Desde S. Francisco de Assis, o presépio inscreve-se na história da humanidade. Resume o espírito do Natal de Jesus, a festa de um nascimento que contém o mistério da encarnação de Deus num ser humano e desvela d’Ele uma nova imagem.
A literatura religiosa, olhar feliz da alma pura, luz do pensamento e expiração do coração inspirado, fornecia-lhe figuras, ao mesmo tempo que dava corpo à Beleza encarnada por meio de palavras cheias de amor não contido e de esperança no definitivo. Foi exteriorização da contemplação interior da suma Beleza encarnada num Menino. Ao longo de séculos, corações abismados na meditação transbordaram de poesia, prosa, hinos, oração, a enaltecer o imenso mistério da Palavra encarnada que mal cabia em palavras. Desde os primeiros Padres da Igreja aos monges da Idade Média, de Teresa de Jesus a Teresa do Menino Jesus, de João da Cruz a Ana Catarina Emmerich, de Luís de Camões a José Régio, a literatura religiosa serviu de caixa de ressonância à vitalidade da fé no mistério que o Natal de Jesus velava.
De entre a exuberante e mais antiga literatura religiosa que cantou o nascimento de Jesus distinguem-se os livros apócrifos, que influenciaram a expressão de sucessivos escritores, poetas, dramaturgos na tradição cristã. Apesar de excluídos do cânone bíblico por serem simples reinterpretações e amplificações tardias de textos canônicos ou por darem largas à ingenuidade e à fantasia religiosas ou por conterem desvios da fé mais pura, muitos apócrifos cristãos, escritos com reta intenção, contêm sãs expressões da fé, como a virgindade de Maria e a concepção virginal de Jesus.
Refletem intensa piedade popular e propunham-se preencher lacunas sobre momentos da vida de Jesus que os evangelhos canônicos deixam na penumbra ou omitem.
Os fenômenos acontecidos na altura do seu nascimento fascinaram a literatura apócrifa entre os fins do séc. I e o séc. V.
Enquanto a característica sobriedade dos evangelhos canônicos só afirma que Maria “deu à luz um filho e [José] pôs-lhe o nome de Jesus” (Mt 1,25) e que “teve o seu filho primogênito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7), a tradição cristã costuma situar o nascimento numa gruta. Ela vem de vários evangelhos apócrifos.
O Livro da Infância do Salvador, dependente do influente Proto-evangelho de Tiago (séc. II), conta que, tendo chegado a Belém, José procurou um sítio para Maria dar à luz. Viu um estábulo solitário e estabeleceu-se lá. E foi em busca de uma parteira. Chegando à gruta, esta viu o excesso de esplendor. Tendo entrado e verificado a virgindade de Maria, exclamou: “Virgem concebeu, virgem deu à luz e continua virgem”. E contou a Simão, filho de José, como viu o nascimento de Jesus.
Quando entrei, encontrei [Maria] a olhar para o céu e a falar sozinha. Penso que estava em oração e bendizia o Altíssimo… Nesse momento parou tudo, em absoluto silêncio e reverência: os ventos deixaram de soprar, nenhuma folha se movia nas árvores, nem se ouvia o murmúrio das águas; os rios ficaram imóveis e o mar sem ondulação… O menino resplandecia como o sol, limpíssimo e agradabilíssimo ao olhar, pois só ele apareceu como paz do universo. Na hora em que nasceu ouviu-se a voz de muitos espíritos invisíveis que diziam à uma: «Amém». E aquela luz multiplicou-se e escureceu com o seu esplendor o fulgor do sol, enquanto esta gruta foi inundada de intensa claridade e de um aroma suavíssimo… Então enche-me de coragem: inclinei-me e toquei [no menino], levantei-o nas minhas mãos com grande reverência… Examinei-o e vi que não estava minimamente manchado; todo o seu corpo era limpo, como o orvalho do Deus Altíssimo… Estando eu admirada ao ver que não chorava como costumam os recém-nascidos e tendo o olhar fixo nele, dirigiu-me um sorriso jucundíssimo; depois, abrindo os olhos, fixou em mim um olhar penetrante (62-76).
Segundo o Evangelho do Pseudo-Mateus, nº. 14, o nascimento de Jesus numa gruta contou com a presença do boi e do burro. É desse texto que provém à tradição cristã de colocá-los no presépio:
Três dias depois do nascimento do Senhor, Maria saiu da gruta e aposentou-se num estábulo. Foi lá que reclinou o menino num presépio; e o boi e o burro adoraram-no. Então se cumpriu o que tinha sido anunciado pelo profeta Isaías [1,3]: «o boi conheceu o seu dono e o asno o presépio do seu senhor». Até os próprios animais, entre os quais se encontrava, o adoravam sem cessar. Nisso teve cumprimento o que tinha predito o profeta Habacuc [em 3,2 na tradução grega]: «dar-te-ás a conhecer no meio de dois animais».
Estreitamente associada ao “nascimento de Jesus em Belém” está a narrativa da “chegada a Jerusalém de uns magos vindos do Oriente”, para “adorarem o rei dos judeus que acaba de nascer” (Mt 2,1). Na intenção teológica de Mateus, essa sóbria narração bastava para significar que Jesus era luz e salvação para os gentios como para os judeus e que os poderosos tentaram sufocar a voz de Jesus antes de ela poder ser ouvida e poder difundir a sua mensagem libertadora. Mas os apócrifos legaram-nos até aos dias de hoje a tradição com o número e os nomes dos magos e a sua designação de reis:
Um anjo do Senhor apressou-se a ir ao país dos persas para prevenir os reis magos e ordenar-lhes que fossem adorar o menino recém-nascido. Estes, depois de viajarem durante nove meses guiados por uma estrela, chegaram ao lugar de destino exatamente no momento em que Maria se tornava mãe… Tendo vindo com armada numerosa, chegaram à cidade de Jerusalém. E os três reis dos mencionados magos eram três irmãos: o primeiro era Melchior, que reinava sobre os persas; o segundo era Gaspar, rei dos indianos; e o terceiro era Baltasar, que dominava sobre o país dos árabes… Acamparam ao redor da cidade e lá permaneceram três dias, eles e os príncipes dos respectivos reinos. Embora sendo todos irmãos, filhos de um único rei, no seu séqüito marchavam forças de línguas muito diversas. Melchior, o primeiro rei, é o que tinha trazido mirra, aloés, púrpura, peças de linho e também livros, escritos e sigilados com o dedo de Deus. O segundo, o rei dos indianos, Gaspar, é o que tinha trazido como dons, em honra do menino, nardo precioso, mirra, canela, incenso e outros perfumes. O terceiro, o rei dos árabes, Baltasar, é o que tinha consigo ouro, prata, pedras preciosas, safiras de grande valor e pérolas apreciadas (Evangelho Armênio da Infância, 5,10 e 11,1-2).
A inspiradora imagética dos apócrifos assegurou-lhes continuada popularidade na literatura religiosa. Tem o mérito de apontar para o mistério que ela canta e a nós encanta, porque “só o mistério nos faz viver, só o mistério” (como diz García Lorca). Contribui para construirmos dentro de nós o presépio com Jesus, Maria e José, de história feita. As suas figuras reais e as pintadas pelo imaginário religioso vêm preencher o vazio de símbolos natalícios na atol ornamentação das nossas cidades e vilas, onde o resplendor das luzes é sedução comercial para ter mais para si, em vez de apelo espiritual para ser melhor para os outros. Continuar a meditar o Natal faz renascer a esperança e não a deixa esvaziar.
Armindo Vaz, Biblista
Agência Ecclesia