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O núcleo da mensagem do Santo Padre

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O núcleo da mensagem do Santo Padre, Bento XVI: o mistério de Deus(II)

No artigo anterior, sob este título, escutamos o Santo Padre dizer-nos que só Deus conhece Deus e que é em Cristo que Deus se apresenta a nós: “Se não conhecemos a Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se converte em um enigma indecifrável: não há caminho e, não havendo caminho, não há vida nem verdade.”. “Deus é a realidade fundante, não um Deus apenas pensado ou hipotético, mas um Deus de rosto humano; é o Deus-conosco, o Deus do amor até a Cruz. Quando o discípulo chega à compreensão deste amor de Cristo ‘até o extremo’, não pode responder a este amor senão com um amor semelhante: ‘seguir-te-ei aonde fores'”(Lc 9,57). Esse é o cerne da pregação de Bento XVI que se faz presente no conjunto de sua reflexão entre nós, da qual destaco a seguir cinco pontos.

A questão do método

Sem comunhão com Cristo não temos olhos para ver a realidade na sua verdade plena e discernir caminhos para a missão. É de dentro dessa experiência que o discípulo pode ver com verdade o real que o cerca. Na homilia da Santa Missa de abertura da Conferência, o Santo Padre, comentando a primeira leitura, parece ter querido prevenir contra uma aplicação excessivamente racionalista do método “Ver, Julgar e Agir”, quando disse: “os chefes da Igreja discutem e se defrontam, sempre, porém, em atitude de religiosa escuta da Palavra de Cristo no Espírito Santo. Por isso, no final podem afirmar: «Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós …» (At 15,28)” e mais adiante: “Este é o método com o qual nós agimos na Igreja, tanto nas pequenas como nas grandes assembléias. Não é uma simples questão de procedimento; é o resultado da mesma natureza da Igreja, mistério de comunhão com Cristo no Espírito Santo”. O olhar sobre a realidade histórica deve se valer da razão científica, mas, em todas suas etapas sempre transfigurado pela presença do Espírito. E aos bispos ele havia dito:”Não basta observar a realidade a partir da fé pessoal; é preciso trabalhar com o Evangelho nas mãos e fundamentados na correta herança da Tradição Apostólica, sem interpretações movidas por ideologias racionalistas”. É de dentro da realidade fundante, Deus, que se pode ver em profundidade a realidade histórica e nela perceber a presença do mistério, experimentado na interioridade pessoal e na comunhão eclesial.

Avaliação do esforço de evangelização das Américas

A convicção de que a fé no Deus de Jesus Cristo reúne a família de Deus, fazendo-nos Igreja, permite ao Santo Padre um olhar sobre a história da evangelização na América latina e no Caribe que, não obstante as violências cometidas, contra os povos nativos, explicita a autenticidade do esforço dos missionários que aqui vieram e plantaram a fé em Jesus Cristo: “A fé em Deus animou a vida e a cultura destes povos durante mais de cinco séculos. Do encontro dessa fé com as etnias originárias nasceu a rica cultura cristã deste Continente expressa na arte, na musica, na literatura e, sobretudo nas tradições religiosas e na idiossincrasia de seus povos, unidos por uma mesma história e um mesmo credo e formando uma grande sintonia na diversidade de culturas e de línguas”. Esta afirmação é fruto da convicção de que em Jesus Cristo o Deus Único, buscado como que “às apalpadelas”(At 17,22ss.) por todos os povos, mostrou toda a beleza de seu rosto, de modo que o encontro dos povos com Jesus Cristo liberta suas culturas para a plenitude que procuram. E é ainda fruto da convicção de que a Igreja, não obstante as fraquezas e pecados de seus filhos, por graça do Espírito Santo é, não apenas de direito, mas também de fato, o sacramento da salvação para todos os povos. A história, pois, de nossos povos, está marcada positivamente pela presença do evangelho trazido pela Igreja. Os quinhentos anos não foram, como tantas vezes em nossa pátria se sugeriu, anos apenas de sombras, foram também anos de muita luz e de autenticidade evangélica. Os anos vindouros, com certeza, serão “outros quinhentos”, não por ruptura radical, mas por revisão e aprofundamento da presença do evangelho na vida de nossos povos. Houve quem reagisse negativamente diante desse olhar do Santo Padre sobre a história da atuação da Igreja em nossa América, em razão dos muitos crimes cometidos contra os povos nativos e contra os negros, arrancados de sua pátria para servir aos interesses dos colonizadores. Acusam a Igreja, como se os antepassados deles não fossem co-responsáveis pelas manchas que enfeiam a história de nossos países. Mas é bom lembrar que foi o Marquês de Pombal quem expulsou os jesuítas de nossa pátria e impediu que a língua de nossos índios pudesse também ser língua pátria. Quem massacrou as missões que buscavam organizar, em moldes comunitários, a vida dos indígenas no sul de nosso país? De que lado estavam os antepassados daqueles que acusam a Igreja de ser a responsável pela destruição das culturas nativas? A convicção de que sem Deus o ser humano está fadado à morte e de que em Jesus nós o encontramos e de que a Igreja, pela atuação do Espírito, é seu sacramento – sacramento universal de salvação -, esta convicção nos impele ao testemunho e ao anúncio explícito do evangelho a todos os povos. Não há justificativas para não anunciar, é claro, tendo sempre em conta que o anúncio deve ser explicitação do testemunho de amor e de religioso respeito pelo outro: “só a verdade unifica e sua prova é o amor. Por isso Cristo, sendo realmente o Logos encarnado, ‘é amor até o extremo’, não é alheio a nenhuma cultura e a nenhuma pessoa; pelo contrário, é a resposta desejada no coração das culturas, é quem lhes dá sua identidade última, unindo a humanidade e respeitando por sua vez a riqueza das diversidades, abrindo todos ao crescimento na verdadeira humanização, no autêntico progresso. O Verbo de Deus, fazendo-se carne em Jesus Cristo, fez-se também história e cultura”.

Partir de Cristo

Aos bispos, na Catedral de São Paulo, o Santo Padre fez a seguinte convocação: “Recomeçar a partir de Cristo em todos os âmbitos da missão. Redescobrir em Jesus o amor e a salvação que o Pai nos dá, pelo Espírito Santo”. Este “recomeçar” me deixou pensativo. Por que “recomeçar”? Recomeçar “em todos os âmbitos da missão”, “a partir de Cristo”. Esse convite nos lembra João Paulo II na “Novo Millennio Ineunte”: Partir de Cristo. Esse é um apelo importante: recomeçar, isto é, todos os dias retomar o início, a raiz, a origem permanente da Igreja, sua razão de ser: Jesus Cristo. Todas as exigências da missão, todos seus desdobramentos, devem estar marcados pela presença da pessoa de Jesus Cristo. Ele é a realidade maior, o primeiro e o último, o fundamento. E logo adiante: “A fé é uma caminhada conduzida pelo Espírito Santo que se resume em duas palavras: conversão e seguimento. Essas duas palavras-chave da tradição cristã indicam com clareza, que a fé em Cristo implica uma práxis de vida baseada no dúplice mandamento do amor, a Deus e ao próximo, e exprimem também a dimensão social da vida cristã. Sobre o sacerdote: “o sacerdote deve ser antes de tudo um “homem de Deus” (1Tim 6,11); um homem que conhece a Deus “em primeira mão”, que cultiva uma profunda amizade pessoal com Jesus, que compartilha os “sentimentos de Jesus” (cf. Fil 2,5). Somente assim o sacerdote será capaz de levar Deus – o Deus encarnado em Jesus Cristo – aos homens, e de ser representante do seu amor”.

Importância da catequese

Se evangelizar é a razão de ser da Igreja, conforme ensinamento de Paulo VI, o anúncio querigmático e a catequese, sempre em contexto de autêntico testemunho, devem ser a primeira ocupação da Igreja. “Conversão e seguimento” são provocados pelo anúncio e por uma catequese que jamais pode perder seu sabor querigmático, como nos recordavam os bispos do Brasil: “para que a proclamação da Palavra seja eficaz.é necessário que ela se faça com a força impactante da profecia, com audácia ( parhessia), capaz de ressoar nas raízes da pessoa, lá onde Deus plantou o desejo de encontrá-lo. Ao ouvir o querigma, a pessoa deveria poder experimentar a Morte e Ressurreição do Senhor como mistério que a envolve e lhe afeta profundamente a própria existência. Quem o proclama, se não o faz dentro dessa mesma experiência, não estará falando de uma realidade atual que lhe toca as raízes e, por isso, torna-se incapaz de fazer uma proclamação que leve à conversão”(Doc. 80 da CNBB). O Santo Padre insistiu também, na fala aos bispos na Sé catedral de São Paulo, na importância da catequese: “Um grande meio para introduzir o Povo de Deus no mistério de Cristo é a catequese. Nela se transmite de forma adaptada e substancial a mensagem de Cristo. Convém, pois, intensificar a catequese e a formação da fé, tanto das crianças como dos jovens e adultos. A reflexão madura da fé é luz para o caminho da vida e força para ser testemunhas de Cristo. Para isso se dispõe de instrumentos muito valiosos como são o catecismo da Igreja Católica e sua versão mais breve, o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica”.

Os problemas sociais e políticos

O encontro com o Verbo Encarnado nos impele à comunhão com o outro que sofre e nos convida a colocar todo o empenho possível no sentido de criar as condições de vida digna para todos. Aqui o Santo Padre coloca a questão das estruturas que deverão ser tais que permitam a todos viver com dignidade. Mas, como as estruturas não funcionam independentemente das pessoas, é necessário que a sociedade no seu conjunto chegue a um consenso sobre os valores que devem reger a vida social. Donde a afirmação: “onde Deus está ausente – o Deus do rosto humano de Jesus Cristo – estes valores não se mostram com toda a sua força, nem se produz um consenso sobre eles. Não quero dizer que os não-crentes não possam viver uma moralidade elevada e exemplar; digo apenas que uma sociedade em que Deus está ausente não encontra o consenso necessário sobre os valores morais e a força para viver segundo esses valores”. E mais adiante: “as estruturas justas jamais estarão prontas de forma definitiva; em razão da constante evolução da história deverão ser sempre renovadas e atualizadas; deverão ser animadas sempre por um ‘ethos’ político e humano, por cuja presença e eficiência se deve trabalhar sempre. Em outras palavras, a presença de Deus, a amizade com o Filho de Deus encarnado, a luz de sua Palavra, são sempre condições fundamentais para a presença e eficiência da justiça e do amor em nossas sociedades” E vem logo uma observação que dá o que pensar a nós bispos: “por tratar-se de um continente de batizados, convém sublinhar a notável ausência, em âmbito político, comunicativo e universitário, de vozes e iniciativas de líderes católicos de forte personalidade e de vocação abnegada, que sejam coerentes com suas convicções éticas e religiosas. Os movimentos eclesiais têm aqui um amplo campo para recordar aos leigos sua responsabilidade e sua missão de levar a luz do evangelho à vida pública, cultural, econômica e política.”

Três conclusões, entre outras possíveis

1. A missão é exigente e ampla. Ficam de pé todas as propostas de atuação da Igreja de Medellin até Santo Domingo. Outros desafios se acrescentam como nos lembrou o Santo Padre no n. 2 de sua fala inaugural: “Continuidade com as outras Conferências”. Mas o desafio maior diz respeito à missão fundamental da Igreja: fazer discípulos autênticos, capazes de dar a vida. Não haverá discípulos sem o encontro com Jesus Cristo vivo e sem uma permanente busca de identificação com Ele. E isso é fruto do anúncio querigmático e de uma catequese sempre de novo remetida ao querigma, acompanhada de profunda vivência do mistério, celebrado na liturgia e explicitado em uma vida moral pautada nos apelos do evangelho. Não nos iludamos: não basta detectar os problemas sociais que afligem nossos povos, – esse é o risco de um “Ver, Julgar e Agir” onde predomina o sociológico -, se não fazemos novos e autênticos discípulos, que tenham experimentado Jesus como salvador de suas próprias vidas, e, por isso, se disponham a oferecer suas vidas por Ele e pelos irmãos. A Igreja existe para isso: fazer discípulos, libertos na comunhão com Deus e para a comunhão com Deus e com os irmãos, que só então se tornam capazes de lutar pela justiça.

2. Não podemos calar nossa identidade. O mistério de Deus – do Deus revelado em Jesus -, é a razão de ser da Igreja e deve caracterizar explicitamente toda nossa vida e marcar nossa atuação no mundo. A convicção de que sem uma sincera e explícita busca de Deus não é possível ser feliz e nem é possível organizar o mundo segundo as exigências do amor e da justiça deve urgir um empenho renovado de anúncio explícito do Ressuscitado, como o fizeram os apóstolos no início da pregação, tanto a judeus como a pagãos. Naturalmente esse anúncio deve se enraizar no testemunho, que se concretiza no serviço e no diálogo.

3. A certeza de que os bispos, reunidos em Aparecida, sob a proteção de Nossa Senhora e guiados pela luz do Espírito, estão trabalhando com afinco e espírito de fé, deve preparar nossas mentes e nossos corações para acolher com docilidade suas conclusões como indicações do Senhor para nossas Igrejas Particulares. Lembremo-nos da referência do Santo Padre ao método das assembléias da Igreja: «Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós …» (At 15,28)”: “Este é o método com o qual nós agimos na Igreja, tanto nas pequenas como nas grandes assembléias. Não é uma simples questão de procedimento; é o resultado da mesma natureza da Igreja, mistério de comunhão com Cristo no Espírito Santo”

*Dom Eduardo B. S. Rodrigues

Arcebispo de Sorocaba (SP)

Fonte: CNBB


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