Hoje, no Tabor, transformou Cristo a escura natureza de Adão: revestindo-a de seu esplendor, divinizou-a. [1]
Dentre as teofanias narradas nas sagradas escrituras, a Transfiguração é a que traduz profundamente a teologia da divinização do homem. No Tabor, Cristo transforma a natureza humana, escurecida em Adão, revestindo-a com o seu esplendor. De forma concreta se percebe que Cristo não se despe de sua divindade, mas reveste a humanidade de sua glória.
Segundo a tradição, o evento da transfiguração ocorreu 40 dias antes da crucificação, ela é a ponte que introduz no calvário e por fim na ressurreição, situada antes do anúncio da paixão e da morte, prepara-os para a compreensão deste mistério. Quase que na mesma dinâmica a Igreja celebra a festa 40 dias antes da Exaltação da Santa Cruz, ou seja, no dia 6 de agosto. Desde o século V, a Igreja faz memória daquele dia em que o Pai dá testemunho do Filho diante de Pedro, João e Tiago.
De forma quase idêntica, a transfiguração é narrada pelos evangelhos sinóticos, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão (Cf. Mt 17,1). São João Crisóstomo afirma que estes foram escolhidos pois “Pedro amava a Jesus mais do que os outros, João porque era amado por Jesus mais do que os outros, e Tiago porque se unira na resposta do irmão: ‘Sim, podemos beber do teu cálice’ (cf. Mt 20,22).”
Há na transfiguração uma nova manifestação trinitária, após a ocorrida no batismo a voz do Pai dá testemunho, o Espírito ilumina e o Filho recebe e manifesta a palavra e a luz. Para mergulharmos no sentido profundíssimo desta festa recorreremos a iconografia cristã, que traz para nós o Ícone da transfiguração do Senhor, também chamado de Ícone da Luz, pois é exatamente disso que fala.
A cena mostra Cristo que sobe com os três apóstolos ao monte Tabor e lá se transfigura diante deles. “Seu rosto resplandeceu como o sol, suas vestes tornaram-se brancas como a luz, tão brancas que nenhuma lavadeira do mundo poderia alvejá-las” (Cf. Mt. 17,2; Mc.9,3).
Aparecem então Moisés e Elias, que conversavam com Jesus. Os apóstolos caem com a face em terra diante de tamanha glória. Pedro ousa elevar o olhar e diz: “Rabbi, é bom estarmos aqui; vamos erguer três tendas: uma para ti, uma para Moisés, outra para Elias”. Eis que apareceu uma nuvem que os encobriu e dela veio uma voz que dizia: “este é meu Filho bem-amado, ouvi-o!”. Logo após, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, só, em sua simplicidade humana, com eles.
O monte
A montanha é nas sagradas escrituras o Lugar da revelação de Deus, é precisamente no Horeb que Deus dá-se a conhecer a Moisés, essa manifestação é como a transfiguração, expressa o desejo de Deus de dialogar com o homem, de tornar-se parte de sua vida. Dialogo é sinônimo de oração, amizade com Deus, conhecimento de Deus; é no alto do monte que Deus se revela, foi assim com Moisés, com Elias e agora com os discípulos aos quais Cristo deseja levar aos cumes do Seu conhecimento.
Para alcançar o topo é necessário um caminho árduo, a subida do monte faz perceber que no meio do caminho existem pedras, espinhos, que a posse dos bens tanto materiais como espirituais pesa muito e pode impedir o homem de atravessar para chegar, ou melhor, para retornar a Deus. O cenário do ícone é rochoso para expressar justamente essa realidade.
Os apóstolos
Na parte inferior do ícone encontramos os apóstolos, que apontam aquilo que é terreno, eles caem com o rosto por terra (cf Mt 17,6) por não suportarem o esplendor da glória de Deus, assim como Elias e Moisés era preciso esconder o rosto, pois este Deus é “Terrível”. Lucas fala de um sono (Cf. Lc. 9,32) os discípulos mergulham na escuridão e ao acordar deparam-se com Cristo envolto em sua glória.
Apesar de não entender o que está acontecendo vivem este momento de forma intensa, um misto de alegria celeste e de temor toma conta deles e os leva a sentir o desejo ardente de permanecer ali, é Pedro quem o expressa quando diz: “É bom estarmos aqui!”. No alto do Tabor, Cristo transfigura a existência dos apóstolos, infundindo neles a vocação à santidade. Cristo insere os discípulos no coração da Trindade, infunde no coração deles o desejo de buscar o alto.
Mas os discípulos se assustam, como pode? Há uma belíssima cena Cristo glorioso, aquela que contemplarão mais uma vez no dia da ressurreição, o desejo do céu, a beleza de Cristo não os impede de sentirem-se atemorizados diante da majestade divina, é a experiência do Tudo e do nada, da grandeza e da pequenez que provoca o medo, mas um medo saudável, que recorda ao homem quem é Deus e o desperta sempre mais no caminho da santidade.
Sobre isso, São Francisco nos ensina muito quando inúmeras vezes repetia diante do Crucifixo de São Damião: “Quem sois vós, Senhor, e quem sou eu?”. E respondia ele mesmo a pergunta: “Vós, o altíssimo Senhor do céu e da terra; e eu um miserável vermezinho, vosso ínfimo servo”. É uma experiência de Tabor reconhecer-se pequeno e contemplar a grandeza de Deus.
Moisés e Elias
Os discípulos veem dois personagens ao lado de Jesus, Moisés e Elias: A lei e os profetas que se inclinam em adoração a Cristo, centro, personificação e o cumprimento da Lei e de toda Profecia. Eles podem contemplar aquilo que tantos profetas profetizaram e esperaram, Cristo (Cf. Lc. 10,23). A primeira aliança aponta para a última. “Moisés e Elias tiveram de receber a revelação no monte de Deus; eles estão agora conversando com aquele que é em pessoa a revelação de Deus”[2].
Moisés, à direita, trás consigo um volume da Lei, que parece oferecer ao Cristo que já prefigurado pela pessoa de Moisés no Antigo Testamento tem nas mãos o Evangelho, que de forma perfeita contém toda a lei e o cumprimento da profecia.
Orígenes diz que o erro de Pedro ao expressar o desejo de construir três tendas parte do princípio de que “para a Lei, os Profetas e o Evangelho não existem três tendas mas uma só, que é a Igreja de Deus”[3]. Elias à esquerda aponta para o Cristo, identificando-o como o centro de toda profecia, ele que tivera uma experiência com o Todo-Poderoso no Horeb agora não precisa mais cobrir o rosto, vê a Deus face a face e fala-lhe como a um amigo.
Há um diálogo entre os três, Lucas sublinha “que apareceram envoltos em glória, e falavam da morte dele, que se havia de cumprir em Jerusalém” (Cf. Lc. 9,31). “O tema do seu diálogo é a cruz, mas entendida de um modo envolvente como o êxodo de Jesus, cujo lugar devia ser Jerusalém. A cruz de Jesus é êxodo: partida desta vida, passagem através do “mar vermelho” da paixão e ida para a glória, na qual permanecem os sinais das chagas”[4]. Um hino da liturgia bizantina recita: “Conversando com Cristo, Moisés e Elias revelam que ele é o Senhor dos vivos e dos mortos, o Deus que tinha falado na lei e nos profetas; e a voz do Pai, que sai da nuvem luminosa, “dá-lhe testemunho”.
O Cristo
No centro do ícone, assim como no texto do evangelho, está o Cristo, isso retrata, como já citamos que ele é o centro de tudo, “por Ele todas as coisas foram feitas”[5], é dele que emana a luz que ilumina a cena, Ele é a “Luz da Luz”[6], uma luz incriada que dissipa as trevas, põe fim ao torpor e anuncia uma beatitude que não passará. “As vestes brancas de luz de Jesus falam também na transfiguração a respeito do nosso futuro.
No Apocalipse, as vestes brancas são expressão do ser celeste — as vestes dos anjos e dos eleitos. Assim, o Apocalipse de S. João fala das vestes brancas que os que foram redimidos podem trazer (Cf. especialmente Ap. 7,9.13; 19,14). Porém, ele nos permite saber agora algo de novo: as vestes dos eleitos são brancas, porque foram lavadas no sangue do cordeiro (Ap. 7,14). Isto é, porque pelo Batismo foram ligadas com a paixão de Jesus, e a sua paixão é a purificação que restitui a veste original, que perdemos pelo pecado (cf. Lc 15,22). Por meio do batismo, somos revestidos com Jesus na luz e tornamo-nos nós mesmos luz”[7].
Da luz de Cristo partem três raios que incidem diretamente sobre os apóstolos, que como abemos caem por terra, pois nenhum homem pode ver a face de Deus e continuar vivo (Cf. Ex. 33,20). Os círculos ao redor da figura de Jesus representam os céus. Percebe-se que Ele ultrapassa os seus limites, pois nem mesmo os céus são capazes de conter tamanha grandeza.
A nuvem sagrada, a Shekhina, sinaliza a presença do próprio Deus. Na Tradição veterotestamentária, a nuvem sobre a tenda da revelação mostrava presença de Deus. Jesus é a tenda sobre a qual está a nuvem e é a partir daí que todos são envolvidos por sua sombra.
Vemos ainda uma cena um tanto familiar, da nuvem ressoa clara a voz que diz: “Este é o meu Filho muito amado; ouvi-o!” (Cf. Lc. 9,35). A proclamação da filiação acrescenta-se um imperativo: “Ouvi-o!”. Podemos lembrar a subida de Moisés ao monte, onde recebeu a lei, agora sobre um monte é dito de Cristo “A Ele deveis escutar!”, a aparição termina e os discípulos descem com esta ordem intima, “escutai-o!”.
E eles essas palavras guardaram, aprenderam e ensinaram, de modo que elas chegaram até nós. Esta também deve ser a nossa missão. Que neste dia, possamos escutar a voz do Senhor e anunciá-la àqueles que a desconhecem.
Vinícius Ribeiro
Missionário da Comunidade Católica Shalom
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[1] Hino da festa da Transfiguração do Senhor, Tradição Bizantina.
[2] Bento XVI, Jesus de Nazaré, capitulo 09.
[3] Orígenes. In Lev., Hom.VI, 2.
[4] Idem (2).
[5] Simbolo Niceno Constantinopolitano.
[6] Idem (4).
[7] Bento XVI, Jesus de Nazaré, capitulo 09.
Aprecie muito este estudo sobre a Transfiguração do Senhor. Foi uma experiência muito especial o que presenciaram naquele momento, os três Apóstolos: Pedro, Tiago e João.
Como Jesus sabia que mesmo convivendo eles dia a dia, eles ainda tinham muitas dúvidas, então Jesus os levou para ver de perto essa unidade entre ele e o Pai
Texto brilhante. Sucinto. Com simplicidade e profundidade na escrita.
Parabéns pela fidelidade ao escrever com as mãos do Sagrado Magistério.
Deus vos abençoe e vos guarde.