Formação

O perigo do dualismo e a hermenêutica secularizada

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 35. A este propósito, é preciso sublinhar hoje o grave riscode um dualismo que se gera ao abordar as Sagradas Escrituras. De facto,distinguindo os dois níveis da abordagem bíblica, não se pretende de modo algumsepará-los, contrapô-los, ou simplesmente justapô-los. Só funcionam emreciprocidade. Infelizmente, não raro uma infrutífera separação dos mesmos levaa exegese e a teologia a comportarem-se como estranhas; e isto «acontece mesmoaos níveis académicos mais altos».[109] Desejo aqui lembrar as consequênciasmais preocupantes que se devem evitar.

 a) Antes de mais nada, se a actividade exegética se reduz sóao primeiro nível, consequentemente a própria Escritura torna-se um texto só dopassado: «Daí podem-se tirar consequências morais, pode-se aprender a história,mas o Livro como tal fala só do passado e a exegese já não é realmenteteológica, mas torna-se pura historiografia, história da literatura».[110] Éclaro que, numa tal redução, não é possível de modo algum compreender oacontecimento da revelação de Deus através da sua Palavra que nos é transmitidana Tradição viva e na Escritura.

 b) A falta de uma hermenêutica da fé na abordagem daEscritura não se apresenta apenas em termos de uma ausência; o seu lugar acabainevitavelmente ocupado por outra hermenêutica, uma hermenêutica secularizada,positivista, cuja chave fundamental é a convicção de que o Divino não aparecena história humana. Segundo esta hermenêutica, quando parecer que há umelemento divino, isso deve-se explicar de outro modo, reduzindo tudo aoelemento humano. Consequentemente propõem-se interpretações que negam a historicidadedos elementos divinos.[111]

 c) Uma tal posição não pode deixar de danificar a vida daIgreja, fazendo surgir dúvidas sobre mistérios fundamentais do cristianismo esobre o seu valor histórico, como, por exemplo, a instituição da Eucaristia e aressurreição de Cristo. De facto, assim impõe-se uma hermenêutica filosófica,que nega a possibilidade de ingresso e presença do Divino na história. Aassunção de tal hermenêutica no âmbito dos estudos teológicos introduz,inevitavelmente, um gravoso dualismo entre a exegese, que se situa unicamenteno primeiro nível, e a teologia que leva a uma espiritualização do sentido dasEscrituras não respeitadora do carácter histórico da revelação.

 Tudo isto não pode deixar de resultar negativo também para avida espiritual e a actividade pastoral; «a consequência da ausência do segundonível metodológico é que se criou um fosso profundo entre exegese científica electio divina. E precisamente daqui nasce às vezes uma forma de perplexidade naprópria preparação das homilias».[112] Além disso, há que assinalar que taldualismo produz às vezes incerteza e pouca solidez no caminho de formaçãointelectual mesmo de alguns candidatos aos ministérios eclesiais.[113] Enfim,«onde a exegese não é teologia, a Escritura não pode ser a alma da teologia e,vice-versa, onde a teologia não é essencialmente interpretação da Escritura naIgreja, esta teologia já não tem fundamento».[114] Portanto, é necessáriovoltar decididamente a considerar com mais atenção as indicações dadas pelaConstituição dogmática Dei Verbum a este propósito.

 Fé e razão na abordagem da Escritura

 36. Creio que pode contribuir para uma compreensão maiscompleta da exegese e, consequentemente, da sua relação com a teologia inteiraaquilo que escreveu o João Paulo II na Encíclica Fides et ratio a esterespeito. Afirmava ele que não se deve subestimar «o perigo que existe quandose quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a aplicação de uma únicametodologia, esquecendo a necessidade de uma exegese mais ampla que permita oacesso, em união com toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos. Os que sededicam ao estudo da Sagrada Escritura nunca devem esquecer que as diversasmetodologias hermenêuticas têm também na sua base uma concepção filosófica: épreciso examiná-las com grandediscernimento, antes de as aplicar aos textos sagrados».[115]

 Esta clarividente reflexão permite-nos ver como, naabordagem hermenêutica da Sagrada Escritura, está em jogo inevitavelmente arelação correcta entre fé e razão. De facto, a hermenêutica secularizada da SagradaEscritura é actuada por uma razão que quer estruturalmente fechar-se àpossibilidade de Deus entrar na vida dos homens e falar aos homens com palavrashumanas. Por isso é necessário, também neste caso, convidar a alargar osespaços da própria racionalidade.[116] Na utilização dos métodos de análisehistórica, dever-se-á evitar de assumir, sempre que aparecem, critérios quepreconceituosamente se fechem à revelação de Deus na vida dos homens. A unidadedos dois níveis do trabalho interpretativo da Sagrada Escritura pressupõe, emúltima análise, uma harmonia entre a fé e a razão. Por um lado, é necessáriauma fé que, mantendo uma adequada relação com a recta razão, nunca degenere emfideísmo, que se tornaria, a respeito da Escritura, fautor de leituras fundamentalistas.Por outro, é necessária uma razão que, investigando os elementos históricospresentes na Bíblia, se mostre aberta e não recuse aprioristicamente tudo o queexcede a própria medida. Aliás, a religião do Logos encarnado não poderá deixarde apresentar-se profundamente razoável ao homem que sinceramente procura averdade e o sentido último da própria vida e da história.

 Sentido literal e sentido espiritual

 37. Como foi afirmado na assembleia sinodal, umsignificativo contributo para a recuperação de uma adequada hermenêutica daEscritura provém de uma renovada escuta dos Padres da Igreja e da sua abordagemexegética.[117] Com efeito, os Padres da Igreja oferecem-nos, ainda hoje, umateologia de grande valor, porque no centro está o estudo da Sagrada Escriturana sua integridade. De facto, os Padres são primária e essencialmente«comentadores da Sagrada Escritura».[118] O seu exemplo pode «ensinar aosexegetas modernos uma abordagem verdadeiramente religiosa da Sagrada Escritura,e também uma interpretação que se atém constantemente ao critério de comunhãocom a experiência da Igreja, que caminha através da história sob a guia doEspírito Santo».[119]

 Apesar de não conhecer, obviamente, os recursos de ordemfilológica e histórica à disposição da exegese moderna, a tradição patrística emedieval sabia reconhecer os vários sentidos da Escritura, a começar peloliteral, isto é, «o expresso pelas palavras da Escritura e descoberto pelaexegese segundo as regras da recta interpretação».[120] Por exemplo, São Tomásde Aquino afirma: «Todos os sentidos da Sagrada Escritura se fundamentam noliteral».[121] É preciso, porém, recordar-se de que, no período patrístico emedieval, toda a forma de exegese, incluindo a literal, era feita com base nafé, não havendo necessariamente distinção entre sentido literal e sentidoespiritual. A propósito, recorde-se o dístico clássico que traduz a relaçãoentre os diversos sentidos da Escritura:

 «Littera gesta docet, quid credas allegoria,

Moralis quid agas, quo tendas anagogia.

A letra ensina-te os factos [passados], a alegoria o quedeves crer,

A moral o que deves fazer, a anagogia para onde devestender».[122]

 Sobressai aqui a unidade e a articulação entre sentidoliteral e sentido espiritual, o qual, por sua vez, se subdivide em trêssentidos que descrevem os conteúdos da fé, da moral e da tensão escatológica.

 Em suma, reconhecendo o valor e a necessidade – apesar dosseus limites – do método histórico-crítico, pela exegese patrística, aprendemosque «só se é fiel à intencionalidade dos textos bíblicos na medida em que seprocura encontrar, no coração da sua formulação, a realidade de fé que osmesmos exprimem e em que se liga esta realidade com a experiência crente donosso mundo».[123] Somente nesta perspectiva se pode reconhecer que a Palavrade Deus é viva e se dirige a cada um de nós no momento presente da nossa vida.Continua assim plenamente válida a afirmação da Pontifícia Comissão Bíblica quedefine o sentido espiritual, segundo a fé cristã, como «o sentido expressopelos textos bíblicos quando são lidos sob o influxo do Espírito Santo nocontexto do mistério pascal de Cristo e da vida nova que dele resulta. Estecontexto existe efectivamente. O Novo Testamento reconhece nele o cumprimentodas Escrituras. Por isso, é normal reler as Escrituras à luz deste novocontexto, o da vida no Espírito».[124]

 A necessária superação da «letra»

 38. Para se recuperar a articulação entre os diversossentidos da Escritura, torna-se então decisivo identificar a passagem entreletra e espírito. Não se trata de uma passagem automática e espontânea; antes,é preciso transcender a letra: «de facto, a Palavra do próprio Deus nunca seapresenta na simples literalidade do texto. Para alcançá-la, é precisotranscender a literalidade num processo de compreensão, que se deixa guiar pelomovimento interior do conjunto e, portanto, deve tornar-se também um processode vida».[125] Descobrimos assim o motivo por que um autêntico processointerpretativo nunca é apenas intelectual, mas também vital, que requer o plenoenvolvimento na vida eclesial enquanto vida «segundo o Espírito» (Gl 5, 16).Deste modo tornam-se mais claros os critérios evidenciados pelo número 12 daConstituição dogmática Dei Verbum: a referida superação não pode verificar-seno fragmento literário individual mas em relação com a totalidade da Escritura.De facto, é uma única Palavra aquela para a qual somos chamados a transcender.Este processo possui uma íntima dramaticidade, porque, no processo desuperação, a passagem que acontece em virtude do Espírito tem inevitavelmente aver também com a liberdade de cada um. São Paulo viveu plenamente na suaprópria vida esta passagem. O que significa transcender a letra e a suacompreensão unicamente a partir do conjunto, expressou-o ele de modo radicalnesta frase: «A letra mata, mas o Espírito vivifica» (2 Cor 3, 6). São Paulodescobre que «o Espírito libertador tem um nome e que a liberdade tem,consequentemente, uma medida interior: “O Senhor é Espírito, e onde está oEspírito do Senhor há liberdade” (2 Cor 3, 17). O Espírito libertador não ésimplesmente a própria ideia, a visão pessoal de quem interpreta. O Espírito éCristo, e Cristo é o Senhor que nos indica a estrada».[126] Sabemos como estapassagem foi dramática e simultaneamente libertadora em Santo Agostinho; eleacreditou nas Escrituras, que antes se lhe apresentavam muito diversificadas emsi mesmas e às vezes indelicadas, precisamente por esta superação que aprendeude Santo Ambrósio mediante a interpretação tipológica, segundo a qual todo oAntigo Testamento é um caminho para Jesus Cristo. Para Santo Agostinho,transcender a letra tornou credível a própria letra e permitiu-lhe encontrarfinalmente a resposta às profundas inquietações do seu espírito, sedento daverdade.[127]

 A unidade intrínseca da Bíblia

 39. Na escola da grande tradição da Igreja, aprendemos napassagem da letra ao espírito a identificar também a unidade de toda aEscritura, pois única é a Palavra de Deus que interpela a nossa vida,chamando-a constantemente à conversão.[128] Continuam a ser para nós uma guiasegura as expressões de Hugo de São Víctor: «Toda a Escritura divina constituium único livro e este único livro é Cristo, fala de Cristo e encontra em Cristoa sua realização».[129] É certo que a Bíblia, vista sob o aspecto puramentehistórico ou literário, não é simplesmente um livro, mas uma colectânea detextos literários, cuja redacção se estende por mais de um milénio e cujosdiversos livros não são facilmente reconhecíveis como partes duma unidadeinterior; antes, há tensões palpáveis entre eles. Se isto já se verifica nointerior da Bíblia de Israel, que nós, cristãos, chamamos Antigo Testamento,muito mais quando nós, como cristãos, ligamos o Novo Testamento e os seusescritos – como se fosse a chave hermenêutica – com a Bíblia de Israelinterpretando-a como caminho para Cristo. No Novo Testamento, aparece menos aexpressão «a Escritura» (cf. Rm 4, 3; 1 Pd 1, 6), do que «as Escrituras» (cf.Mt 21, 43; Jo 5, 39; Rm 1, 2; 2 Pd 3, 16), que porém, no seu conjunto, sãodepois consideradas como a única Palavra de Deus dirigida a nós.[130] Por issose vê claramente como é a pessoa de Cristo que dá unidade a todas as«Escrituras» postas em relação com a única «Palavra». Compreende-se assim aafirmação do número 12 da Constituição dogmática Dei Verbum, quando indica aunidade interna de toda a Bíblia como critério decisivo para uma correctahermenêutica da fé.

Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini –Introdução »

I Parte:
O Deus que fala »
Cristologia da Palavra »
A Palavra de Deus e o Espírito Santo »
Deus Pai, fonte e origem da Palavra »
A hermenêutica da Sagrada Escritura na Igreja »
O perigo do dualismo e a hermenêutica secularizada »
A relação entre Antigo e Novo Testamento »
Diálogo entre Pastores, teólogos e exegetas »

II – Parte:
A Igreja acolhe a Palavra »
A sacramentalidade da Palavra »
A palavra de Deus na vida eclesial »
Leitura orante da Sagrada Escritura e "lectio divina" »

III-Parte
A missão da Igreja: anunciar a palavra de Deus ao mundo »
Palavra de Deus e compromisso no mundo »
Anúncio da Palavra de Deus e os migrantes »
A Sagrada Escritura nas diversas expressões artísticas »
Palavra de Deus e diálogo inter-religioso »

Conclusão
A palavra definitiva de Deus »


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