "se recorda da sua misericórdia".
A Igreja, que desde o início modela a sua caminhada terrena pela caminhada da Mãe de Deus, repete constantemente, em continuidade com ela, as palavras do Magnificat. Nas profundidades da fé da Virgem Maria na Anunciação e na Visitação, a Igreja vai haurir a verdade acerca do Deus da Aliança; acerca de Deus que é Todo-poderoso e faz "grandes coisas" no homem: "santo é o seu nome". No Magnificat, ela vê debelado nas suas raízes o pecado do princípio da história terrena do homem e da mulher: o pecado da incredulidade e da "pouca fé" em Deus. Contra a "suspeita" que o "pai da mentira" fez nascer no coração de Eva, a primeira mulher, Maria, a quem a tradição costuma chamar "nova Eva" e verdadeira "mãe dos vivos", proclama com vigor a não ofuscada verdade acerca de Deus: o Deus santo e omnipotente, que desde o princípio é a fonte de todas as dádivas, aquele que "fez grandes coisas" nela, Maria, assim como em todo o universo. Deus, ao criar, dá a existência a todas as realidades; e ao criar o homem, dá-lhe a dignidade da imagem e da semelhança consigo, de modo singular em relação a todas as demais criaturas terrestres. E não se detendo na sua vontade de doação, não obstante o pecado do homem, Deus dá-se no Filho: "Amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito" (Jo 3, 16) Maria é a primeira testemunha desta verdade maravilhosa, que se actuará plenamente mediante "as obras e os ensinamentos" (cf. Act 1, 1) do seu Filho e, definitivamente, mediante a sua Cruz e Ressurreição.
A Igreja, que, embora entre "tentações e tribulações", não cessa de repetir com Maria as palavras do Magnificat, "escora-se" na força da verdade sobre Deus, proclamada então com tão extraordinária simplicidade; e, ao mesmo tempo, deseja iluminar com esta mesma verdade acerca de Deus os difíceis e por vezes intrincados caminhos da existência terrena dos homens. A caminhada da Igreja, portanto, já quase no final do Segundo Milénio cristão, implica um empenhamento renovado na própria missão. Segundo Aquele que disse de si: "(Deus) mandou-me a anunciar aos pobres a boa nova" (cf. Lc 4, 18), a Igreja tem procurado, de geração em geração, e procura ainda hoje cumprir esta mesma missão.
O seu amor preferencial pelos pobres acha-se admiravelmente inscrito no Magnificat de Maria. O Deus da Aliança, cantado pela Virgem de Nazaré, com exultação do seu espírito, é ao mesmo tempo aquele que "derruba os poderosos dos tronos e exalta os humildes… enche de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias … dispersa os soberbos… e conserva a sua misericórdia para com aqueles que o temem".
Maria está profundamente impregnada do espírito dos "pobres de Javé" que, segundo a oração dos Salmos, esperavam de Deus a própria salvação, pondo nele toda a sua confiança (Sl 25; 31; 35; e 55). Ela, na verdade, proclama o advento do mistério da salvação, a vinda do "Messias dos pobres" (cf. Is 11, 4; 61, 1). Haurindo certeza do coração de Maria, da profundidade da sua fé, expressa nas palavras do Magnificat, a Igreja renova em si, sempre para melhor, essa própria certeza de que não se pode separar a verdade a respeito de Deus que salva, de Deus que é fonte de toda a dádiva, da manifestação do seu amor preferencial pelos pobres e pelos humildes, amor que, depois de cantado no Magnificat, se encontra expresso nas palavras e nas obras de Jesus.
A Igreja, portanto, está bem cônscia – e na nossa época esta sua certeza reforça-se de modo particular – não só de que não podem ser separados estes dois elementos da mensagem contida no Magnificat, mas também de que deve outrossim ser salvaguardada cuidadosamente a importância que têm os "pobres" e a "opção em favor dos pobres" na palavra de Deus vivo. Trata-se de temas e problemas organicamente conexos com o sentido cristão da liberdade e da libertação. Maria, "totalmente dependente de Deus e toda ela orientada para Ele, ao lado do seu Filho, é a ícone mais perfeita da liberdade e da libertação da humanidade e do cosmos. É para Maria que a Igreja, da qual ela é Mãe e modelo, deve olhar, a fim de compreender na sua integralidade o sentido da própria missão".
Introdução
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