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O maior roubo de todos os tempos

comshalom

coluna da emmir 31.12

Comecei minha viagem descendo, apressada, as picadas estreitas das montanhas da Galileia. Tudo me empurrava, montanha abaixo, para a Judeia. As poucas pessoas que encontrava, a colher olivas ou carregar lenha recém-cortada, surpreendiam-se, quase apavoradas, com minhas roupas ocidentais, a vinte e um séculos delas. Não me importava. Tinha que chegar. Tinha que chegar o mais rápido possível.

Na planície, para minha surpresa, um casal, com um menino de uns três anos, me perguntou, sabe-se lá por que: “Vai para a Judeia, não é?”. E, sem esperar resposta, entrou no ritmo do meu andar apressado: “Vamos com você”.

Falante, a mulher explicou que o marido era um beberrão e ladrão, cuja vida era fugir dos romanos, que temia pelo futuro do filho, o pequeno Dimas. Ao ouvir o nome do “Bom Ladrão”, apressei o passo, dando uma olhada no menino mais feio que jamais vi.

Apressamos o passo e quase corríamos quando encontramos um grupo de mulheres, sozinhas, com suas meninas nos braços. Falavam do temor de que as filhas viessem a ser como elas: “de má vida”. E me apresentavam as meninas que vinham da Samaria, de Magdala, de Jerusalém, da Fenícia.

Nosso passo se apertava ao ponto de o coração parecer não aguentar mais. Não me preocupava em elucubrar por que estavam ali, como me haviam encontrado, por que não se importavam com minha cabeça sem véu, com meus tênis, calça comprida, blusa de malha. Todo meu ser era habitado por uma só ideia: chegar à Judeia. Chegar a Efrata.

Havia, claro, como em todo caminho de Israel, os leprosos e os cegos, os paralíticos e hidrópicos, que viviam nas periferias das cidades e da vida. O tormento começou quando pediram para juntar-se a nós. Teríamos que andar muito mais devagar ou – opção extrema! – carregá-los! Foram improvisadas padiolas com os mantos envelhecidos e sujos. Até os dos leprosos foram aceitos sem nojo nem preconceito. E nosso estranho bando, de uma loira fantasiada, com cegos e crianças carregados em alguns mantos; leprosos, outros cegos e mais bebês em outros mantos, seguia, sem fome nem sede, sem sono nem fadiga, para Belém de Efrata.

Foi fácil encontrar a gruta. Entrei primeiro, carregando o pequeno Dimas pela mão. Ele era meu álibi. Sabia bem que ele iria ser o ladrão dos ladrões, muito melhor larápio que o pai.

Ao vê-lo, a Senhora Menina agachou-se para tomá-lo nos braços, dizendo, com alegria, como se visse a criança mais linda e atraente do mundo: “Dimas, meu menino querido!”. Depois, me abraçou com o mesmo inesgotável amor que havia reservado ao pequeno futuro ladrão. Aliás, o amor parecia até ter crescido, e pensei como tinha sido esperta levando o Dimas à minha frente. “Venham, venham ver! ”, apressou-se, agora, ela. E, com cuidado, descobriu o rosto do Recém-Nascido para que, extasiados, o contemplássemos, Dimas e eu.

“Senhora, é que há outros lá fora…”, comecei a dizer, enquanto ela corria para a entrada, fazendo todos entrar, trazendo os cegos pela mão. Chamou primeiro as prostitutas, uma por uma, com suas filhas. Depois, os cegos, que apalparam com suas mãos sujas e grossas o rostinho suave do Recém-Nascido. Após esses dois grupos, a Senhora chamava um a um, repetindo o ritual de descobrir o Rostinho e cobri-lo outra vez, e descobrir para o próximo a ser chamado.

Fiquei por perto, sem largar o Dimas, torcendo para ser chamada outra vez. Não deu outra: José, pondo a mão no meu ombro e me conduzindo, disse, quase a uma só voz, com a Senhora Menina: “Venha, Dimas, venha, Emmir, Maria Emmir, vejam o Rosto da Misericórdia”.

Dimas e eu, com dois mil anos entre nós, bem que precisaríamos reconhecer aquele Rosto inesquecível em nossa hora de roubar o céu!

 

Maria Emmir Oquendo Nogueira

Cofundadora da Comunidade Católica Shalom

em “Entrelinhas” da Revista Shalom Maná
TT @emmiroquendo
Facebook/ mariaemmirnogueira
Coluna da Emmir – comshalom.org


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