Mas consideremos também qual é o êxito da impiedade, para que não reste, na mente do homem, sequer sombra de dúvida de que alguém possa prevalecer contra Deus. No profeta Jeremias, lê-se essa palavra dirigida a Deus: Aqueles que te abandonam ficarão confusos (Jr 17,13). O abandono de Deus leva à confusão e ao extravio até de si mesmo; quem quiser salvar a própria vida perdê-la-á, dizia Jesus (cf. Mt 16,25). “Perda”, “extravio” são as palavras que ocorrem com mais freqüência na Bíblia, ao se falar de pecado: a ovelha perdida, a dracma perdida, o filho perdido…
A mesma palavra com que se traduziu em grego o conceito bíblico de pecado, hamartia, contém a idéia de extravio e de fracasso; dizia-se de fato, de um rio que perde o seu leito e se espraia num pântano, da flecha que, arremessada, erra o alvo e perde-se no vazio. O pecado é, portanto, um fracasso e um fracasso radical. Um homem pode fracassar de muitos modos; como marido, como pai, como homem de negócios; se mulher, pode fracassar como esposa, como mãe; se sacerdote, pode fracassar como pároco, como superior, como diretor de consciências… Mas são fracassos relativos; sempre deixam uma possibilidade de compensação; alguém pode fracassar de todos esses modos e ser uma pessoa respeitabilíssima, até mesmo um santo. Mas com o pecado não se dá o mesmo; com o pecado, fracassa-se enquanto criatura, isto é, na realidade fundamental, naquilo que se “é”, não aquilo que se “faz”.
Este é o único caso em que se pode dizer de uma pessoa o que Jesus disse de Judas: “Teria sido melhor para ele não ter nascido” (Mt 26,24). O homem, pecando, julga ofender a Deus, mas na realidade ele “ofende”, isto é, danifica e rebaixa somente a si mesmo, para vergonha própria: Mas será que — diz Deus — esses ofendem a mim, ou pelo contrário a si mesmos para a própria vergonha? (Jr 7,19). Recusando glorificar a Deus, o homem acaba ficando ele mesmo “privado da glória de Deus”. O pecado ofende, isto é, entristece também a Deus, e o entristece muitíssimo, mas só enquanto mata o homem a quem ele ama; fere-o no seu amor.
Mas tentemos aprofundar ainda mais o olhar nas seqüelas do pecado. S. Paulo afirma que o salário do pecado é a morte (Rm 6,23). O pecado conduz à morte; não tanto porém à morte como ato — que duraria um instante — quanto à morte como estado, precisamente àquela que foi denominada “a doença mortal”, que é uma situação de morte crônica. Nesta situação, a criatura anseia desesperadamente por voltar ao nada, mas sem jamais poder consegui-lo; por isso vive numa eterna agonia.
Daqui nasce a danação e a pena do inferno: a criatura é forçada por Alguém mais forte do que ela a ser o que ela não aceita ser, isto é, dependente de Deus, e o seu tormento eterno é não conseguir desembaraçar-se nem de Deus nem de si mesma (cf. Kierkegaard, A doença mortal). Podemos encontrar uma situação dessas antes de tudo em Satanás, no qual o pecado logrou perfazer todo o seu curso e mostra claramente onde vai desembocar. Ele é o protótipo daqueles que, “embora conhecessem a Deus (e como conheciam!) não lhe prestaram glória e graça como a Deus”.
Mas não é necessário recorrer à imaginação, ou a quem sabe que especulação teológica, para saber quais são os sentimentos de Satanás a este respeito, já que ele mesmo as clama em altos brados, como eu dizia acima, aos ouvidos das almas que Deus ainda hoje lhe permite tentar, como tentou Jesus no deserto. “Nós não somos livres — grita ele —; nós não somos livres! Ainda que eu te mate, a alma sobrevive, não a podes fazer morrer, não podemos dizer não. Somos forçados a viver para sempre. É uma burla! não é verdade que Deus nos criou livres, não é verdade!” Diante de tais pensamentos sentem-se arrepios, porque parece estar escutando ao vivo alguns fragmentos da eterna disputa entre Satanás e Deus.
De fato, ele almejaria ser deixado livre de voltar ao nada. Mas que significa isso: talvez Satanás desejasse não existir, anular-se como antagonista de Deus, causando assim enorme prazer a Deus e a todos os amigos do bem? Não, certamente. É verdade que ele não desejaria ser aquele que é e desejaria ser diferente; não porém no sentido de que desejaria ser bom, ao invés de mau (se assim fosse, estaríamos perante a conversão de Satanás, que, pela infinita misericórdia de Deus, faria dele nova e imediatamente um anjo de luz), mas antes no sentido de que almejaria ser independente de Deus, sem ter ninguém acima de si, a quem ter de agradecer pelo que é. Almejaria existir, mas não “por favor do outro”.
Isto porém, não obstante todos os seus esforços, nunca mais será possível, porque o poder que está acima dele é mais forte do que ele e o força a existir. E eis que se chega, por esta via, ao puro desespero. Foi dito com acerto que “querer desesperadamente desembaraçar-se de si mesmo é a fórmula de toda a desesperança” e que, por isso, “o pecado é desesperança” (Kierkegaard, op. cit.). Optando pela via da autonomia absoluta de Deus, a criatura sente que ela comportará infelicidade e trevas, mas aceita pagar até este preço porque prefere, — como dizia São Bernardo — “ser infeliz na soberania, a ser feliz na submissão”(“misere praeese, quam feliciter subesse”, De grad. hum.) mostrando assim que a eternidade do inferno, da qual tantos se escandalizam, não depende de Deus, que sempre está pronto a perdoar, mas da criatura que não quer ser perdoada e acusaria Deus de não respeitar a sua liberdade se o fizesse.
Nós hoje temos a possibilidade de verificar de modo mais concreto e acessível à nossa experiência qual é o êxito do pecado observando o que está acontecendo na nossa cultura atual, depois que a rejeição de Deus foi levada, em certos ambientes, às suas últimas conseqüências. Um filósofo que já mencionei — para quem o pecado não passava de uma ignóbil “invenção judaica” e o bem e o mal, de simples “preconceitos de Deus”`— escreveu estas palavras (novamente, julgamos as palavras, não as intenções): “Nós o matamos; nós somos os assassinos de Deus!”
Mas esta mesma pessoa, entrevendo depois, ou experimentando em si mesmo as sinistras conseqüências de tal ato acrescentou: “O que foi que fizemos, desprendendo este mundo da amarra do seu sol? Onde é que ele se move agora? Onde nos movemos nós? Não seria o nosso, um eterno despenhar-se? Para trás, de lado, à frente, por todos os lados? Não estaríamos talvez vagando como através de um infinito nada?” (F. Nietzsche, La gaia scienza). “Matar a Deus é deveras — como foi dito — o mais horrendo suicídio”. O salário do pecado é realmente a morte, e o niilismo de uma parte do pensamento moderno é a sua demonstração.
No termo desta viagem pelo mundo da impiedade, voltam-me à mente as palavras de um salmo de que ouso apropriar-me repetindo-o com aflição. Porque também eu
“Digo a quem se orgulha: “Não vos orgulheis”. E aos ímpios: “Não levanteis a cabeça!” Não alceis a cabeça contra o céu, não faleis contra Deus com insolência… Pois na mão do Senhor há uma taça repleta de vinho temperado. Dela dá a beber; deverão sorvê-la até as fazes, dela beberão os ímpios da terra” (Sl 75,5-9).